Textos


Nossa Pátria é o Céu (Fil 3, 20)

O tema deste encontro -“Nossa Pátria é o Céu”– espelha, de certa forma, o estilo de vida que já é vivido por tantos religiosos contemplativos generosos e aquele que é sonhado para todos os consagrados.
A frase se encontra na Carta de Paulo aos Filipenses, capítulo 3.

Alguns dados sobre a Carta aos Filipenses

A maioria dos exegetas coloca a Carta aos Filipenses entre as Cartas aos Coríntios, escrita em Éfeso, pelos anos 56-57. A prisão do Apóstolo, suposta nesta Carta, não é mais colocada na época das Cartas do cativeiro, Efésios e Colossenses.
Algumas rupturas no próprio texto e na apresentação dos temas, como, por exemplo, o salto dado entre o 1º e 2º versículos do capítulo 3º e a serenidade da gratidão de Paulo no final do capítulo 4º, numa carta polêmica, assim como outras razões de ordem técnica levaram alguns exegetas a desconfiarem da unidade da Carta. P. Benoit, por exemplo, na tradução e comentário da Carta, na Bíblia de Jerusalém, supõe 3 cartas em Filipenses, artificialmente costuradas numa só, num segundo momento: Carta A : 4, 10-20; Carta B : 1, 1-3-3,1 + 4, 2-9.21-23; Carta C : 3, 2 – 4,1. Por sua vez, J. Gnilka, especialista na Carta, no seu grande comentário teológico, encontra 2 cartas: Carta A, da prisão : 1, 1 – 3, 1ª; 4, 2-7. 10-23; Carta B, a carta polêmica : 3, 1b – 4, 1. 8s. Outros muitos autores acham que os elementos aduzidos não são suficientes para repartir a Carta e continuam defendendo a sua unidade. L. A. Schökel, levando em consideração a índole acentuadamente pessoal desta carta, diz: “Num texto tipicamente do gênero carta pessoal, os saltos, mudanças e prolongamentos não estranham”. (Introdução à Carta aos Filipenses, na Bíblia do Peregrino). Apesar de técnica, esta discussão não é sem importância para situar no seu contexto e entender o nosso texto: “Nossa Pátria é o Céu”.

Índole própria da Carta aos Filipenses

A Carta aos Filipenses tem cunho de carta muito pessoal, confidencial, quase de abertura de coração, de espontaneidade.
A mensagem geral da Carta, direta e transversal, é a comunhão fraterna na fidelidade ao Cristo humilde e soberano, a ser defendida contra qualquer irrupção de autossuficiência e de questionamento da centralidade do Cristo Senhor.

Contexto imediato

O contexto próximo do nosso tema é todo o capítulo 3º da Carta, que convém ter presente:

3.1.“No mais, meus irmãos, alegrai-vos no Senhor. Não me custa escrever-vos as mesmas coisas, e para vós é uma confirmação.
2.Cuidado com os cães! Cuidado com os maus operários! Cuidado com os falsos circuncisos!
3.Pois os circuncisos somos nós que prestamos o nosso culto pelo Espírito de Deus, que fazemos consistir a nossa glória em Jesus Cristo, que não confiamos em nós mesmos (na carne).
4.No entanto, eu tenho motivos de ter confiança também em mim mesmo (na carne). Se um outro crê poder confiar em si mesmo (na carne), eu o posso ainda mais, eu,
5.circunciso no oitavo dia, da raça de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu, filho de hebreus, quanto à lei, fariseu,
6.quanto ao zelo, perseguidor da Igreja; quanto à justiça que se encontra na lei, tornado irrepreensível.
7.Ora, todas essas coisas que para mim eram ganho, eu as considerei como perda por causa de Cristo.
8.Como não, eu considero que tudo é perda em comparação desse bem supremo que é o conhecimento de Jesus Cristo, meu Senhor. Por causa dele, perdi tudo e considero tudo isso como lixo, a fim de ganhar a Cristo
9.e ser achado nele, não já com uma justiça que seja minha, que veio da lei, mas com a que vem pela fé em Cristo, a justiça que vem de Deus e se apóia na fé.
10.Trata-se de conhecê-lo a ele, ao poder da sua ressurreição e à comunhão com seus sofrimentos, de tornar-se semelhante a ele em sua morte,
11.a fim de chegar, se possível, à ressurreição dentre os mortos.
12.Não que eu já tenha alcançado tudo isso ou já me tenha tornado perfeito; mas arremeto para tentar alcançá-lo, porque eu mesmo fui alcançado por Jesus Cristo.
13.Irmãos, eu não julgo já tê-lo alcançado. A minha única preocupação é, esquecendo o caminho percorrido e ansiando com todas as forças pelo que está na frente,
14.arremeter rumo à meta, visando ao prêmio ligado ao chamado que, do alto, Deus nos dirige em Jesus Cristo.
15.Nós todos, os ‘perfeitos’, comportemo-nos pois assim, e se em algum ponto vos comportais de outro modo, Deus também vos esclarecerá a esse respeito.
16.Entretanto, seja qual for o ponto a que chegamos, caminhemos na mesma direção.
17.Imitai-me todos juntos, irmãos, e fixai o vosso olhar naqueles que se conduzem segundo o exemplo que tendes em nós.
18.Muitos, com efeito, eu vo-lo dizia muitas vezes e agora repito-o chorando, comportam-se como inimigos da cruz de Cristo.
19.O seu fim será a perdição; o seu deus, é o ventre; e sua glória, eles a põem na própria ignomínia, já que só levam a peito as coisas da terra.
20.Pois a nossa pátria está nos céus, de onde esperamos como salvador, o Senhor Jesus Cristo
21.que há de transfigurar o nosso corpo humilhado para torná-lo semelhante ao seu corpo glorioso, com a força que também o torna capaz de tudo submeter ao seu poder.
(Tradução da TEB)

Como se vê, é um capítulo marcadamente polêmico. Por isso, é absolutamente necessário conhecer quem são os adversários visados por Paulo para entender o seu pensamento de contrapartida.

Os adversários no capítulo 3

Pelas referências feitas pelo Apóstolo, e sabendo ler nas entrelinhas, aqui, algumas características dos adversários de Paulo:
-são falsos circuncisos (v.2) a circuncisão aparecendo como ‘incisão’, ‘corte’,quase uma ‘mutilação’.
-confiam na ‘carne’, entendida aqui como sistema judaico de vida, raça, circuncisão, costumes, lei, culto, comidas, justiça vinda da lei (v.6.9.).
-não aceitam o mistério da cruz de Cristo (v.18).
-julgam já ter chegado, de certa maneira, à perfeição, à ‘escatologia já realizada’.
-parecem até levados a um certo laxismo.
Paulo os chama de ‘maus operários’(v.2) por pertencerem à comunidade dos cristãos; ‘cães’ e diz que o fim deles é a destruição (v.19).
Há indícios de que sejam os mesmos opositores da Carta aos Gálatas, os judaizantes, com alguma característica a mais, como a autossuficiência.

A experiência de Paulo

Defendendo ou precavendo a comunidade contra essa maneira de pensar de valorização salvífica do sistema judaico, Paulo aduz a própria experiência do encontro com Cristo Ressuscitado, na estrada de Damasco, seu encantamento e a reviravolta na sua vida.
Deixa bem claro que agora o que conta é o Cristo Jesus Ressuscitado com quem entramos em comunhão no seu mistério de morte e ressurreição.
De fato, a experiência de Paulo no seu encontro com o Senhor Ressuscitado é paradigmática, tem cunho de exemplaridade.
Agora, o que conta é encontrar-se com o Senhor, conhecê-lo, fazendo experiência de vida com ele, ganhar a Cristo, nele ser justificado através da fé nele, entrar em comunhão com os seus sofrimentos, tornando-se semelhante a ele na sua morte, tentar alcançá-lo, deixando para trás o caminho andado e arremetendo, correndo, avançando para a meta, o prêmio do chamado do Pai, a ressurreição dentre os mortos.
Isto é o que conta agora para Paulo, para os Filipenses e para todos os cristãos.
Paulo põe em evidência um elemento fundamental em toda essa realidade nova no que respeita a ele e a todos os cristãos. É o próprio Cristo Jesus Senhor quem desencadeia todo esse processo de transformação e de vida. É o Senhor quem primeiro vem ao encontro e alcança, pega, conquista Paulo; que o coloca na pista de corrida, o impulsiona, o provoca e cria comunhão no mistério de morte e o faz sonhar com a ressurreição de entre os mortos. Paulo, como exemplar de todo cristão, vive esta tensão do ‘agora, já’, em vista do ‘não ainda’. Já agora, Paulo é possuído, trabalhado pelo Senhor Ressuscitado que veio ao seu encontro, o apanhou, e entrou em comunhão com ele. Esta situação presente do ‘já agora’ em comunhão com o Ressuscitado tende toda ela, vai, é ordenada ansiosamente para a situação futura do ‘não ainda’.
O futuro, a meta é descrita como “quando o Senhor Jesus Cristo (vier) como salvador e vai transfigurar o nosso corpo humilhado, para torná-lo semelhante ao seu corpo glorioso” (v.21); quando houver a ressurreição de entre os mortos. É o prêmio, o alvo, a meta para que tende a comunhão atual, já agora, com o Senhor.
De fato, Paulo já está em comunhão com o Cristo Jesus Senhor, mas espera ansiosamente, como a pessoa que aguarda um visitante e olha, da soleira da casa, para o lado de onde deve chegar a visita, quase querendo ouvir os seus passos de chegada. É a atitude de Paulo, já em comunhão com o Senhor, que o aguarda vindo como salvador, transformador do seu corpo. Importante ressaltar que esse anseio, a expectativa certa do acontecimento futuro, já é fruto da comunhão de Paulo com o Senhor que o apanhou primeiro. Por isso, convém entender melhor esta atual, presente, comunhão com o Senhor, como Paulo a vê.

A comunhão com o Ressuscitado

Fiel é o Deus que vos chamou à comunhão com o seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor” (1 Cor 1, 9). Quem se encontra com Jesus Cristo Senhor Ressuscitado, quem foi santificado e é chamado a ser santo, pela fé e pelo batismo, entra em comunhão com Jesus Cristo Filho e Senhor, e espera a revelação de nosso Senhor Jesus Cristo no Dia de nosso Senhor Jesus Cristo (Cf. 1 Cor 1, 1-9).
São fortes as expressões usadas por Paulo para exprimir essa comunhão.
-O cristão, na sua inteireza, com o seu corpo, faz um espírito só com o Senhor Ressuscitado, Espírito que dá vida (Cf. 1 Cor 6, 17; 15, 45).
-O batismo une o batizado ao Cristo de maneira a fazer com ele um único ser, como quer dizer a palavra usada uma única vez no Novo Testamento, aqui,
symphytoi’ (Rom 6, 5).
-Num texto de grande ternura, numa Carta em que, algumas vezes, se mostra severo com os Gálatas, diz Paulo: “meus filhinhos que, entre dores, novamente dou à luz, até que Cristo seja formado em vós” (Gal 4, 19), lembrando que em Filipenses (2, 6-7), ‘forma’ é quase sinônimo de natureza.
-A comunhão com o Cristo Senhor, já presente, atual, torna o crente uma pessoa só com o Senhor Ressuscitado, Espírito que dá vida (Cf. Gal 3, 28), destacando que Paulo usa “um” no masculino, diferentemente de João (Cf. Jo 17, 21-22), que usa “um” no neutro”. De onde Paulo tira a conclusão que “vivo, mas não sou mais eu, é Cristo que vive em mim” (Gal 2, 20). É impressionante o realismo dessa comunhão. Bento XVI, mais de uma vez, se deteve sobre essa união profunda, pessoal do Senhor com o cristão. Vale a pena citar alguns trechos da palavra do Santo Padre.
De fato, as suas palavras conclusivas (palavras de Paulo em Gálatas) encerram o núcleo dessa pequena biografia espiritual: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gal 2, 20). Vivo, mas já não sou eu. O próprio eu, a identidade essencial do homem – deste homem, Paulo – foi modificada. Ele existe ainda, e já não existe. Atravessou um “não” e encontra-se continuamente neste “não”: eu, mas já “não” eu. Com estas palavras Paulo não descreve qualquer experiência mística que porventura lhe tivesse sido concedida e que poderia interessar-nos, quando muito, sob o ponto de vista histórico. Não, esta frase é a expressão do que aconteceu no batismo. O meu eu próprio é-me tirado e inserido num novo sujeito maior. Tenho de novo o meu eu, mas agora transformado, trabalhado, aberto por meio da inserção no outro, no qual adquire o seu novo espaço de existência”. (Bento XVI, 15/04/2006).
É precisamente partindo que ele (Jesus) vem. A sua partida inaugura um modo totalmente novo e maior da sua presença. Com a sua morte, Jesus entra no amor do Pai. A sua morte é um ato de amor. O amor, porém, é imortal. Por isso, a sua partida transforma-se numa nova vinda, numa forma de presença mais profunda que não acaba mais. (...) A corporeidade coloca limites à nossa existência. Não podemos estar contemporaneamente em dois lugares diferentes. O nosso tempo tende a acabar. E entre o “eu” e o “tu” existe o muro da alteridade. (...) A sua partida torna-se uma vinda no modo universal da presença do Ressuscitado, no qual ele está presente ontem, hoje e para sempre; em que abraça todos os tempos e lugares. Agora pode ultrapassar também o muro da alteridade que separa o “eu” do “tu”. Assim, aconteceu com Paulo, que descreve o processo da sua conversão e do seu batismo com estas palavras: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gal 2, 20). Por meio da vinda do Ressuscitado, Paulo obteve uma identidade nova. O seu “eu” fechado abriu-se. Agora vive em comunhão com Jesus Cristo, no grande “eu” dos crentes que se tornaram – segundo definição dele – “um em Cristo” (Gal 3, 28). (Bento XVI, 22/03/2008).
Este é o realismo da comunhão, já agora, com o Cristo Senhor, que se abre na expectativa certa da comunhão com ele no futuro, quando ele, vindo do céu onde está,“há de transfigurar o nosso corpo” ( Fil 3,20-21). Portanto, já agora estamos em comunhão, fazendo uma só pessoa , com o Senhor, ele que está nos céus, lá no alto, de onde Deus nos chama (Cf. Fil 3,14), e, ao mesmo tempo, “ainda não” comungamos com ele com o corpo transfigurado na glória, “ainda não” chegamos lá, onde está Deus que nos chama.

Onde nos leva a lógica

Já agora, em comunhão com Jesus Ressuscitado, nesta “vida escondida com Cristo em Deus” (Col 3, 3), já entramos na vida íntima da Trindade, em que o Pai eternamente gera o Filho no Espírito Santo. Ora, se formamos uma só pessoa com o Cristo, entramos então, já agora, de certa maneira, naquele circuito misterioso de vida trinitária. Já ‘habitamos’ em Deus, enquanto caminhamos no histórico da nossa vida terrena, bem presentes neste mundo. João dirá: “Que todos sejam um como tu Pai estás em mim e eu em ti; que também eles estejam em nós...eu neles como tu em mim...e assim o mundo possa conhecer que tu me enviaste e os amaste como tu me amaste...a fim de que o amor com que me amaste esteja neles e eu neles” (Jo 17, 21.23.26).

Nossa Pátria é o Céu

O texto de Fil 3, 20 usa um termo que só aparece aqui, em todo o Novo Testamento: “A nossa ‘políteuma’ está nos céus”. Após analisar o termo no ambiente grego da época, C. Spicq sintetiza assim o seu sentido: “Politeuma de Fil 3, 20 seria, portanto, o conjunto dos cristãos, residentes na Macedônia, reunidos e unificados como cidadãos pela sua naturalização comum, pelo fato da sua inscrição batismal nos registros da Metrópole celeste. A ‘ecclesia’ (assembléia) deles é uma imagem reduzida da assembléia dos céus. Graças à sua cidadania eles participam dos direitos e dos privilégios, alcançados e comunicados pelo Sôter deles, Jesus, definidos pela constituição (politeia) do seu país de origem”. (C.Spicq, Théologie Morale du Nouveau Testament. T.I, p.429).
É, portanto, por estarmos em comunhão com o Cristo Senhor, que está nos céus, por recebermos o chamado do alto, que é o céu, da parte do Pai; caminhando para a futura plenitude de vida de que já participamos agora; inseridos na própria vida trinitária, é por todas essas razões que a Palavra nos garante, com segurança, que ‘somos do céu’, ‘cidadãos do céu’, ‘a nossa pátria é o céu. Este é o verdadeiro estatuto e identidade do cidadão do céu.

A lógica da história

Com os pés no chão, não nos esquecemos que ainda caminhamos na história, nossa vida se faz todos os dias, nossas opções são feitas diariamente, com liberdade, confrontando-nos com todas as vicissitudes da história e do humano. Toda a “vida escondida com Cristo em Deus” (Col 3,3) deve ser vivida dia-a-dia.
Existe uma continuidade de desabrochamento entre a vida escondida em Cristo de agora e a vida na glória da ressurreição, apesar da descontinuidade e ruptura entre ambas. (Cf.Carta sobre algumas questões referentes à escatologia, da Congregação para a Doutrina da Fé, 17/05/1979; Cf. C.Spicq, Lês chrétiens vivent em citoyens du ciel, em TMNT, T I, p.417-432)
Descendo das alturas da contemplação, em Colossenses (3, 1-17), Paulo mostra como, mesmo vivendo a vida escondida com Cristo em Deus (3,3), ao mesmo tempo temos de fazer morrer o que em nós não é de Deus, as coisas do homem velho (3,9), as coisas da terra e, vivendo na lógica de cidadãos do céu, em comunhão com o Cristo Senhor, renovando-nos, continuamente, como homens novos (Cf.3,10). A vida do cidadão do céu, do alto, praticamente é descrita assim: “Visto que sois eleitos, santificados, amados por Deus, revesti-vos dos sentimentos de compaixão, benevolência, humildade, doçura, paciência. Suportai-vos uns aos outros, e se alguém tiver motivo de queixa contra o outro, perdoai-vos mutuamente; assim como o Senhor vos perdoou, fazei o mesmo, também vós. E, acima de tudo, revesti-vos do amor: é o vínculo perfeito. Reine em vossos corações a paz de Cristo, à qual fostes chamados em um só corpo. Vivei na gratidão. Que a palavra de Cristo habite entre vós em toda a sua riqueza: instrui-vos e adverti-vos uns aos outros com plena sabedoria; cantai a Deus, em vossos corações, a vossa gratidão, com salmos, hinos e cânticos inspirados pelo Espírito. Tudo o que podeis dizer ou fazer, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando graças, por ele, a Deus Pai” (Col 3, 12-17).
O problema existencial, a mística cristã consiste em historicizar a nossa vida escondida com Cristo em Deus, numa caminhada terrena de abertura para o céu, a nossa pátria, fazendo passos firmes de “amor, vinculo da perfeição” (Com 3,3).

Conclusão

A modo de conclusão, notamos como ser cidadão do céu não aliena nem afasta nunca o cristão da realidade crua, às vezes, dura, da terra, dos irmãos da terra, do mundo de aqui em baixo.
Cidadãos do céu sonham realizar um mundo com o perfume do céu, da sua beleza, da sua paz, do seu amor, do seu Deus, do seu Senhor.
A vida contemplativa é profecia que proclama que toda realidade carrega uma dimensão de céu.
Nossas comunidades, nossos mosteiros, nossos eremitérios são testemunhas do céu, buscam uma pequena parte da vida de céu, já aqui na terra, sonham ser verdadeiros cidadãos do céu.


Sugestões para a reflexão

1.Quais os sinais que o consagrado, a comunidade, podem dar para que o mundo perceba o céu que nos habita.
2.Que ferramentas utilizar para fazer crescer a fé que percebe a vida escondida com Cristo em Deus.
Aparecida, 16/06/2012
D. Paulo A. M. Roxo, opraem
Bispo emérito de Mogi das Cruzes-SP





Contemplação Sapiencial dos Sinais dos Tempos

1. INTRODUÇÃO
Para compor um olhar sobre a realidade vivida em nossos claustros hoje, e considerar diretamente os sinais vivos, pedi uma colaboração a algumas comunidades, aos irmãos e irmãs. As perguntas são semelhantes às estudadas em nosso plenário ontem. Suas respostas, e agradeço aos que se prontificaram a respondê-las, ajudaram-me a refletir e enriquecem este texto.
Gostaria de começar lembrando uma visão e leitura de um grande sinal, bem recuadas no tempo, mas ligadas a nós pelo seu caráter paradigmático: trata-se da experiência culminante de S. Bento, relatada por Gregório Magno, seu biógrafo, no II Livro dos Diálogos.1 Estamos no final de sua vida. O abade, mais que tudo monge, segundo seu costume, antecipava as vigílias em oração na torre. Era noite. Bento perscrutava com fé e esperança inabaláveis a escuridão da noite e dos tempos. De repente, diz S. Gregório: “viu uma luz que se difundia do alto e dissipava as trevas da noite, brilhando com tal esplendor, que, apesar de raiar nas trevas, superava o dia em claridade.(...) Seguiu-se uma coisa admirável (...) o mundo inteiro lhe apareceu ante os olhos, como que concentrado num raio de sol”.
Que mundo ele perscrutava e que mundo surge revelado aos olhos de S. Bento? O paradoxo de um mundo em muitos aspectos semelhante ao nosso, enquanto tempo de mudanças drásticas. Lembremos a passagem da Antiguidade para a Idade Média, a conturbada mudança de época, a invasão de novas culturas derrubando a antiga tábua de valores. Mas ao mesmo tempo, um mundo iluminado, a outra face da mesma moeda, que fazia parte da sua visão do cimo da torre, e advinha de sua capacidade de contemplar de forma sapiencial os sinais do tempo, do seu tempo. O grande santo era capaz de enxergar os acontecimentos, as grandes mudanças, à luz de um Deus Criador, que nunca deixa de lançar luz sobre a obra de Suas mãos.
Homens e mulheres, iniciadores das famílias monásticas e contemplativas, têm tido em comum com São Bento a capacidade de ler de forma sapiencial a realidade e responder aos seus desafios, não tanto com teorias, mas com gestos concretos. Também eles souberam ler os acontecimentos de seu tempo à luz de Deus.
Nas muitas “noites” de hoje, nossas comunidades são convidadas a testemunhar sempre de novo que nossa Pátria é o céu, que de lá esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo,2 Luz que incide sobre nosso mundo em todas as suas faces. Bento, Teresa de Ávila, Beatriz da Silva, e muitos outros, levados por essa consciência de viverem os desafios dos tempos, sinalizaram novas perspectivas pelo ser e agir.
Eles, não apenas olharam para o céu, mas captaram o dinamismo de Deus, que acompanha as mudanças de sua Criação e construíram nesta terra formas de vida que desejam garantir o foco na direção certa: a volta à Pátria de origem.
São muitas as vozes que se levantam e pedem fidelidade ao carisma de uma vida monacal sem ritualismo, formalismo ou modismo, diante de desafios vindos da sociedade, como são a crescente violência, a desumanização, uma fraca e ilusória qualidade de vida familiar, a corrupção e a desestruturação das pessoas. Outros graves desafios confrontam de dentro a própria Igreja, como as tendências de um espiritualismo desencarnado, de um conservadorismo que busca a falsa segurança, de uma veia autoritária capaz de torná-la conservadora, autoritária, menos ecumênica e missionária.
A FECUNDIDADE E A ALEGRIA DA BUSCA DE DEUS- UMA IDENTIDADE CLARA
A primeira contemplação dos sinais dos tempos, hoje, leva à constatação de que o Espírito de Deus move pessoas em todos os continentes e culturas a seguir o Senhor na vida monástica e contemplativa, seja em suas mais antigas tradições, seja em formas novas.
O documentário feito pela televisão católica em comemoração ao jubileu de ouro da AIM, Aliança Inter Monástica, em novembro de 2011 mostra quatro comunidades ao redor do mundo. Segundo seu presidente, Padre Martin Neyt OSB, há cinquenta anos, o mundo monástico que segue a Regra de S. Bento, contava com uma quinzena de mosteiros nos continentes africano e asiático. Hoje, contam-se mais de 450 novas comunidades ao redor do mundo. Outras famílias religiosas poderão dizer o mesmo. Há novos mosteiros em todos os continentes, inclusive na própria Europa.3 Sem alarde, mesmo em meio a tantos desafios, a busca de Deus como aquele absoluto pessoal, continua viva no coração da humanidade e nada consegue abafá-la.
Na África, na Guinè Konakri, o Mosteiro focalizado, nas palavras de seu prior, apresenta a comunidade contemplativa como conforto para o povo sofrido e pobre. Oferece-lhe a esperança de uma Presença Salvadora, na sua própria presença, na simplicidade da abordagem religiosa, na liturgia, em sinais simples, mas alentadores, no canto expressivo. Também ensinam como fazer o solo produzir, como proceder à partilha da água e dos produtos da terra.
Outra comunidade vive o diálogo inter-religioso no Vietnam, pelo respeito mútuo entre cristãos e budistas, em uma sociedade comunista. Impressionante aí o número de vocações.
Na Índia, a comunidade assume o rosto local, seja na celebração da Liturgia siro-malabar, seja nas vestes, refeição, forma de vida que o mestre chama de abraçar a natureza, valor maior de sua cultura, abraçando igualmente as riquezas da fé do oriente e ocidente. Grandes sinais!
Uma exigência moral de dedicação absoluta, gera os seguidores de Deus. Para estes, “A maior alegria, a luz, é, O SER CONSAGRADO, e ter RESPONDIDO, com o auxílio da graça, à vocação tão especial”.
Os testemunhos se multiplicam e se elevam da boca de jovens e idosos, do fervor noviço à fidelidade provada. Eles falam de “sempre encontrar novas formas de alegrar o coração no serviço do Senhor”; falam da “liberdade de viver os acontecimentos de cada dia com confiança, abandono e  ação de graças”; revelam que não há “nada melhor do que saber-se “guardado” em nome do próprio Deus”; falam da alegria de estar “na Casa de Deus, no seu regaço. Isso não impede luzes e sombras, mas, diz a voz: “Ele está comigo, ao meu lado”; outra diz da “alegria no exercício da maternidade espiritual”.
No entanto os desafios estão presentes. Há quem pense que nossos mosteiros perdem o foco, a mística, o carisma, a identidade e o diálogo com a época em que vivemos é alvo de preocupação contínua. Outra preocupação é considerar se vivemos a dimensão profética que anuncia e denuncia pela própria vida. Por que um ideal tão belo conta hoje com menos adesões? É fato de que, apesar do aumento de comunidades, “a diminuição das vocações é sentida, bem como a perseverança”. Como conciliar as coisas boas que o mundo oferece (damos como exemplo a facilidade dos meios de comunicação) com uma vida de "afastamento" do mundo?



Padre Márcio Fabri observa em análise a uma sondagem semelhante à nossa, feita em preparação ao Seminário de Superiores Maiores em fevereiro deste ano em Itaici, o perigo de uma leitura negativa da cultura atual. Tal leitura acentua influxos contrários à vida consagrada e fecha possibilidades abertas pelos benefícios e recursos que essa cultura traz e incide sobre o modo de avaliar e acolher as novas vocações. Sem desconhecer as presentes condições culturais que pedem respostas criativas, Márcio Fabri proclama um futuro para a vida religiosa consagrada. Trata-se de um ato de fé no Espírito de Deus que não será derrotado pelos novos tempos. Na verdade, o Espírito de Deus agiu em todos os tempos, ele próprio é o agente renovador. O Ano da Fé anunciado pelo Santo Padre convida-nos a “repassar a história de nossa fé, ver o mistério insondável da santidade entrelaçada com o pecado, a grande contribuição de homens e mulheres para o crescimento e o progresso da comunidade humana.”4
Nossa época pede ou mesmo exige que olhemos as mudanças sob a ótica de novas oportunidades, como um “convite... que permite perceber com um olhar sempre novo, as maravilhas que Deus realiza por nós.” 5
O GRANDE SINAL DA LITURGIA E A VIDA DE ORAÇÃO
O Louvor Divino continua a ser um grande sinal. É uma missão recebida, e renovada com fé, especialmente ao encontrarmo-nos no mais das vezes sós. Não é todos o dias que há pessoas na igreja monástica. No entanto, sua presença em nossas igrejas é um forte incentivo a perseverar no Louvor Divino, onde todos os sentimentos humanos ressoam. Espelho da experiência do próprio orante e de toda humanidade contida no EU dos salmos, voz do Cristo total. No exercício do Louvor, as intenções do mundo sobem a Deus, expressam as inquietações e toda espécie de intenções que o mundo entrega confiante às comunidades orantes. Trata-se de poder servir a Igreja de Deus pela vida de renúncia e oração, no mundo, pelo mundo. O louvor cotidiano marca o ritmo da comunidade e, por vezes, também o do seu entorno, nem que seja apenas pelo toque dos sinos.
A comunidade monástica e contemplativa celebra sua fé e assim a alimenta e a testemunha. Liturgia e Lectio Divina constituem o alimento forte. “A grande alegria é participar ativamente da liturgia como  "voz da Igreja", cumprindo o que nos foi pedido no dia de nossa consagração: "Intercede pela salvação do mundo", diz uma monja.Como Maria Madalena, busca-se ter uma experiência com o Ressuscitado no jardim da liturgia celebrada sete vezes ao dia e na Lectio Divina.”
No fervor que continua a viver do alto dos seus 93 anos, resume outra monja: “Poder louvar a Deus juntas na simplicidade do cotidiano e do ordinário” ou na alegria compartilhada na “Importância das festas, grandes ou comuns, celebradas e vividas juntas.”
Neste processo, a salmodia diurna pede disciplina, ascese, que fortalecem a conversão, isto é, “o desejo de obter um coração puro e unificado, para crescer no conhecimento de Jesus Cristo e ser um com Ele.” A Liturgia das Horas, ou Ofício Divino continua a ser o grande campo do trabalho da Palavra de Deus mais afiada que uma espada, que noite e dia age no coração dos que oram.

Um questionamento feito, alerta para o perigo das Liturgias-show ao invés da celebração em que todos são protagonistas. Ainda que o silêncio seja uma importante forma de entrar em comunhão, a hospitalidade litúrgica pede atenção das comunidades, seja pela disposição do espaço sagrado, seja no proporcionar a participação ativa dos fiéis presentes.

O GRANDE SINAL DA VIDA COMUNITÁRIA
A Igreja em Aparecida, no V CELAM, proclama que a vida consagrada é chamada a ser especialista em comunhão, no interior tanto da Igreja quanto da sociedade.(...) 6. Nos depoimentos recolhidos é clara a importância da vida comunitária, da comunhão. Há um forte vocabulário de pertença. Por um lado, a comunidade aparece como garantia, guarda da vida diária que compõe o tecido de uma comunidade contemplativa. Importante a capacidade de reconhecer os dons que temos para responder a novas situações, como na história da Salvação, onde a certeza de que Deus está conosco em todas as situações que se sucedam, permite caminhar de claridade em claridade.

Alguns depoimentos: “... estar aqui agora e pertencer a esta comunidade.”; “Viver com pessoas que tem o mesmo ideal é gratificante, apesar das diferenças.”; “partilhar nossas vidas, angústias, alegrias preocupações e esperanças uns com os outros.” Unanimidade em considerar a vida fraterna fonte de grande alegria, lugar de aprendizado, (...) tendo por centro o próprio Cristo. Notam ainda o “testemunho das mais anciãs na vida monástica.” Ao mesmo tempo, sente-se o desafio de “Como viver bem e na verdade da caridade a vida fraterna?”; “vejo minha comunidade como as paredes de uma casa, uma muralha protetora ao meu redor (...) a experiência do amor e do perdão praticado setenta vezes sete vezes ao dia.”. No entanto, nem tudo são flores... e os conflitos de gerações e falta de diálogo, são também mencionados: Que o jovem saiba acolher o tesouro da tradição monástica, vivida e transmitida pelos mais velhos, mas que se sintam amados e que possam também contribuir com a “boa novidade” que trazem consigo“. O Abade Primaz da Ordem de S. Bento, ao dirigir-se no ano passado à Congregação Beneditina do Brasil, pelo centenário da chegada das monjas ao país aponta que: ‘Viver em verdadeira comunhão dentro da comunidade será a meta, pois é possível viver lado a lado, mas não unidos. Nós podemos viver como colegas, mas isto não nos faz, irmãos e irmãs.” 7.



A Igreja Latino-Americana aqui reunida em 2007, falou desta mesma realidade. Lembremos: “Num continente onde se manifestam sérias tendências de secularização, também na vida consagrada, os religiosos são chamados a dar testemunho da absoluta primazia de Deus e de seu Reino, em uma vida discipular, apaixonada por Jesus-caminho ao Pai misericordioso, e por isso, de caráter profundamente místico e comunitário, (...) radicalmente profética, capaz de mostrar à luz de Cristo as sombras do mundo atual e os caminhos de uma vida nova”.8
Seu papel hoje é mais exigente, aponta um monge, diante do fenômeno de pentecostalismo na Igreja Católica, ressaltando algumas características a seu ver, que nos desafiam: novo elitismo, subjetivismo, busca de milagres, consolo, ao invés de compromisso. Comunidades da vida por vezes mais apoiadas pelos bispos do que as formas históricas da Vida Religiosa Consagrada.
AS UNIÕES DAS FAMILIAS MONÁSTICAS E CONTEMPLATIVAS.
Outra constatação saborosa é ver-nos reunidos com a Virgem Aparecida como pólo centralizador. Dar continuidade aos primeiros movimentos de congregar as famílias contemplativas e monásticas do Brasil na Abadia de N. Sra. das Graças em Belo Horizonte nos anos 60. Temos entre nós testemunhas destes tempos. Naquela época tratava-se de aproximar as comunidades e responder aos apelos do pós-Concílio, com especial atenção à formação. Os primeiros passos foram vistos com grande desconfiança por parte da Santa Sé. Lembro-me bem de dois momentos, durante os encontros nacionais em Belo Horizonte, da visita de dois enviados pelo Vaticano para ver o que se passava com aquela centena de contemplativas reunidas. O medo da contaminação, da perda da identidade própria lançava sérias dúvidas da validade da iniciativa corajosa da Madre Luzia Ribeiro de Oliveira OSB, responsável por estes encontros, em colaboração com a CRB Nacional. Muito caminho foi percorrido desde então. O documento Verbi Sponsa encoraja ajuda mútua das famílias contemplativas e monásticas9. Embora o documento mencione encontros dentro das mesmas famílias religiosas, este encontro inter-congregacional acontece com o total apoio da Santa Sé, como fica evidente pela presença do Prefeito da Sagrada Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, o apoio dado por esta Congregação, bem como por nossa Conferência Episcopal.
Hoje as famílias religiosas encontram-se organizadas em federações ou em outras formas, como também a nível inter-congregacional e é notável o progresso quanto à formação, sendo o PROFOCO uma importante ferramenta. Seu novo perfil é objeto de interesse de todos nós. Uma preocupação expressa “é a formação para a vida monástica, considerando as fragilidades da juventude de hoje e de um mundo que sempre nos questiona.” Tal formação apresenta uma dupla necessidade: ser uma formação aprimorada, para dialogar com o mundo contemporâneo e quanto ao trabalho, ter uma formação de qualidade profissional, diante da necessidade de boa organização e métodos adequados, segundo o já citado Padre Martin Neyt.10.
Aqui neste encontro contemplamos coisas novas. Além das novas comunidades presentes pela primeira vez, estamos juntos, comunidades contemplativas, femininas e masculinas. Há a presença de alguns leigos, representantes dos muitos outros que vivem o espírito de famílias religiosas monásticas e contemplativas dentro de sua realidade secular. Este grupo presente entre nós sinaliza que nossa missão não depende tanto do número de membros de nossas comunidades, mas de sua forma de ser e estar no mundo. A presença de leigos expande para além de nossas clausuras o testemunho da busca de Deus, cria uma complementação a diversos níveis, dá-nos uma dimensão nova e revela a fecundidade espiritual de nossos carismas diversos na construção de uma sociedade permeada pelos valores evangélicos. Damos e recebemos. Estaremos abertos a esta nova forma de existir? Permitimos que a comunidade circundante complemente-nos, inspire-nos e nos provoque? Trata-se de entrar em uma dinâmica de partilha, na consciência de que nada é dado só para nós, mas, sim, para colocar a serviço do Reino. Maria, na Visitação, é eloqüente! Dá de sua pobreza, desloca-se, corre a servir. Necessário se faz desenvolver uma teologia do serviço, tanto dentro das comunidades como entre as comunidades e entre a comunidade ampliada que nos circunda e que hoje pode ser muito ampla.11 Certamente podemos citar muitos exemplos que animam e edificam nesta direção.
A abertura para a acolhida dos hóspedes é vista como parte integrante desta vida, como forma de evangelização, que leva a um encontro consigo mesmo, com os outros e com Deus. No entanto para muitas comunidades, em especial, as masculinas, é grande o desafio da integração das atividades pastorais intra e extra-claustro. A vida pastoral consume o tempo e energias em detrimento da vida interna.
O Abade Primaz Notker Wolf apontou ainda alguns aspectos essenciais para uma continuidade manter fecunda nossa tradição secular: “Aonde o Evangelho não é vivido, a vida monástica é superficial. Segurança, serenidade e um estilo de vida fácil com pouca atividade, não podem ser identificados com Vida Contemplativa. O Evangelho nunca prometeu conforto ou privilégios.” Mostrou ainda a urgência de viver o Evangelho com simplicidade e humildade, no nosso cotidiano, em todo o nosso comportamento. Preguiça, um estilo de vida fácil e confortável, não são parte da vivência monástica. Gratidão, responsabilidade, zelo recíproco um pelo outro, o são”. 12
Aqui temos um vocabulário denso de espiritualidade, busca que desafia o contexto de nossa sociedade consumista e pragmática, que, no entanto, não consegue sufocar a busca de Deus que atravessa todos os tempos, inclusive o nosso. Poderia se questionar esta busca, quanto a um conteúdo de proteção, abrigo aos desafios do mundo moderno. Cabe a cada qual averiguar a nota mais ou menos positiva do que se chama a “fuga mundi”, que tanto já tem sido discutida. No entanto, ela é inerente à vocação monástica e contemplativa: “fazer-se alheio ás coisas do mundo”, não só mundo oposto aos planos de Deus, mas também mundo enquanto o contexto normal da vida humana. O cristão tocado por Deus com a vocação monástica contemplativa, opta por um contexto diferente da vida normal, secular. Mas toda vocação traz algo parecido. Pense-se nos sacrifícios de uma vocação à medicina, a tantas profissões que envolvem abraçar contextos. Os chamados ossos do ofício. Nós temos os nossos. Algumas das pessoas desta enquete mencionam, como desafios, exatamente o assumir este contexto próprio.
Todos sabemos que para nossos pais na vida monástica, a Regra era o Evangelho. Bento, no Prólogo da Regra, pede que a fé nos “cinja e que guiados pelo Evangelho trilhemos os seus caminhos.”13 Este desejo continua sendo expresso, por jovens: Os monges e monjas de nosso tempo, de nosso país, precisam retornar às fontes da Tradição, aos exemplos dos Pais, e, sobretudo, ao Evangelho.
Enquanto uns apontam a falta de vocações, outros se alegram com a chegada de novos membros. De um modo ou de outro, há dificuldade na estruturação de uma Pastoral Vocacional para atingir as novas gerações que batem ou não a nossas portas. Falta incentivo e apoio à vida consagrada, especialmente aos candidatos à vida contemplativa, seja por parte das famílias, hoje muito desestruturadas, seja até por parte dos agentes de pastoral. Necessidade também de atenção às “novas portas” freqüentadas pelos jovens, perceber os avanços da informática e suas possibilidades.. No entanto, o Documento de Aparecida afirma que os religiosos “colaboram com a gestação de uma nova geração de cristãos discípulos e missionários e de uma sociedade onde se respeite a justiça e a dignidade da pessoa humana”, e fazem menção explícita à vida contemplativa enquanto “testemunha de que somente Deus basta para preencher a vida de sentido e de alegria” e que “infundam com sua oração um novo sopro de vida...”14 ..
Necessário desenvolver programas formativos eficazes e adequados ao ritmo da vida claustral, partindo do discernimento vocacional, atenção a todos as etapas da formação inclusive a permanente e a formação de novas lideranças. Desafio pode ser “uma escolaridade muitas vezes deficiente, pouco interesse pela leitura, pelo estudo e pela arte”, obstáculos enfrentados, na voz de uma relatora, com a consequente competição.
TRABALHO
Os entrevistados apontam igualmente a inadequação de muitos de nossos trabalhos rentáveis. Embora alguns falem de conquistas neste campo, continua viva a preocupação com o sustento e a subsistência do Mosteiro, e, mais uma vez, a capacitação para enfrentar o mercado de trabalho. Há grande tensão devida ao esforço para atingir esta meta sem cair no ativismo que põe em risco o ritmo próprio do claustro.
Refletindo sobre os diversos testemunhos, pode-se observar que uma mesma realidade é objeto de alegria e de desafio. De modo especial ressaltam os aspectos místicos, o conteúdo da vocação com forte acento espiritual, a vida comunitária, a forma de comunicação com o mundo, a chegada ou a falta de novos membros e o desafio de sua formação, perseverança e desenvolvimento. Creio poder afirmar que para nosso estilo de vida, a identidade não constitui tanto uma preocupação. Ela é clara. O modo de vivê-la e adequá-la ao tempo e lugar, sim, constituem o desafio. As comunidades monásticas e contemplativas continuam a atravessar os tempo. São sinais silenciosos, não fazem em geral grande alarde, mas estão aí.

Gostaria de voltar ao testemunho da comunidade trapista do Atlas, na Argélia, que contou com sete monges mártires em 1996, colocado em foco universal pelo filme premiado no festival de Cannes em 2010, “De Homens e Deuses”. Com grande arte, focalizaram-se os valores monásticos, a vivência fiel da oração coral e pessoal, da vida comunitária, em especial a relação de profundo respeito e comunhão dos monges entre si e com os vizinhos, a busca em comum e pessoal da vontade de Deus em circunstâncias dramáticas, o trabalho, seja intelectual, manual ou de assistência aos mais necessitados. Este conjunto faz desta comunidade um sinal dos mais eloqüentes dos nossos tempos, selado com a entrega até o martírio. Viveram o desejo expresso por outro de nossos interlocutores: “ser útil às pessoas permitindo-lhes viver melhor a vida humana e cristã, proporcionar o encontrar-se com o Cristo, contribuir da melhor maneira na realização do plano de Deus”, no caso, dentro do espírito do diálogo inter-religioso.
Mais uma vez citamos o documento do V CELAM: “Os povos latinos ... esperam muito da vida consagrada, especialmente do testemunho e contribuição das religiosas contemplativas (... ) que mostram o rosto materno da Igreja. (...) seu testemunho dos valores alternativos do Reino, mostram que uma nova sociedade (...) fundada em Cristo, é possível.”- 15

Sem pretensões, dentro da Igreja e da sociedade, no dizer de um jovem entusiasmado com sua vocação: “Pelo nosso modo de viver a vida cristã, somos responsáveis por manter sempre acesa a lâmpada da nossa vida escondida com Jesus Cristo em Deus, para que brilhe como profecia de novos céus e uma nova terra, e dizer a todos “o meu Senhor está vivo”.



Vera Lúcia Parreiras Horta OSB
Mosteiro do Salvador – Salvador- Bahia



1 GREGÓRIO MAGNO, Livro dos Diálogos II, Ed. Lumen Christi, RJ, 1996, pág. 90-93.
2 cf. Fl. 3, 20-21.
3 cf. NEYT, MARTIN, in “Si Loin, si Proche”, documentário da KTOTV: http://www.ktotv.com/videos- chretiennes/emissions/nouveautes/documentaire-si-loin,-si-proche.../00055496


4 cf. BENTO XVI, Porta Fidei, Ed, Paulinas, SP, 2011, pág. 18.
5 idem, pág. 23.
6 cf. DA 218.
7 WOLF, NOTKER, Conferência pelo Centenário da chegada das Monjas da Congregação Beneditina do Brasil, pro manuscrito, SP, 2011.
8 cf. DA 219-220.
9 cf. VS, 19.
10 ibidem.
11 Muitas destas reflexões derivam dos encontros do GRAM, Grupo de Reflexão de Administração Monástica, no âmbito da CIMBRA, Conferência de Intercâmbio Monástico do Brasil, criado há dois anos e de seus assessores, inclusive leigos.
12 ibidem.
13 RB Pról. 21.
14 DA 217,221.
15 DA 224.

Missão da Vida Religiosa Monástica e Contemplativa
                                               Frei Josaphat


A missão da vida consagrada, em seu elã contemplativo e sua radicalidade monástica é afirmar, manter e difundir o essencial do Evangelho, acolher a plenitude do plano divino, fazendo-a presente, ativa e fecunda no hoje da Igreja e do mundo. Na pregação de Jesus, preparada pelos Profetas e prolongada pelos Apóstolos, há uma primeira insistência sobre essa plenitude do dom da revelação e da graça como sendo a realização acabada do amor perfeito de Deus. Deus é definido como o Amor, e a epifania do Amor é o dom que ele faz de si mesmo, para suscitar uma torrente de doações de um puro amor gratuito.
Assim, a Nova Aliança é o dom pleno e total do amor infinito e universal de Deus. Mas, o amor tem sua pedagogia para se fazer acolher como merece. Jesus começa pregando o Evangelho, a alegre notícia de que o Reino de Deus chegou e pede a conversão total, a vida completamente mudada e doada de todo coração. Ela se torna contemplação assumindo toda a capacidade e toda a perfeição do conhecer, culminando em um amor que envolve tudo, todo o ser e todo o agir, fazendo da vida uma “chama viva”, sem deixar nada fora do incêndio que vai do tempo à eternidade. A vida cristã, a vida em Cristo, a vida iluminada e animada pelo Espírito de amor e comunhão, essa vida evangélica tende a realizar-se como uma incandescência mística, como uma união direta, imediata, com Deus. Está aí o mistério altíssimo e suave que a vida consagrada, contemplativa, monástica tem a missão de viver e fazer resplandecer por seu testemunho de ternura e de ruptura. Pois, a intimidade do amor exige o desapego total.
Em uma simples meditação vamos evocar como essa mensagem é o essencial do Evangelho. Foi renovada e atualizada com insistência por Vaticano II, e emerge qual grande desafio da Igreja diante e dentro do mundo atual. Mas antes, em pequeno prólogo que visa concretizar uma linguagem por vezes um tanto abstrata, vou dar-lhes uma amostra singela de como em minha juventude fui envolvido pelo encanto da vida contemplativa do Monte Carmelo, o que, no entanto, me levou, a ser apenas um simples frade pregador dominicano.

O que significou uma comunidade de contemplativas na vizinhança do seminário de formação clerical.

A minha adolescência foi marcada por uma crise. De uma hora para outra, a Igreja me pareceu medíocre de mais e para meu idealismo renitente não mereceria ser tida e chamada Igreja de Cristo. Depois de uns meses de decepções, meus formadores achando sempre minhas dúvidas um feixe de baboseiras, enfim optei por ser padre e trabalhar pela renovação da Igreja, para que ela seja uma esposa bonita, sem ruga e sem mancha, em sua união matrimonial com o Verbo encarnado. Faço o noviciado e começo os estudos superiores com os padres lazaristas.
E então um grupo de seminaristas descobriu um Carmelo do outro lado da rua, da Avenida Rio Branco da cidade de Petrópolis. E soubemos que naquele Carmelo havia um capelão, o Padre João Gualberto do Amaral, que era um grande sábio, que havia refutado o positivismo agressivo de Ferri e pregava debulhando João da Cruz para as irmãs e uns poucos ouvintes do povo. Todo domingo lá estávamos, uma meia dúzia de seminaristas, escutando o capelão e depois indo ao parlatório para ouvir explicações de uma irmã invisível, mas que era uma maravilha. Era Irmã Maria Amada. Ela trocava em miúdos para nós as veredas da Subida do Monte Carmelo, as belezas e as exigências da Viva Chama, para nós simples títulos de dois livros que nós tínhamos em casa e líamos com muito trabalho.
E um belo dia descobri o trilho que procurei seguir pela vida afora e de que lhes tento fazer uma pequena síntese. Para fazer algo pela Igreja temos que começar por optar pela contemplação que purifique e transforme a vida em uma concha que seja de puro amor; Neste momento em que estou confiando esses dados ao computador tenho diante de mim a imagem de João da Cruz e o poema Noche Oscura, a Noite Escura, que jamais me abandona.

O Evangelho, primeiro manual da contemplação mística.

Em um só versículo, o Evangelho de João condensa a verdade divina e a verdade humana que a Nova Aliança realiza em plenitude. Jesus declara que com sua pregação e sua presença se cumpre a promessa de “todos os profetas”. Eles predisseram que na época da benção definitiva “todos serão teodidatas” (Jo 6, 45). Nos últimos tempos, na Nova e Eterna Aliança, todos serão discípulos imediatos e exclusivos de Deus, E tudo está na docilidade pronta e total, à luz, à presença e à ação íntima de Deus no intimo de cada um.
Todo ensino evangélico dado em palavras, imagens e experiências bem humanas, será útil realizando a pedagogia do Mestre, mas precisamente na medida em que encaminhar e dispuser à escuta direta de Deus. E em todo esse longo debate, que vem a ser Jo 5-12, Jesus insiste em uma ladainha exigente e compassiva: Vocês não podem me escutar e acolher minhas palavras porque vocês não são de Deus, não tem afinidade com a verdade e a santidade de Deus. Alargando esse dado fundamental do IV Evangelho, reconhecemos que João nos abre a porta para penetrar a realidade, para nos confrontar com a finalidade última e perfeita a que nos conduz a Nova Aliança.
Quando cada um de nós se pergunta em que consiste finalmente o Reino de Deus, inaugurado pela pregação de nosso Mestre divino, obtém as resposta nos grandes e derradeiros escritos do NT Eles são frutos e testemunhos dessa Pregação de Jesus e da contemplação do Mistério da Verdade total a que o Espírito de Amor conduziu a comunidade apostólica. Então o Reino dos céus culmina e se realiza completa e plenamente no dom e na acolhida da Comunhão Trinitária. Essa Comunhão de vida e de amor se inaugura quando o Espírito do Pai e do Filho vem posar sobre cada um dos fiéis em comunhão, em comunhão de intimidades. E o Espírito passa a habitar, a permanecer, transformando em templo vivo e divino cada um e toda a comunidade dos fiéis.
A comunidade e cada um de seus membros, por palavra e mais ainda pela vida, darão o testemunho de Deus Amor, falando do que eles são, do que vivem, e em que convivem, pois são filhos e filhas adotados por amor e gerados pela graça transformadora do Deus Amor, de Deus amoroso e amado. A comunhão dos santos se constitui então à imagem e por participação da Comunhão da Trindade Divina; É a dimensão íntima da aliança. Para além do aspecto institucional, que perdura na Igreja enquanto sociedade, ela resplandece como a noite da união conjugal e transformadora. É a noite cantada por S. João da Cruz (a qual era explicada com muito gosto por Irmã Maria Amada):

Ó noite que guiaste,
Ó noite mais amável que a alvorada.
Ó Noite que juntaste
Amado com Amada,
A amada no amado transformada.

Um simples reparo no que há de profundo nessa mensagem bíblica fundamental de que vive a Igreja e muito especialmente constitui a opção prioritária das pessoas e comunidades consagradas. No alto da Montanha, no pico supremo de perfeição a que conduz o Evangelho, essa Noite escura e venturosa introduz os contemplativos e as contemplativas em duas vertentes, abrindo-lhes os olhos da inteligência e do coração a duas verdades estreitamente conexas. A primeira, absolutamente primeira, é a Comunhão de vida, de conhecimento e amor, que vem a ser o abraço eterno do Pai, do Filho e do Espírito na intimidade e no esplendor da glória. E a segunda verdade que decorre da primeira, qual dom da graça, que é a glória acolhida e vivida dentro da noite, essa segunda verdade é a participação que nos é dada da Comunhão trinitária em uma comunhão amorosa e contemplativa da Fé, da Esperança e da Caridade.
Aqui emerge e se define a originalidade da missão da vida consagrada, em sua densidade contemplativa e em sua exclusividade monástica. Ela consistirá precisamente nesse elã abrasador sempre crescente e no projeto de vivência e convivência para que este essencial do Evangelho, a comunhão do Pai, do Filho e do Espírito refulja como um incêndio que se acende e cresce pela fé, a esperança e a caridade. Como se insiste na necessidade de bem respirar, insistamos: nossa união à Trindade, ao Pai pelo Filho no Espírito Santo, acolhida, contemplada, amada na trilogia da atividade teologal, da Fé, Esperança e Caridade, eis o que constitui o centro e a fonte da vida autêntica para toda a Igreja. A missão da vida consagrada, contemplativa e monástica consiste em manter presente e atuante esse núcleo fundador ou essa fonte de vida no coração da Igreja, destinada a jorrar para o mundo. A prioridade dada, efetiva e constantemente, a este elemento primordial do Evangelho é, portanto, a característica dessa vida consagrada. É a originalidade singular que a inspira e guia na sua organização, em seu estilo concreto de vida, em sintonia com o momento histórico vivido pelo povo de Deus;

Vaticano II. A Igreja se vê e define como a comunidade mística de santos e santos.

Vaticano II é um concílio eclesiológico, não eclesiocêntrico, mas verdadeiramente teocêntrico, a começar por sua compreensão da Igreja. É o que se manifesta em suas opções de base, marca seus documentos mais típicos, inspira e orienta suas grandes teses, e, sobretudo, o que anima o desenrolar de seu projeto histórico e da sua busca de um paradigma eclesial, o mais evangélico e o mais humano e atual. Vaticano II surge e caminha como um carisma envolvendo toda a Igreja, brotando de um feixe de carismas pessoais e comunitários.
É dessa docilidade crescente ao Espírito Santo que surge e toma consistência o paradigma da Igreja, inspirado pela opção de Deus Amor universal. Vaticano II guarda e acentua uma fidelidade aos concílios anteriores, à grande tradição da Igreja. Mas ele emerge como singularmente original porque não visa expor doutrinas ou menos ainda condenar erros, mas tem uma orientação que se qualifica de pastoral, mas é na verdade teologal. É uma atitude espiritual abrindo-se à mística. Ela dá gosto e ativa a preocupação de contemplar Deus se dando e se revelando na Igreja, a mediadora escolhida para confidenciar ao mundo que Deus lhe tem um amor infinito. E, então, também a Igreja vai sendo contemplada e amada em sua vida interna e sua relação com o mundo, com a humanidade, considerada em sua vocação e sua situação de acolher Deus, mas com o risco de o relegar no bulício das religiões e das superstições...
Para um primeiro contato com esse caráter teocêntrico do Concílio, convém lançar um simples olhar sobre a Constituição de base, Lumen Gentium, Sobre a Igreja. O texto pouco trata da Igreja como instituição, como poder, como hierarquia. E o faz apenas em um capítulo (o capítulo III), Sobre a Constituição Hierárquica, especialmente o Episcopado, com a intenção de apontar para a necessária colegialidade.
Do conjunto dos oito capítulos, sete dão relevo à Igreja comunhão que integra e supera a dimensão da Igreja sociedade a ser bem administrada, mas sempre subordinada ao centro do plano de Deus. Que é a comunhão no amor, no dom, no serviço. Assim, após se elucidar a visão da Igreja como comunidade, vindo da Santíssima Trindade e a ela levando, de maneira concreta se mostra que ela é o povo de Deus, destacando-se a forte realidade dessa noção bíblica, Ela designa então o Reino de Deus em marcha, e a esse povo peregrino é confiada a qualidade e a responsabilidade dessa marcha, que designa concretamente um processo constante de santificação universal.
O Papa Bento XVI oferece uma ilustração graciosa dessa visão do Concílio, a qual se poderia dizer mística. Ao comemorar os quarenta anos do encerramento de Vaticano II, em sua homilia de 8 de dezembro de 2005, o Soberano Pontífice começa por declarar que o Concílio se apresentou mais como marial do que petrino, pois se consagrou com prioridade á santidade e ao amor da Igreja comunhão, e não aos aspectos institucionais e administrativos da Igreja como sociedade.

A missão da vida consagrada no centro ou no coração da Igreja.

Duas opões fundamentais e conexas da Constituição de base, Lumen gentium interessam diretamente nosso intento de elucidar a missão da vida consagrada, contemplativa e monástica.
A primeira é o amplo e profundo desenvolvimento da mencionada definição da Igreja como povo de Deus, no qual todos os membros são chamados à santidade e já se acham engajados nesse processo de dom de si e de comunhão com Deus, fonte de amor e de santidade. E essa vocação à santidade, de maneira muito coerente, é ligada à missão de irradiar a santidade. Anteriormente a qualquer mandato ou ministério confiados pelos Pastores, todos e todas na Igreja já estão incumbidos de anunciar e testemunhar o Evangelho. É uma missão enraizada no ser e na vida dos membros de Cristo e da Igreja. Um cristão medíocre, alheio ao chamado á santidade e à sua vocação missionária, é uma anormalidade segundo o Evangelho, cuja mensagem é relembrada por Vaticano II. Aqui e no conjunto de seus textos, o Concílio se mostra mais atento a renovar e reativar a Igreja, limpando-a dessas falhas internas, bem mais do que a exorcizar seus adversários externos.
A segunda opção é uma outra singularidade do Concílio. Ele destaca como elemento constitutivo da Igreja a vida consagrada. O que jamais tinha sido feito por qualquer concílio. Mas é o que está muito na coerência com a visão teológica global e com o paradigma eclesiológico de Vaticano II. Ele dá esse relevo aos religiosos e religiosas, não em concorrência com o conjunto dos fiéis. É sob a mesma inspiração do amor universal que a vida consagrada é valorizada, para poder vir em ajuda a toda a Igreja, para realizar de maneira eminente a vocação universal à santidade e estar a serviço dessa vocação, de maneira constante e eficaz.
Juntando essas duas opções de base, a vocação de todos os fiéis à santidade em sintonia com a exaltação da missão da vida consagrada, fica evidente que o maior empenho, a preocupação primordial e urgente do Concílio é despertar a Igreja á sua realidade, ao projeto fundador do Evangelho que estabelece a Igreja como o sacramento salvador e santificador, a que devem colaborar a diversidade e a harmonia dos ministérios.
Bem se entende por que o Concilio resiste a certas tendências que se batiam pela renovação e intensificação das condenações dos adversários externos da Igreja. Vaticano II se concentra no essencial, que constitui a força invencível da Igreja. A tradição mais autêntica sempre ensinou a professar na própria confissão de fé: creio não na Igreja poderosa, mas sim creio na Igreja santa. Creio na santidade de Deus presente e atuante nesta comunidade, que é o povo de Deus, consagrado inteiramente a Deus, comunhão eterna de Amor. Esta comunhão se efetua na Igreja pelas virtudes teologais e divinizantes, da Fé, Esperança e Caridade. E, então, relembrando a dimensão hierárquica da Igreja, o Concílio afirma essa propriedade evangélica da autoridade apostólica, sobretudo, como uma comunhão na partilha, no serviço e na colegialidade.
Assim, a identidade, o carisma e muito especialmente a missão da vida consagrada, em seu conteúdo, em sua forma e seus traços mais típicos, em sua expressão mais forte, a vida contemplativa e monástica, aparece, resplandece na maior afinidade com a identidade, o carisma comunitário e a missão primordial da própria Igreja fundada para cumprir o intento salvador e santificador de Cristo. Ela é enviada para abraçar o mundo, e tudo fazer para que ele abra e purifique os olhos da inteligência e do coração na acolhida de Deus Amor universal. Por sua essência e seu dinamismo, a vida consagrada é a realização, a proclamação e o incentivo constante dessa missão primordial da Igreja.
Convém concretizar nossa abordagem do Concílio e melhor realçar a visão teologal que ele nos propõe da Igreja e do mundo, no seu intento de oferecer uma base autêntica da existência cristã, especialmente em sua opção radical, que é a vida consagrada. Para assegurar essa leitura fiel de Vaticano II, um método bem singelo, mas eficaz será destacar as quatro Constituições, bem como os documentos que apresentam os dados e as orientações do caráter inovador do Concílio. Simplificando mais ainda, em um primeiro momento, se procurará dar toda a atenção aos prólogos, aos primeiros capítulos desses documentos, em que se condensam e se explicam os princípios fundadores, as opções determinantes dessa espécie de revolução de Deus, que, ainda uma vez, é a sua presença bem acolhida como Amor transformador e universal.

Uma primeira indicação a partir da Constituição sobre a liturgia. Felizmente um movimento litúrgico pré-conciliar tinha permitido a Vaticano II começar pelo que é o princípio mesmo e a fonte da vida da Igreja. Nessa primeira Constituição Sacrosanctum Concilium, logo de entrada se evocam as maravilhas do Amor de Deus, se condensa essa exposição contemplativa nesta simples sentença que contém todo o programa renovador da liturgia “a Obra da salvação continuada pela Igreja se realiza na liturgia” (Constituição citada, n.5). A valorização e renovação adaptada da liturgia tem como ponto de partida, como fonte primeira, o mistério divino que a liturgia contém e irradia, estabelecendo a famosa ponte, o vaivém de amor entre o céu e a terra.
A Constituição Lumen gentium, começa por definir a Igreja como o “sacramento” global da total reconciliação de Deus Amor com a humanidade, e ergue a noção da Igreja como a comunhão de graça, de fé, esperança e caridade. Ela é o projeto do Pai, revelado e realizado pelo Filho e animado como por uma nova alma infundida pelo Espírito Santo. Toda a nossa meditação aqui se enraíza nessa nova visão da Igreja, nova porque radicalmente evangélica.
Mas convém pôr bem em relevo a harmonia dessa visão central da Igreja com os dois polos dentro dos quais ela estende a sua missão, primeiro contemplativa, de ouvir e transmitir a Palavra da Revelação. O que se contém na Constituição Dei Verbum. O segundo polo é a missão de presença, de evangelização e promoção da humanidade, o que exige o contato com o mundo, reconhecido e acolhido em suas condições atuais, o que é o tema amplamente desenvolvido na Constituição pastoral Gaudium et spes.
Em síntese, pode-se destacar: as orientações de Vaticano II, destinadas a ativar e a priorizar a vida consagrada, não se contam apenas como uma das dimensões importantes do projeto conciliar, mas como o elemento essencial e a inspiração primordial para a vida dos fiéis, das comunidades e de toda a Igreja. Note-se que nesta definição de um paradigma fundador de compreensão não se trata primeiramente de destacar afirmações ou negações, mas prioridades na visão ordenada da revelação e da sua presença na Igreja.
Em exposições deste nosso encontro ficou bem clara a visão de Vaticano II sobre a identidade e o carisma da vida consagrada em sua dimensão contemplativa e monástica. Do Decreto conciliar Sobre a Renovação e a Adaptação da vida religiosa, Perfectae caritatis, destaco apenas duas passagens em que se concentra o essencial da visão conciliar que estamos meditando. Primeiro, em seu Prólogo, o Decreto nos envia à compreensão já estabelecida pela Lumen gentium sobre a vida consagrada, “cuja fonte, modelo e inspiração é a vida do próprio Senhor Jesus”. E a segunda sentença do Decreto contém a apresentação e exaltação da vida consagrada contemplativa e monástica. “Ela tem um lugar de destaque no corpo místico, oferece a Deus um sacrifício eminente de louvor, ajuda o povo de Deus por uma secreta fecundidade apostólica, refulgindo como a glória da Igreja e uma fonte de graças celestes” (Cf. Decreto citado, n.7).

Urgência e grandes exigências da missão da vida consagrada no passado, no presente e para o futuro da Igreja e da humanidade.

Voltamos à inspiração evangélica tal como foi atualizada pelo Espírito Santo mediante a atitude fundamental e as grandes atitudes e posições do Concílio Vaticano II.

- A fonte primeira e fundadora de sentido e compreensão é a opção teocêntrica do Concílio, o primado de Deus, o apelo a Deus Amor perfeito, infinito e universal, como princípio de todo ser e de todo conhecer, a finalidade última que dá razão a tudo o que existe.
- O Concílio atribui um sentido efetivo, operacional à doutrina tradicional de Deus Criador, Deus salvador e santificador, senhor e condutor da história. Essa visão teológica se mostra coerente em si mesma, na correlação desses atributos divinos, mas aqui resplandece a originalidade de Vaticano II: esse olhar sobre o amor ativo universal de Deus vem sempre colocado em referência com a marcha do universo, em que se reconhece a consistência das criaturas, e em referência mais profunda com a história vivida da humanidade. Assim, se põe em destaque a ação constante de Deus, em correlação com a responsabilidade pessoal e social do ser humano. A santidade de Deus se traduz então em uma oferta de graça, acompanhada de uma exigência de responsabilidade, de justiça e de solidariedade.
À luz dessa teologia abrangente, a ordem natural, leiga, profana das coisas, bem como das relações e organizações e estruturas sociais vem afirmada em toda a sua consistência; elas são reconhecidas em suas autonomias, nas diferentes formas de racionalidade, técnica, artística, política, econômica, cultural, mas sempre em correlação com uma racionalidade superior, ética que assume a realidade das coisas e das sociedades apreciadas no plano dos valores e direitos humanos. Tal é o paradigma analítico, espiritual, ético, que transparece nos diferentes domínios abordados pelos documentos conciliares; esse paradigma se encontra bem elaborado na Constituição pastoral Gaudium et spes.
Não há uma simples justaposição. Há uma simbiose e uma sinergia assumindo a vocação eterna do ser humano, elevado pela revelação e pela graça, ligando essa vocação transcendente com a busca de uma civilização de amor, que é o campo concreto e temporal em que se realiza o designo eterno de Deus. Esta é a visão global, o paradigma teológico de Vaticano II em toda a sua abrangência, em seu empenho de bem distinguir para unir de maneira harmoniosa todas as realidades. da história da salvação e da história profana e da experiência comum, incluindo os progressos e desafios da modernidade tecnocientífica.
Surge então a questão ampla e delicada>Como a vida consagrada: poderá assumir esse paradigma teológico do Concílio e torna-lo operacional e eficaz, respondendo aos desafios do mundo da tecnologia globalizada, sem deixar de atender à sede de contemplação divina que ele manifesta, embora de formas por vezes surpreendentes senão desconcertantes?
Ainda aqui, nosso ponto de partida e referência constante será a descrição e a compreensão do mundo moderno, bem esboçada por Vaticano II e confirmada pelos avanços do que se chama a pós-modernidade; O texto mais direto do Concílio vem a ser a Constituição pastoral da GS, em sua I Parte.
Nela, Vaticano II leva a acabo a difícil e delicada atitude inaugurada por Leão XIII, continuada por Pio XI e Pio XII, no sentido de discernir os valores e direitos humanos e mesmo as chamadas liberdades modernas e dissociá-los dos seus protagonistas anticlericais, e assim iniciar o processo do que será um humanismo integral, justo e solidário. Esta visão humanista começa a ser vista então em sintonia com os valores evangélicos, de que seriam até as felizes repercussões no plano da secularidade e da laicidade.
O importante para nossa reflexão é a decisão serena de Vaticano II de ver e analisar a humanidade atual como ela é, reconhecendo que muitos dos valores, das liberdades e das reivindicações que a modernidade e a pós-modernidade proclamam podem e devem ser confrontadas com o Evangelho, Nesse confronto, uma afinidade pode ser discernida na medida em que a moderna busca de emancipação e autonomia, não deslize no egocentrismo utilitarista, mas se deixe julgar e retificar, e passe a assumir a defesa e a promoção da dignidade da pessoa humana e a priorizar o bem público que a sociedade visa ou deve visar.
Tal é o processo intentado pelo Concílio, e tal a atitude consequente que ele propõe a ser vivida e difundida pela Igreja. Mas, sobretudo, está aí a inspiração teológica, digamos mesmo teologal, que lhe serve de critério decisivo, a saber, a visão profunda e abrangente de Deus Amor universal, Criador, Salvador e Senhor da história e da socie4dade.
Vaticano II nos convida e mesmo nos impele a uma espiritualidade radical e englobante. Nada de concessões que viessem atenuar ou reduzir a visão teocêntrica, e nenhuma hesitação quanto ao Deus Pai, revelado em Cristo e por ele dado á humanidade O Concílio chega a declarar que Cristo “de certo modo, está unido a todo ser humano” (GS 22, 2) e que o Espírito de Cristo age no coração dos que professam uma religião não cristã (AG 2, 13), que ele está presente e age na história (GS 10, 2), para o cumprimento do plano amoroso de Deus.
Sem desenvolver esses temas que ocuparão as nossas atenções nestes quatro anos de comemoração do cinquentenário de Vaticano II, destacamos as teses seguintes propostas na perspectiva deste nosso e encontro;
- Na inspiração do seu próprio projeto e na proposição que faz de um paradigma renovador e mesmo inovador para a Igreja, o Concilio, antes de tudo e sempre, dá prioridade ao teocentrismo evangélico, tudo vê, tudo julga ensina e propõe á luz e em referência ao Deus Amor universal. Na perspectiva dessa teologia, rigorosamente fiel à Revelação em sua expressão bíblica e na Tradição da Igreja, Vaticano II inicia o confronto desse paradigma teológico com uma ética mundial e com o projeto de uma “civilização do amor,” na expressão difundida por João Paulo II.
Merece menção especial uma dupla exposição da GS que encerra o Concílio. A primeira dessas exposições vem a ser o esboço de uma antropologia, atenta à realidade humana concreta, progressiva e transcendente, que culmina em uma cristologia e uma escatologia, o que constitui a mais segura e ousada atualização da teologia da Encarnação Redentora, da salvação eterna e da promoção humana. (I Parte da GS).
Finalmente, elabora uma visão e mesmo um projeto ético e histórico de uma nova ordem política, jurídica, econômica, como alternativa válida e urgente para os sistemas nacionais, regionais e internacionais e para o grande sistema constituído pela rede dos setores e sistemas atuais. (Cf. II P. da GS).

supremo desafio: decifrar e enfrentar as místicas dissimuladas nas ideologias da pós-modernidade.

A missão da vida consagrada identifica-se com a missão da Igreja no que ela tem e é de mais profundo, de essencial, de dom divino de que a humanidade tem a maior necessidade, a que ela aspira mesmo sem saber qual a mensagem e a fonte dessa aspiração. A Igreja deve ir ao encontro do mundo, levando-lhe o que ela tem de melhor, de propriamente divino. Simplificando, se poderia dizer que o diálogo ecumênico inter-cristão e inter-religioso deve começar, enraizar-se, prolongar-se e fortalecer-se, sobretudo como intercâmbio de experiências espirituais. A mística evangélica é chamada a abrir da parte cristã o contato com as diferentes formas de mística do Ocidente e particularmente do Oriente. Este será um dos aspectos essenciais da missão da vida consagrada, em sua expressão contemplativa e monástica.
Semelhante missão deverá estender-se a outra tarefa mais delicada e mais difícil, pedindo imenso grau de discernimento e mesmo de sabedoria criativa. Trata-se do encontro e do diálogo com as modalidades de contemplação em seu feitio religioso ou profano, tais como são praticados, ostentados ou exibidos, como é do estilo publicitário ou propagandista da modernidade.
O absoluto imutável é o utilitarismo econômico, levando à busca de bom lugar e de algum conforto no reino do mercado. Mas essa espécie de dança do vale tudo e da incansável mudança de parceiros, perdura e cresce porque obedece a alguns valores que mudam de máscaras, mas não de realidade profunda. A sabedoria evangélica, o discernimento propriamente místico é mais do que necessário para guiar a Igreja e a vida consagrada, em sua fidelidade aos verdadeiros valores e na pedagogia para apresentá-los ao mundo, cada vez mais seduzido e manipulado pela civilização da falsa trindade pagã: Mercúrio, o deus do mercado, dos negócios e dos ladrões, de Vênus, a deusa dos amores e dos prazeres, e de Apolo, o deus da forma, da beleza e das beldades.
Mas essa idolatria, essa mística idolátrica é bem humana, bem enraizada em certo humanismo, que se apoderou da modernidade desde a Renascença, e se vai estendendo às vagas de pós-modernidade com o predomínio do individualismo egocêntrico.
A modernidade buscava uma emancipação egocêntrica, dos indivíduos, dos grupos, das castas e de toda a sociedade, apelando para a Razão, dita em toda a verdade no século XVIII, a deusa Razão. A pós-modernidade prolonga o apego á razão como instrumento de libertação de toda autoridade externa ou superior ao indivíduo, quer sempre identificar-se com a luz, em oposição às trevas do passado, das velhas famílias e das religiões rançosas. Mas o supremo valor típico da pós-modernidade é a experiência, a experiência de cada um. É a experiência de felicidade neste momento de egocentrismo individual ou partilhado na quadrilha dos que acertaram ao menos por um momento com a doçura do prazer. E, mais ainda, exalta-se a experiência da ventura do ter cada vez mais e de se impor pela posse do poder ou de seduzir uma galera pelos encantos da beleza.
Muitas vezes se condena o relativismo do mundo de hoje. Na realidade, o que o caracteriza mesmo é o absolutismo do individualismo isolado ou dos individualismos em quadrilhas. O absolutismo permanece a fonte constante de uma variedade de opções relativas, porque buscam o absoluto da felicidade nas ofertas sempre crescentes de toda espécie de consumismo.
Convém, portanto, começar pelo Absoluto, pelo “Único necessário” do Evangelho, assumido pela vida consagrada e confrontá-lo com o absoluto proliferando em todos os santuários e todas as idolatrias do consumismo, do erotismo e do imperialismo pós-moderno. As religiões e até suas expressões místicas, em um primeiro momento, parecem assumir o caminho da facilidade. Uma primeira atitude religiosa corrente é exorcizar este mundo, esconjurando todas as suas formas satânicas. Mas, semelhante opção de descartar o mundo moderno vem parasitada por uma escolha que coincide com a aceitação do mesmo egoísmo sob disfarce religioso. As religiões se tornam outras tantas capelanias do consumismo, propondo o deus ou os deuses da prosperidade, Vão até ao encontro dos marginalizados e excluídos, impedindo que suas reivindicações estraguem as festas dos ricos e privilegiados. Entram no jogo da concorrência, fazendo a oferta da religião da terapia, da resignação, de busca confiante de milagres.
Note-se que este mundo não está lá longe. Ele viola todas as privacidades, ele penetra todas as famílias, criando-as a sua imagem e a seu serviço, o que acontece até com as famílias religiosas. Surgem e se multiplicam certas formas bem lindamente embaladas de orações, de meditações, de contemplações, em geral importadas, com mais ou menos fidelidade tomadas às veneráveis religiões da oração contemplativa e mesmo monástica.

Conclusões e sugestões: A vida consagrada tem por missão ser a força graciosa e transformadora de Deus Amor, assumindo e elevando a vida humana nas condições atuais da vida virtual, informatizada, que caracteriza o mundo tecnológico e globalizado.

Todas as pessoas e as comunidades consagradas realizam e são chamadas a realizar de forma eminente e exemplar aquela missão que Vaticano II atribui a toda a comunidade dos fiéis. É a missão evangelizadora, santificadora e retificadora do mundo, em virtude da participação batismal no sacerdócio, no profetismo e da autoridade divina de Cristo, o Verbo encarnado e redentor. A vida consagrada tem essa missão de ajudar a humanidade a encontrar sua vocação de eternidade e, ao mesmo tempo, de colaborar com o mundo profano para que a sociedade se realize na justiça, na fraternidade e na paz.
Para bem situar essa missão em sua condição cada vez mais eficiente e exigente no mundo da tecnologia globalizada, convém reconhecer e analisar três paradigmas de vida, de existência pessoal e social, correspondendo a três patamares de realização humana, que brotam do que a humanidade pós-moderna encerra de mais típico.
Distingue-se, primeiro, o tipo de vivência e de convivência, de existir como pessoa, parceiro da comunidade familiar, das relações comunitárias e sociais realizando-se de maneira natural, com os recursos e os limites de cada ser humano, com uma ajuda técnica que venha apenas amparar e prolongar as relações diretas e imediatas entre as pessoas.
O segundo paradigma de vida, de existência ou de coexistência é caracterizado pela predominância da técnica, que vem progredindo desde os últimos séculos até engendrar uma humanidade informática, dotada de uma qualidade e sendo mesmo uma existência virtual. A tecnologia por sua ação profunda e continuada criou um mundo imaginário e afetivo, em simbiose com o mundo simplesmente humano, mas tendendo a penetrar e a manipular mais e mais esse mundo simples e ingenuamente humano. Podemos discernir então os valores humanos, a dignidade da pessoa, da mulher, do jovem e os encantos da criação, em oposição aos valores enaltecidos, idolatrados do ter, do poder, do parecer e do aparecer, de dominar e de seduzir. Exaltam-se a forma, a personagem informática, em contraste com a personalidade, e parasitando-a e corroendo-a sempre mais e mais, em uma sociedade que, em tudo, tende a virar teatro e espetáculo, em que todos são espectadores e atores simultaneamente. Diríamos que todos e todas tentam desfilar na passarela que lhes é accessível, mesmo custosa e menos rendosa.
O terceiro paradigma de existência é a vida espiritual, evangélica, de que a vida consagrada é o modelo eminente, em que a vida humana é chamada a culminar, na intimidade e na transcendência, vivendo como ser no mundo e como criatura e filha de Deus. Para tender a esse projeto divino e humano será preciso utilizar, com a máxima sabedoria e firmeza, os recursos convenientes da informática, servindo-se de suas obras e de suas redes, dos maravilhosos instrumentos da tecnologia. Mas, aqui bate ponto. É imprescindível não se deixar manipular pelo sistema da informação, dotado de sua magia imaginária, afetiva, de uma linguagem toda envolvente insinuante e grandemente erótica.
A existência virtual, informática encontra sua seiva, seus interesses, suas paixões, opções e motivações nas redes de programas, de espetáculos, de vidas reconstruídas artificialmente e que engendram curiosidades, sonhos, desejos de caráter artificial. Cria-se o ciberespaço o universo e a sociedade virtuais, comportando o amor e feixes de atividades e relações puramente virtuais, tecidas de imaginário e de afetividade, ambos construídos pelo predomínio de uma influência artificial vinda do sistema de comunicação, cujo interesse primordial é econômico.
A vida consagrada enfrenta esse desafio, próprio ao nosso tempo. Os adversários tradicionais da espiritualidade, o mundo, a carne, o demônio, todo o feixe dos vícios capitais, todo esse universo do Maligno persiste, no mundo informatizado, recebendo uma fisionomia e uma força mais aguçada e mais sedutora, pedindo um discernimento e um autodomínio mais lúcido e mais robusto do que nos séculos passados.
Recordamos o dado primordial que orientou nossa reflexão: a grande força da Igreja é a vida consagrada que testemunha o Evangelho a energia mística transformadora da humanidade.
Em termos evangélicos: tudo está em sermos pessoas e comunidades teodidatas, unidas e dóceis ao Deus Amor, contemplado e servido na Comunhão Trinitária de amor que Ele é e nas redes e comunhões de amor que com Ele e por Ele haveremos de estar tecendo dia e noite. Concretamente hoje, temos de buscar apaixonadamente as formas pessoais e comunitárias da experiência de sermos teodidatas.
Na perspectiva propriamente teológica, como reconhecermos as formas de presença do Deus Amor no bulício tecnológico, mas também nas aspirações, nas atitudes nos valores verdadeiros ou falsificados no mundo de hoje.
E voltamos ao centro da vida consagrada, contemplativa e monástica O amor gratuito, o puro amor, é a força divina da graça que tem que iluminar, incandescer e transformar um mundo do utilitarismo erigido em sistema de vida pessoal e social. São João da Cruz proclama em uma sentença bem condensada: “A menor parcela de puro amor, em sua aparente inutilidade, é no entanto mais preciosa aos olhos de Deus e aos olhos da alma, é mais proveitosa à Igreja, do que todas as outras obras juntas” (Cântico Espiritual, B, Estrofe 29, 2).
Bem se entende porque Vaticano II encerra sua magnífica constituição sobre a Igreja (Lumen gentium, capítulo 8) com um olhar contemplativo sobre a mulher mais humilde, mais simples, que jamais desfilou pelas passarelas da vaidade, mas foi e é eternamente a agraciada de Deus, a bem-amada do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Na terra e no céu, ela resplandece como a imagem mais perfeita, que uma criatura possa ser, da infinita e suave amabilidade de Deus.

BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA.
Obras do Autor afins ou conexas com o tema abordado;
Contemplação e libertação, Ed. Ática, São Paulo, 1995.
Santas Doutoras, espiritualidade e emancipação da mulher, Ed. Paulinas, São Paulo, 1999.
Crer no Amor, visão histórica, social e ecumênica do “Creio em Deus Pai”. Ed. Loyola, São Paulo, 1999.
Falar de Deus e com Deus, caminhos e descaminhos das religiões hoje. Ed. Paulus, São Paulo, 2004.
Ética e Mídia, liberdade, responsabilidade e sistema, Ed. Paulinas, São Paulo, 2006.
Ética mundial, esperança da humanidade globalizada. Ed. Vozes, Petrópolis, 2010.
Paradigma teológico de Tomás de Aquino. Ed. Paulus e EDT – Escola Dominica de Teologia, Coleção Dialogar, São Paulo, 2012.





O LUGAR ECLESIAL DA VIDA RELIGIOSA
MONÁSTICA E CONTEMPLATIVA

Dom Gregório Paixão, OSB1

  1. PROVOCAÇÕES HISTÓRICAS

1. Era uma manhã de domingo; ensolarada, como são quase todas as manhãs em Salvador. O fluxo de jovens diante do auditório do Colégio das Irmãs Sacramentinas era imenso. Mil novecentos e oitenta e dois era o ano. Vivíamos agora em uma sociedade livre da ditadura militar e reconhecíamos nossa Igreja como vitoriosa, por ter sido protagonista, em sua missão profética, nas lutas por um Brasil democrático.

2. A multidão dos jovens que aguardavam diante do auditório fora convocada no intuito de animar os vocacionados da Bahia e de Sergipe, já que experimentávamos uma visível evasão das vocações à vida religiosa. Creio que éramos, entre candidatos, postulantes, noviços, junioristas e religiosos consagrados, cerca de 300 pessoas. Eu ainda era candidato à vida monástica no Mosteiro de São Bento da Bahia e estava ali, vindo de Aracaju, especialmente para participar do encontro, pois pretendia, no ano seguinte, ingressar na abadia soteropolitana. Estudava na Universidade Federal de Sergipe e precisava decidir entre as cadeiras universitárias e o Mosteiro.

3. Todos sentados, um silêncio sepulcral espalhara-se no auditório das sacramentinas. Eu estava no meio da platéia, ao lado dos formandos do Mosteiro, todos de roupa civil, para ouvir a conferencista convidada, à qual cabia dirigir uma palavra de incentivo aos vocacionados de primeira hora, motivando, ainda, os que já estavam nas fileiras fraternas.

4. A conferência foi excepcional. Não lembro o nome da palestrante, mas seria capaz de redesenhar sua fisionomia, com seu cabelo curto e loiro, já marcado pelo passar dos anos. Ela conseguiu levantar o auditório com suas afirmações categóricas, com suas certezas acadêmicas e com sua convicção de consagrada. Entretanto, não observando a diversidade das escolhas, jogou um balde de água fria sobre alguns jovens que desejavam ingressar na vida monástica e na vida contemplativa.

5. Nossa conferencista foi enfática. Afirmou, dentre outras coisas, que a Igreja não tinha mais lugar para uma vida que não fosse inserida. Que era inconcebível, após as opções feitas pela Igreja do Brasil, jovens dedicarem-se a uma vida contemplativa e desencarnada. Enfatizou, convicta, que era preciso libertar-se das grades.

6. A indignação dos “alienados” se tornou ainda maior após a conferência, quando alguns jovens reconhecendo-nos “monges”, resolveram rechaçar nossa escolha, convencidos de que caminhávamos na contra-mão da história e das opções da Igreja.

7. Mesmo não entendendo a postura apresentada pela conferencista, resolvi desconsiderar uma pequena parte do seu ensinamento – aquela que menosprezava a minha escolha – certo de que “a loucura que Deus escolheu para confundir o mundo2 nunca será entendida por aqueles que só entendem do mundo. Assim, arrisquei... segui meu caminho... e agora, trinta anos depois, posso dizer com convicção: aquela senhora estava errada.

8. O relato histórico e pessoal não é, de modo algum, uma crítica atemporal. Visa tão somente enfatizar um olhar unilateral e negativista que pode contaminar todos os que escolheram para a si a ditadura do pensamento único, tornando-se algozes dos que ousam pensar diferente. Creio, também, que a religiosa em questão apresentava idéias que eram suas e que, de modo algum, comungavam com o pensamento da Igreja no Brasil e com os ensinamentos do decreto Perfectae Caritatis do Concílio Vaticano II.3

9. Na verdade, vida ativa e vida contemplativa dividem adequadamente a vida humana.4 O valor de uma não pode diminuir o valor da outra. A ação se nutre da contemplação, pois sem contemplação nossas atividades periféricas nos arrastam para a superfície. A contemplação nos ajuda a ver o rosto do Senhor naqueles que sofrem. Nisso comungam a vida religiosa ativa, a vida monástica e a vida contemplativa.

II. HISTÓRICAS PROVOCAÇÕES

10. A vida monástica e a vida contemplativa encontram-se inseridas no contexto eclesial da pós-modernidade. Sofrem as mesmas alegrias e dores de todas as ordens e congregações, e deseja participar desse momento histórico, que reconhece também como seu, podendo contribuir eficazmente na busca das alternativas desejadas por todos. Ela toma para si a responsabilidade dos quase 1800 anos de experiências vividas, entre quedas e reerguimentos. Sua origem se dá no tempo dos mártires, expande-se após o Edito de Milão, ultrapassa as três fases da Idade Média, sobrevive na Modernidade e refunda-se no Mundo Contemporâneo. Não será diferente na Pós-Modernidade.

11. O monaquismo do século III foi um movimento de retorno às origens, resgatando o fervor noviço encontrado nas nascentes do cristianismo. Ele surgiu espontâneo, como expressão do ser humano que busca, com o olhar voltado para os mistérios divinos, decifrar os enigmas da terra, desejando realizar o eterno no tempo.

12. Os primeiros monges cristãos construíram sobre a Sagrada Escritura o alicerce da vida que empreenderam, baseando-se nos exemplos de personagens bíblicos que viveram incondicionalmente para Deus, como o Profeta Elias e São João Batista. Entretanto, foi na pessoa de Jesus Cristo que os monges e contemplativos do século III enxergaram o fundador da vida consagrada.

13. Advindo de uma família pobre de Nazaré, Ele empreende sua obra salvífica sem endereço fixo, sem acumular bens, escolhendo a vida celibatária, convidando todos a construírem um mundo divinamente humanizado, alertando-os para a fluidez das coisas terrenas e apontando a perpetuidade das eternas. Seu convite a um seguimento despojado o faz declarar a seus discípulos: “qualquer de vós que não renunciar a tudo o que possui, não pode ser meu discípulo”.5 Tendo, assim, como modelo inspirador o próprio Jesus, casto, humilde e totalmente devotado à obra do Pai, surgiram múltiplas vocações ascéticas, que contribuíram, embora não o soubessem, para o nascimento da vida religiosa tal como a concebemos em nossos dias.

14. Na complexidade e riqueza do seguimento, a vida monástica e a vida contemplativa continuam sendo presença viva na Igreja. Dados oficiais do Vaticano, afirmam que o número de monges católicos no mundo totaliza-se em 12.768, residentes em 905 mosteiros. As monjas e contemplativas, por sua vez, chegam ao impressionante número de 48.493, residentes em 3.520 mosteiros.

15. A apresentação dos números acima é suficiente para dizer que não pode passar despercebida a vida e a atuação das comunidades monásticas e contemplativas espalhadas pelo mundo.

III. O LUGAR ECLESIAL DA VIDA RELIGIOSA MONÁSTICA E CONTEMPLATIVA

16. Os novos ideais da contemporaneidade tornaram a sociedade sedenta de espaço. A Terra ficou pequena para nós e a Lua já não nos basta; queremos ir a Marte. Se possível, ao Sol. O desejo de invadir o orbe terrestre gerou o fenômeno da globalização. A sede não é só de espaço, mas de ocupação de espaço, expansão de novas idéias, pelo simples desejo de gerar em toda a sociedade o sentido de pertença universalizante.

17. A Igreja, filha do seu tempo e inserida no mundo, sofre, também ela, por meio de seus membros, as influências positivas e negativas da sociedade pós-moderna, e luta, sem cessar, para dar respostas profundas em meio ao caos da superficialidade percebida. É no borbulhar desse mundo sedento de respostas – porque imaginou ter encontrado todas – que a vida religiosa monástica e contemplativa desenvolve seu carisma, assumindo seu lugar eclesial e sua missão.

18. Mas como encontrar o próprio lugar se o vemos invadido por tudo e por todos? Quando nos encontramos perdidos, no meio de um oceano avassalador, de nada adiantará confiarmos nos mapas. É fundamental consultar um GPS6 para sabermos onde estamos. E o GPS da vida contemplativa nos confirma que estamos no mundo onde “Deus viu que tudo era muito bom”;7 Ele que “amou tanto o mundo, que deu seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna”.8 Nós, monjas, monges, contemplativas e contemplativos fomos educados a não amar o que é mundano, mas não podemos fugir da missão de amar o que Deus amou e buscar salvar tudo o que Deus criou.

19. Nossos pais do deserto nos ensinaram que a “fuga mundi” é conseguir nortear a nossa vida no Deus das coisas, e não nas coisas de Deus. Desse modo, estamos continuamente desenvolvendo nosso carisma no lugar onde estamos inseridos, defendendo nossos valores basilares, influenciando positivamente o núcleo onde habitamos, lutando para não sermos sugados pelo secularismo, pelo ativismo e pelo individualismo. Onde se encontra, o contemplativo deve assumir uma existência contestatória, que suscita novidade e provocação. Assim, caracteriza-se antes por propor perguntas que dar respostas.

20. O Concílio Vaticano II nos chamou a viver o núcleo originário da nossa vocação. Não podemos buscar respostas fáceis para os problemas atuais que encontramos na vida monástica, pendendo para a vida clerical, ou para a vida religiosa ativa, ou para a vida dos leigos. Cada seguimento religioso deve reconhecer o seu núcleo originário. Não devemos imaginar, tão pouco, que as outras experiências de vida cristã terá êxito se pender para o modo de vida que levamos.

21. Assim, cabe-nos reafirmar valores fundamentais que não podemos abandonar, como a centralidade da pessoa de Jesus, a espiritualidade trinitária, o amor incondicional à Sagrada Escritura e o apelo à vida comunitária. Entretanto, existem estruturas ultrapassadas que precisam ser transformadas, já que não correspondem mais às exigências atuais da vida que levamos. Cabe a cada comunidade superar essas estruturas, jamais se encaminhando para os modismos, que são sempre superficiais e reducionistas.

22. Percebemos, assim, três atitudes diferentes de algumas comunidades monásticas e contemplativas: as que, observando o cair das folhas da árvore, por medo do tempo presente, resolveram colar essas mesmas folhas nos galhos secos, uma a uma, com durex. Outras comunidades, seduzidas pela secularização, resolveram arrancar a árvore pela raiz, imaginando-se modernas. Outras, porém, aproveitaram as folhas caídas para fazer adubo e, com ele, alimentar a árvore que fenecia. Estas últimas continuam fazendo o agiornamento pedido pelo Concílio e, certamente, sobreviverão às intempéries.

23. Não podemos, de modo algum, nos afastar do carisma dos nossos fundadores. As adaptações são mais que necessárias, mas o espírito do carisma deve permanecer sempre. Porém, nosso modo de entender nossos carismas precisa ser rejuvenescido continuamente. Disso depende a vitalidade de nossas comunidades.

24. Ser contemplativo, em qualquer tempo e lugar, é tornar-se humano – defrontar-se com a própria existência e empreender a busca de dar-lhe um sentido mais pleno e totalizante. Não é coisa fácil nem banal, tornar-se humano; isto é sempre desafiador! Ao contrário, é antes com a desumanização que nos deparamos: o desemprego, a pobreza, a fome e a violência, frutos de nossa indiferença diante do mal e da injustiça. Ao apresentarmos ao mundo nossa humanidade – renascida em Cristo – assumimos o compromisso de amar o Deus dos homens e os homens de Deus. Nisso consiste o primeiro e o segundo mandamentos da vida das contemplativas e dos contemplativos.9

25. O que fazer, então, diante de tantos desafios, para encontrarmos o nosso lugar no coração da Igreja? Basta ser, coerentemente, o que somos: monjas e monges, contemplativas e contemplativos. Nosso carisma é universal. Nossa liturgia deve refletir o que cremos, fazendo com que nossa mente concorde com nossa voz. Nossa oração coral não nos coloca apenas em contato com Deus, mas nos torna orantes universais, à medida que nossa oração, fugindo de todo individualismo, centra-se nas necessidades de todos os homens e mulheres que se encontram no orbe terrestre, embora estes não saibam que todas as comunidades monásticas e contemplativas oram pelos que não oram. Desse modo tornamo-nos cidadãos do mundo, por mais que os cidadãos do mundo não compreendam nossa vocação.

26. Assim pensando, nossos mosteiro e conventos devem exercer, na sociedade contemporânea, uma ética da estabilidade e do trabalho, denunciando a cultura do materialismo competitivo, que destrói a cultura da paz, que marginaliza os pobres e é fator preponderante para a destruição da natureza e do individualismo galopante, que fulmina as relações sociais. Nosso louvor a Deus deve se dar mediante a liturgia assídua e diligente; o trabalho manual, intelectual e artístico, fielmente realizado no silêncio exterior e interior; a caridade recíproca, e em especial com os que sofrem e os mais pobres, na obediência e na humildade.

27. Nossa adesão a Jesus pela vida monástica ou contemplativa não nos dá o direito de nos sentirmos menos comprometidos com a vida apostólica. Devemos ser suplementos de alma, orando pelos que não oram. Nossos conventos devem sempre ter as portas abertas aos mais pobres e aos aflitos de todas as classes sociais, que nunca faltam à portaria de nossas casas, acolhendo neles o Cristo que vem. Nossos parlatórios e hospedarias devem sempre estar abertos aos irmãos, num trabalho de pregação contínua da Palavra que acolhe e edifica. Não podemos estar à parte da vida eclesial, mas nos fazer conhecedores da vida da Igreja, unidos ao Santo Padre, aos bispos, sacerdotes e diáconos e a todos os cristãos, numa luta constante pela implementação do Reino.

28. Se nossas comunidades forem sinal de comunhão neste mundo, as pessoas verão que poderão experimentar em suas vidas a misericórdia, o perdão e a reconciliação que tanto necessitam. Esse testemunho deve estar na nossa maneira de conviver e orar.

29. Os conventos e mosteiros contemplativos têm vocação nata para uma espiritualidade de comunhão e de acolhimento. Essa comunhão é universal, no sentido de uma ecologia humana e espiritual, respeitando as diferença, num diálogo profícuo com as culturas. Neste sentido, nossas casas podem ser lugares onde se desenvolve um ecumenismo sadio, uma cultura de paz e de defesa dos direitos fundamentais de todas as criaturas.

30. Precisamos ter pleno conhecimento das decisões tomadas pelo episcopado brasileiro, que sempre nos dirige uma palavra carinhosa nos documentos oficiais. A eles nos uniremos pela oração e pelo desejo de colaborar na evangelização, dentro do nosso carisma específico. Devemos, ainda, trabalhar em parceria com os consagrados da Vida Religiosa Ativa e dos Institutos, pois os seus braços são capazes de alcançar o que os nossos não atingem. Santa Terezinha ensinou-nos a estar ao lado de cada missionário presente ao redor do mundo, por meio de nossa oração, apoio e carinho fraterno.

31. Muitos mosteiros contribuem para a evangelização pela pastoral da hospitalidade, abrindo seus espaços externos para o acolhimento de hóspedes e grupos de reflexão. Outros prepararam seus religiosos e religiosas para escrever, ensinar, traduzir, pregar, além de inúmeros ofícios que fazem para o sustento de suas casas e a evangelização dos povos. Podemos, assim, contribuir na “pastoral de fronteira”, por meio da Internet e dos mass media, sem perder o justo equilíbrio de nossas atividades. Os sites monásticos, com especialização em fotos e textos espirituais, estão entre os mais visitados do mundo, mostrando que nossa vida continua encantando os próximos e os distantes.

32. Lembremo-nos, ainda, da contribuição à educação dada pelos inúmeros colégios espalhados pelo Brasil sob a direção de monges, além dos trabalhos sociais desenvolvidos por nossos mosteiros e comunidades contemplativas, muitos deles inseridos em bairros periféricos, colaborando para o sustento dos pobres mais pobres.

33. O equilíbrio religioso e psíquico das comunidades deve ser um testemunho para a sociedade onde nós vivemos. Cabe-nos enfrentar, sem medo, por meio de contínuo diálogo e revisões comunitárias, o procedimento desequilibrado de alguns membros de nossas comunidades, descobrindo as causas de certos comportamentos, que nascem por doenças pré-existentes, por escolhas erráticas ou por influência de “comunidades doentes”. Não podemos perder nosso tempo com pseudos-problemas, gastando nossas energias em situações que em nada contribuirão para o crescimento individual e coletivo de nossas comunidades. Não existem soluções mágicas para os problemas que enfrentamos, mas, se forem encarados com caridade e racionalidade, chegaremos a bom termo. É por meio de um ambiente sadio e fraterno que as vocações monásticas e contemplativas encontraram o que buscam, porque nunca faltam verdadeiras vocações que batem nas portas de nossas comunidades. Precisamos estar sempre atentos aos que chegam psicologicamente comprometidos.

34. O que podemos ensinar ao homem de hoje, como fermento de nossa participação na evangelização dos povos? A nada anteporem ao amor de Cristo; a serem verdadeiros homens e mulheres e não estereótipos de ideologias; oferecer um espaço de silêncio aos enlouquecidos pelo ruído do ativismo, das ideologias e da multiplicação de palavras. Nesse campo, a vida contemplativa deve ser uma porção da Igreja solidária, para se viver a fraternidade dos livres em Cristo. Devemos fazer um convite ao homem dividido, egoísta, aborrecido pela sociedade da turba multa, para que encontre um autêntico nível de relação na profundidade da pessoa, onde não se admite aparências nem máscaras de engano.

35. Assim, a contemplativa cumpre em sumo grau o primeiro mandamento do Senhor: “Amarás ao Senhor teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças”,10 fazendo d´Ele o sentido pleno da sua vida e amando em Deus todos os irmãos e irmãs. Ela busca a perfeição da caridade, escolhendo Deus como “o único necessário11, amando-o exclusivamente como o Tudo de todas as coisas, cumprindo com amor incondicional por Ele, e no espírito de renúncia proposto pelo Evangelho.12

IV. COM A PALAVRA, A IGREJA

36. A partir do Concílio Ecumênico Vaticano II, vários documentos do Magistério aprofundaram o significado e o valor da vida monástica e da vida contemplativa. Destacam-se o Decreto Conciliar Perfectæ caritatis13, sobre a conveniente renovação da vida religiosa, a Instrução Venite seorsum, assim como o Documento de Aparecida.

37. Com seu olhar desbravador e profético o Concílio Vaticano II, por meio do decreto Perfectae Caritatis, afirmou, em 1968, que “os institutos que se dedicam exclusivamente à contemplação, conservam sempre a parte mais excelente dentro do Corpo Místico de Cristo, em que “nem todos os membros têm a mesma função”.14 Na verdade, oferecem a Deus um exímio sacrifício de louvor, enriquecem com abundantes frutos de santidade o povo de Deus, movem com o seu exemplo e fecundidade apostólica.15 Do mesmo modo “os institutos de vida monástica conserve-se fielmente e brilhe, cada vez mais, a venerável instituição da vida monástica, que tantos méritos alcançou no decorrer dos séculos na Igreja e na sociedade humana. O principal dever dos monges é servir de modo humilde e nobre, a divina majestade dentro das paredes do seu mosteiro, quer se entreguem totalmente ao culto divino na vida contemplativa, quer tenham assumido legitimamente algumas obras de apostolado ou caridade cristã. Mantida, pois, a índole própria da instituição, renovem as suas antigas e beneméritas tradições e acomodem-nas às necessidades atuais das almas, de tal forma que os mosteiros sejam como que os viveiros de edificação do povo cristão.16

  1. Na mesma linha, ensina-nos o Documento de Aparecida: “A Igreja estimula com esperança o incremento de vocações para a vida contemplativa masculina e feminina.17 A vida consagrada é um dom do pai, por meio do Espírito, à sua Igreja, e constitui um elemento decisivo para sua missão. Expressa-se na vida monástica, contemplativa e ativa, nos institutos seculares, naqueles que se inserem nas sociedades de vida apostólica e outras novas formas.18 De maneira especial, a América Latina e o Caribe necessitam da vida contemplativa, testemunha de que só Deus basta para preencher a vida de sentido e de alegria. Em um mundo que continua perdendo o sentido do divino, diante da supervalorização do material, vocês queridas religiosas, comprometidas desde seus claustros a serem testemunhas dos valores pelos quais vivem, sejam testemunhas do Senhor para o mundo de hoje, infundam com sua oração um novo sopro de vida na Igreja e no homem atual”.19 Os povos latino-americanos e caribenhos esperam muito da vida consagrada, especialmente do testemunho e contribuição das religiosas contemplativas e de vida apostólica que, junto aos demais irmãos religiosos, membros de Institutos Seculares e Sociedades de Vida Apostólica, mostram o rosto materno da Igreja. Seu desejo de escuta, acolhida e serviço, e seu testemunho dos valores alternativos do Reino, mostram que uma nova sociedade latino-americana e caribenha, fundada em Cristo, é possível.20


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REFLETINDO

1. Como fazer um novo aggiornamento, como nos pede o Concílio, conservando os valores basilares de nossas comunidades, superando as dificuldades que impedem um novo vigor a muitas comunidades?

2. Como ajudar os membros de nossas comunidades a perceberem que os problemas que nos atingem são mais de ordem espiritual do que de administração?

3. Quais são os valores que não podem ser esquecidos pelas comunidades, tendo como base seu núcleo identitário? Quais os novos valores que podem ser agregados?

4. Como podemos colaborar eficazmente para que nossas comunidades sejam evangelizadoras, sem perder as características fundamentais da nossa vocação monástica e contemplativa?
1 Dom Gregório Paixão, OSB é monge beneditino do Mosteiro de São Bento da Bahia e Bispo Auxiliar de São Salvador da Bahia.
2 Cf. 1Cor 1,27
3 PC 7-10
4 Cf. S.Th. II-II q. 179
5 Lc 14,33
6 GPS, ou Global Positioning System, é um Sistema de Posicionamento Global, que tem como função básica identificar a localização de um receptor que capte os sinais emitidos por seus satélites na superfície terrestre, seja mar, terra ou ar.
7 Cf. Gn 1,10.12.18s
8 Jo 3,16
9 Mc 12,29-30
10 Lc 10,27
11 Cf. Lc 10,42
12 Cf. Mt 13,45; Lc 9,23
13 PC 7-16
14 Rm 12,4
15 PC 7-8
16 PC 9-10
17 DA 99c
18 DA 216
19 DA 221
20 DA 224






IDENTIDADE MÍSTICA E MISSÃO


Falar de mística é algo muito complexo, se quisermos abordar sua história, suas dimensões e os vários sentidos nos quais essa palavra foi assumida no decorrer dos tempos, em contextos profanos como na perspectiva da espiritualidade cristã que nos interessa.
Procurada na revelação bíblica, constatamos que a Sagrada Escritura ignora este vocábulo, mas a segunda constatação é a de que essa realidade ali existe profusamente. Então, refletir sobre “mística” exige, antes de tudo, o esclarecimento do sentido que a palavra “mística” possui e que desconhecida da Escritura, foi introduzida na literatura cristã pelos Padres da Igreja de Alexandria, que a tomaram do platonismo do século III.
O Catecismo da Igreja Católica (n.2014) diz que a mística cristã consiste no progresso espiritual que tende a uma união sempre mais íntima com Cristo, através dos “santos mistérios” de Cristo e, n’Ele, da Santíssima Trindade. E que Deus nos chama a todos a esta íntima união com Ele, mesmo que graças especiais ou sinais extraordinários desta vida somente a alguns sejam concedidos. E o Vaticano II o confirma dizendo que “o aspecto mais sublime da dignidade humana consiste na sua vocação para a comunhão com Deus” (GS 19).
Falar de mística nos leva, pois, à palavra “MISTÉRIO”, que é a tradução das palavras gregas e latinas equivalentes a “Mysterion” e “Mysterium”, diante do qual o homem se prostra em admiração sagrada, emudece. Daí provém o vocábulo MÍSTICA, que mesmo no sentido cristão, no decorrer dos tempos, passou por vários significados.
São Paulo usa a palavra mistério vinte vezes, referindo-se a “Cristo, morto e ressuscitado”. Ao terminar a carta aos Romanos, fala do mistério da salvação, “encoberto desde os tempos eternos, mas agora manifestado pelos escritos dos profetas, por disposição do Deus eterno, dado a conhecer a todas as nações, para que elas obedeçam à fé”.
No sec.III, segundo Clemente e Orígenes, “mystikos” designou o sentido profundo das Escrituras, accessível somente à fé.
Outro sentido dado a essa palavra é a profunda realidade dos Sacramentos, que é ao mesmo tempo velada e revelada. Os Santos Padres chamaram os Sacramentos de “mistérios”. Daí passarmos a falar em Mistérios Litúrgicos.
Ao comunicar seu Espírito, Jesus fez de Seus irmãos, chamados de todos os povos, misticamente os componentes de seu próprio Corpo, que é a Igreja” (LG,7) o “Corpo Místico de Cristo”, simultaneamente visível e espiritual.
No século IV, São Gregório de Nissa dirá que mística é a plena e pessoal apreensão, pelo cristão, consciente da gratuidade de Deus quanto ao que é anunciado pela Palavra Divina e dado pelos Sacramentos. Mística passa a ser considerada como a plenitude do “homem novo”, da vida nova, vida divina comunicada em Cristo morto e ressuscitado. Enfim, trata-se de um único Mistério, de Cristo, presente nas Escrituras, celebrado nos Sacramentos da Igreja e manifesto na vida de cada cristão.
Falamos de “Vida Mística Cristã”, uma vez que a experiência mística está presente também nas religiões pré-cristãs, e mais perto de nós, no Judaísmo: na Lei, nos Profetas e nos Salmos. Lembro-me da bela expressão de São Jerônimo: “O Antigo Testamento está grávido de Cristo”. Ouso dizer que a mística judaica está também grávida da mística cristã.
É vida de santidade, a respeito da qual Dom Jean Leclercq, em seu livro “São Bernardo místico”, esclarece um ponto importante ao nosso tema: “Os santos são inumeráveis, e diversos: Deus vive em todos, mas cada um não pode manifestar, para nós, todos os aspectos do mistério divino no homem. Considerar um santo como tipo exclusivo da santidade católica seria demonstrar que não se compreendeu as dimensões da caridade de Cristo.Há santos que se revelam como tais nas condições ordinárias da vida humana: eles possuem graças invisíveis e dons espirituais extremamente elevados, mas não constituem exceção quanto às leis que regem a natureza. Há outros, ao contrário, aos quais o Senhor se compraz em gratificar com dons extraordinários, com carismas maravilhosos: eles predizem o futuro, lêem os corações, dominam os elementos, curam doentes, fazem toda sorte de milagres”.
Podemos perguntar, como se desenvolveu esta experiência mística, experiência de fé, no cristianismo? Foi a partir de Pentecostes, uma vez que Jesus Cristo não mais se fazia presente em sua natureza humana, quando enviou o Espírito Santo prometido. ”... rogarei ao Pai e ele vos dará outro Paráclito, para que convosco permaneça sempre, o Espírito da Verdade, que o mundo não pode acolher, porque não o vê, nem o conhece. Vós o conheceis, porque permanece convosco e está em vós” (Jo 14,15-17).
Toda vida da Igreja é uma “vida mística”, pois ela não só vive do Mistério de Cristo, mas sob a ação do Espírito Santo o torna presente em sua Liturgia, na oração particular de cada fiel e mesmo nas diversas “devoções”, ao Santíssimo Sacramento, à Paixão do Senhor, ao Divino Espírito Santo, a Nossa Senhora e aos Santos.
Nesta Igreja, CORPO MÍSTICO DE CRISTO, somos inseridos desde o nosso batismo. Ao longo de sua história, esta “vida escondida em Cristo” se manifestou no testemunho dos Apóstolos, dos Mártires, dos Confessores da fé, das Virgens, nos desertos, nas cidades, na vida de cidadãos comuns, na vida monástica em suas origens e em sua ulterior evolução, nas diversas formas de Vida Consagrada. Realidade que encontramos nas Escrituras, nos escritos dos Padres da Igreja, nos apoftegmas dos santos Anciãos, nas vidas dos Santos, nas diversas Regras desta Vida Religiosa, também como objeto da teologia. Sem dúvida, foi o Monaquismo, primeira forma de vida cenobítica, que assegurou a objetividade da mística cristã na Vida Religiosa em sua experiência ulterior, por nunca ter se afastado da celebração litúrgica dos mistérios cristãos e da meditação das Escrituras como base de sua espiritualidade; certamente guardando o silêncio e a solidão reconhecidos, mesmo fora do cristianismo, como meios essenciais à experiência de Deus. E esta experiência de Deus, antes de ser conhecimento de uma doutrina, antes de ser empenho moral, é uma história que se realiza, ao longo dos tempos, na vida pessoal e na vida da comunidade eclesial.
Por que essa união tão profunda com Deus é possível ao ser humano? Foi a mística do Oriente cristão que procurou suas raízes diretamente na antropologia bíblica, e mais precisamente nos versículos da Sagrada Escritura, referentes à criação do homem, feito “à imagem e semelhança de Deus”. Deus assim o criou intimamente cristoforme, a fim de estabelecer com ele um laço ontológico estreito, mediante a figura de Cristo, único rosto visível do Pai: “quem me vê, vê aquele que me enviou” (Jo 12,45).
Comenta São Gregório de Nissa, considerado o “pai da mística”: “Era necessário que uma afinidade com o divino estivesse inscrita na natureza humana, para que, mediante essa correspondência, o homem tivesse em si o que o movesse para o que lhe é mais afim, o gozo dos bens divinos. Devia, pois, ter alguma afinidade com o Ser do qual participava, que tivesse em si, e para si, o princípio da eternidade e, em razão dessa força inata que lhe fora dada, pudesse conhecer o transcendente, desejando a eternidade divina” (O Homem,56).
O pecado original de Adão e Eva tornou essa possibilidade como que coberta com o limo das paixões humanas. Apesar de terem eles se escondido, despidos da glória que lhes fora dada, o homem e a mulher jamais perderam a tensão escatológica própria de sua natureza. Jesus Cristo, a partir de sua encarnação, morte e ressurreição, restaurou no coração do homem a imagem divina deturpada pelo pecado, motivo porque todo cristão, a partir de seu batismo, assume a face de Cristo, torna-se teofania , ou seja, ícone da divindade, capaz de uma vida mística, de santidade.
Na sua essência, o estado místico consiste em uma vibração espiritual que transcendendo o meramente conceitual leva à experiência do divino pelo conhecimento do amor; assim, o divino penetra no íntimo da alma, transforma a personalidade em seus modos de pensar, de agir, de sentir. Mas, para chegar à união transformante, de conversão em conversão, o místico deve enfrentar a via da ascese, combate por vezes rude, só possível com a graça de Deus e séria vida de oração
Aliás, os Pais do Deserto, seguindo Plotino, já viam esta conversão interior em três etapas: a purificação, a iluminação, a união. O ponto de partida é sempre a FÈ, virtude prática através da qual o cristão conscientiza-se de que “nada deve antepor ao Cristo” (RB,72,11) e, com Ele e n’Ele, chegar à plenitude de sua vocação. A fé, de fato, dá a certeza da salvação e da parusía, mantendo viva a tensão escatológica para o Reino de Deus.
Voltemos à “Vida Consagrada”. Se a experiência mística não é privilégio de nossa vida, podemos dizer que , mais do que qualquer cristão, somos positivamente orientados para essa experiência de Deus. Somos chamados a excluir, por nossos votos, fins intermediários comuns a todos os homens, como o da “vontade própria” e da castidade, a fim de tendermos só para Ele. Isto implica uma perspectiva eclesial, MISSÃO para a salvação do mundo, pois não é uma simples renúncia a uma tarefa ou a determinados bens em vista apenas de nossa própria santificação.
È Missão que abraça a responsabilidade do pecado universal, que faz seu o “lamento de Adão”, como escreveu Silvano do Monte Athos em seu poema. Não que nos separe das pessoas, mas fazendo-nos descer também às profundezas de nosso nada, leva-nos a nos sentir, realmente, como pecadores.
A mística é una ou é múltipla? Não há unidade de experiência mística, é algo muito pessoal, pois cada homem se realiza pessoalmente em relação a Deus. “Como a luz passando por um prisma de cristal se divide nas várias cores do arco-iris, assim também a graça divina, comunicando-se às pessoas de diversas camadas culturais, de diversos temperamentos e contextos, se divide em uma experiência múltipla”.
Estamos aqui entre pessoas “consagradas”. Uma única e múltipla experiência de busca de Deus, a partir do batismo e também dos diversos carismas particulares, pois “a cada um é dada a manifestação do Espírito em vista do bem comum” (1Cor l2,7). Seguindo os passos de Cristo, tendo como Mestres nossos fundadores e como guias nossos Superiores, nossa tradição tem sido guardada e atualizada especialmente a partir do Vaticano II. Constitui para nós um desafio testemunhar em nossa época, “moderna”ou “post-moderna, sem a perda de nosso carisma fundacional.
Aqui encontramo-nos, carmelitas,franciscanos,clarissas,visitandinas, concepcionistas, redentoristinas, sacramentinas, passionistas, Irmãs de Sion, beneditinas e beneditinos, calmadulenses, trapistas, cistercienses, premonstratenses, precedidos, desde os inícios da Igreja, pelos Santos, Antão, Pacômio, Basílio, Agostinho, Bento de Núrsia, Norberto Gennep, Romualdo de Camaldoli, Abades Clunyasenses, Bernardo de Claraval, Francisco e Clara de Assis, Domingos de Gusmão, Tomás de Aquino, Beato Eymar, Teresa de Àvila, João da Cruz, Beatriz da Silva, Afonso.Lugório, Francisco de Sales e Joana de Chantal, Paulo da Cruz e Theodoro Ratsbonne, o grande convertido do judaísmo. E porque não lembrar outras mulheres, como Escolástica, Mectildes, Gertrudes, Hildegardes, Catarina de Sena, Margarida Alaquoque, Teresa de Lisieux, e mais perto de nós, Edith Stein?
Como peregrinos, na amplidão deste mundo como nunca conhecido, cabe-nos dar testemunho da vida a qual fomos chamados (as), separados (as) para uma missão, a começar de uma vivência pessoal de busca de santidade em uma comunidade concreta, celebrando os mistérios divinos na Eucaristia diária e nas diversas Horas canônicas.
Comunidade, como “Sponsa Christi”, na celebração dos santos mistérios , buscando na leitura orante da léctio-divina ou diante do Santíssimo Sacramento, o próprio Deus como princípio e norma de vida, com a graça do Espírito Santo.
Comunidade que amamos, mas nada romântica, lugar da “conversatio” em nosso dia–a-dia. Um antigo abade chegou a dizer: “vita communis máxima poenitentia est”, o que me assustou, quando noviça. Mas o tempo foi me mostrando o outro lado da moeda: “Vede como é bom e suave viverem juntos os irmãos” (Sl 132,1).
Em nossas comunidades, como nos disse Tomás Merton, referindo-se aos mosteiros, encontramos Marta, Maria e Lázaro. Podemos dizer, cada um contemplativo a seu modo: Marta, servindo; Maria, aos pés de Jesus; Lázaro sofredor, aguardando o dia do grande Encontro.
A “vida mística”, por ser uma atitude existencial, uma certa maneira de ser e viver em profundidade, supõe a contemplação e a missão. Carregando as angústias de nosso tempo, cujas características são muito próprias, angústias que nos afligem e a tantos de nossos irmãos, para não dizer a toda humanidade, coloquemo-nos a serviço deste “mistério de salvação” sempre operante, por uma vida de oração suplicante, de “misteriosa fecundidade”.
Se somos segregados (as), separados (as) para uma missão, o somos “para” a salvação do mundo pelo qual o Pai entregou seu Filho muito amado. Este mundo, mesmo que o negue, tem “sede do Deus vivo”, o único a dar uma resposta em face das calamidades de todos os tempos.
Que lhe poderemos oferecer em nossa vida monástica e “contemplativa”? Em primeiro lugar, um “testemunho” de pessoas que tudo deixaram pelo Reino de Deus, certas de que nossa cidadania está nos céus. Este testemunho admirado por muitos, a muitos outros incomoda, interroga, mesmo que não o digam. Em segundo lugar, aos que batem à nossa porta, cabe-nos dar aos mais pobres a ajuda de que necessitam. E a todos um ambiente de silêncio, de paz, de oração, de hospitalidade. Também uma palavra de vida, de consolo, de orientação, pois nosso tempo levanta problemas que não eram comuns no passado. Pede-nos, dentro de nossas possibilidades, atualização quanto ao conhecimento da realidade, mas também uma visão eclesial, bíblica e teológica.
O mundo precisa de apóstolos, missionários, santos, mas se não houver quem peça ao Senhor da messe, quem os descobrirá? A monja que se entrega à oração é como a chuva que rega a seara do Senhor.
Unidos na contemplação das realidades eternas e da beleza do mundo por Deus criado, celebrando a liturgia que tem a arte de reunir textos dispersos ao longo da Bíblia, permitindo-nos saborear o mistério de Cristo no decorrer do ano litúrgico, apontemos a todos, o Caminho, a Verdade e a Vida.

Que nossos Santos e especialmente nossa Mãe Aparecida, a mística por excelência cujas festas celebramos com devoção, nos ajudem em nossa missão e caminhada para o Pai. Amem!

BIBLIOGRAFIA DE APOIO
Mosteiro Mãe de Cristo – Reflexões sobre Mística Cristã
Leclercq Jean – “Bernardo Místico”
Barsotti Divo – “Monaquismo e Mística” – Ed. Subiaco –Juiz de Fora
L’Hermitte Jean- “Mystiques et faux mystiques” – Blond & Gay
Bento XVI – Jesus de Nazaré, volI – “Consagra-os na verdade”
Catecismo da Igreja Católica – Gráfica Coimbra
Dicionário de Mística – Ed. Loyola

Ir. Mectildes Vilaça Castro, OSB-
Mosteiro de Nossa Senhora das Graças- Belo Horizonte
- CRB – APARECIDA- São Paulo- 16-19 junho de 2012.




Mística na Vida Monástica e Contemplativa



A programação do nosso encontro previu para o dia de hoje um estudo ou, talvez melhor, uma meditação sobre “identidade, mística e missão da vida monástica e contemplativa”. São três dimensões que se completam e compenetram mutuamente, tanto assim que faltando uma das três a vida monástica e contemplativa se tornaria uma interrogação sem resposta. Convidado a refletir sobre a dimensão mística da vida monástica, lembrei-me de uma advertência de Hans Urs Von Balthasar: quem se ocupa do tema da mística entra num labirinto, pisa num campo minado. Também Simone Weil adverte os estudiosos da mística, embora em termos menos dramáticos: quem se dedica ao estudo da questão da mística deverá observar uma exatidão maior do que na matemática.

De fato, os estudos sobre a essência da mística são numerosos e divergentes. Já no século passado a interpretação do fenômeno da mística passou por uma evolução muito grande que ainda continua. Na primeira metade do século XX os estudiosos, talvez a maioria deles, pensavam poder descrever o fenômeno da mística quase exclusivamente a partir das várias disciplinas teológicas. No entanto, mais nas últimas décadas do século a literatura em torno da mística cresceu consideravelmente devido ao aumento do número dos filósofos e cultores de outras ciências que se debruçam sobre a questão da mística. Da fenomenologia da religião passou-se à fenomenologia da mística. Afinal, o fenômeno místico não escapa de considerações antropológicas que por sua vez invocam o serviço de tantas outras ciências. Neste sentido torna-se compreensível a visão que Dorothee Sölle tem da mística: união mística com Deus consiste principalmente “num exercitar-se na maneira de ver como Deus vê”, tornar-se livre para um outro modo de viver: “veja o que Deus vê. Ouça o que Deus ouve. Ria onde Deus ri. Chore onde Deus chora”. Nesta perspectiva torna-se compreensível que a visão mística de Dorothee Sölle não é alheia às situações, mesmo sociais e políticas, existentes no mundo. Assim ela publicou um livro sobre uma teologia da criação, livro que em numa tradução recebeu o título: Deus precisa de homens.

‘Se quisermos dar uma outra resposta à criação, no sentido de uma ternura para com tudo o que vive na nossa terra, e se quisermos tornar-nos co-criadores como foi planejado: criados à imagem de Deus, então deverá ficar claro que a criação nunca aponta apenas para a nossa origem, mas também diz respeito ao o nosso futuro. A criação que começou com a primeira criação ainda não chegou ao fim.1

A visão que Sölle tem da mística aparece também nos textos de grandes místicos que ela cita. Assim ela cita um texto de Mechtilde de Hackenborn, monja cisterciense do mosteiro de Hefta:

‘Uma vez ela pediu ao Senhor que Ele lhe desse algo que a faria lembrar-se constantemente dele. Ela recebeu do Senhor esta resposta: “Vê, Eu te dou os meus olhos para que tu com eles vejas todas as coisas, e os meus ouvidos para que tu com eles ouças todas as coisas; também te dou a minha boca para que através dela passe tudo o que tu, falando, orando ou cantando, tens a dizer. Dou a ti meu coração para que por ele passe tudo o que pensas e amas a mim e, por causa de mim, a todas as coisas”. Nesta palavra a alma se interiorizou totalmente em si, de modo que parecia como se ela visse com os olhos de Deus e ouvisse com seus ouvidos, e falasse com a sua boca, e não sentisse outro coração que o coração de Deus. Também depois disso foi-lhe dada frequentemente essa experiência’.2

A visão que Sölle tem da mística aparece claramente na terceira parte do seu livro Mística e resistência – Tu grito silencioso. O texto bíblico que lhe serve de fundamento trata da vocação de Moisés: ‘Eu vi a opressão de meu povo no Egito, ouvi o grito de aflição diante dos opressores e tomei conhecimento de seus sofrimentos’ (Ex 3,7). Sem presença viva do Senhor, descoberta na sarça ardente, uma teologia torna-se facilmente ideologia. Mas quando o próprio Mistério funda o saber teológico, este mantém-se palpitante, pensa muito próximo da vida e não abdica na dor, ajudando os sonhos e as utopias que abrem perspectivas para a Gloria Dei homo vivens como se expressava santo Irineu.3 A teologia cristã não mereceria seu nome se não brotasse da fé viva. Isto supõe inclusive que a teologia se vincula ao contexto histórico com todos os elementos permanentes que brotam de mensagem da cristã que a ela tem a função de evidenciar numa nova luz.4

Não há dúvida de que a mística, sendo experiência de Deus, se orienta para Deus. Mas esta orientação não implica num afastar-se da realidade da existência humana. Neste sentido é muito significativo que o Concílio Vaticano II foi convocado por João XXIII para seguir a recomendação de Jesus quando nos exorta a distinguir claramente os sinais dos tempos (Mt 16, 3). Paulo VI retomou a expressão aggiornamento do seu predecessor, confirmando-o como critério diretivo do Concílio Ecumênico ... como um estímulo para a sempre renascente vitalidade da Igreja, para sua sempre vigilante capacidade de estudar os sinais dos tempos e para sua sempre jovem agilidade de ‘examinar tudo e guardar o que for bom’; e isto sempre e em todas as partes” (Ecclesiam Suam 19). A Constituição Pastoral Gaudium et Spes, dará séquito a essas diretivas de João XXIII e Paulo VI:
‘Para desempenhar tal missão, a Igreja a todo momento, tem o dever de perscrutar os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho, de tal modo que possa responder, de maneira adaptada a cada geração, às interrogações eternas sobre o significado da vida presente e futura e de suas relações mútuas’ .5
Dizer Deus ...
Cada um de nós aprendeu a dizer Deus à sua maneira. É uma questão de espiritualidade. A aprendizagem normalmente começa na família em que aprendi dizer Deus: Deus de minha mãe, Deus de meu pai. Depois o Deus da minha vida, o Deus que é meu auxílio... Neste sentido a Sagrada Escritura nos oferece numerosas perspectivas.6
1. O Deus da minha mãe
No livro de Gênesis: Eva ficou grávida e deu à luz um filho e disse: ‘Com a ajuda de Deus, o Senhor, tive um filho homem” ( 4, 1). Depois ‘Deus me deu outro filho para ficar no lugar de Abel, que foi morto por Caim’ ( 4,25). O anjo do Senhor disse a Agar: ‘Você está grávida, e terá um filho, e porá nele o nome de Ismael’ (16,11). Abrão tinha cem anos quando seu filho Isaac nasceu: ‘O Senhor me fez dançar: os que souberem disso dançarão comigo’ (21,6). Aos filhos que nascem recebem da mãe no próprio nome a referência a Deus para levá-los a partir da sua origem em contacto com o Poderoso que traz a vida deles. Quando Raquel percebeu que não podia ter filhos disse ao marido: ‘Dê-me filhos, se não, eu morro. Jacó ficou zangado e disse: Você está pensando que eu sou Deus?’ (30,1-2). O Poderoso abre o seio materno (29,31; 30,22) mas também pode fechá-lo (16,2). A sucessão de gerações é no livro de Gênesis vista como uma revelação de Deus. O que faz com que os acontecimentos e as relações familiares estão fundados na obra de Deus à qual devem sua existência.

2. O Deus do meu pai
Também o pai consagra seu filho na relação com Deus. Assim lemos no Canto de Moisés:
‘O Senhor é o meu forte defensor;
foi ele que me salvou.
Ele é o meu Deus, eu o louvarei.
Ele é o Deus do meu pai,
e eu cantarei a sua grandeza.
Meu forte defensor’ é neste verso paralelo ao ‘Deus do meu pai’. Isto quer dizer: meu pai me iniciou tanto na relação com seu Deus que este se tornou o meu Deus.

3. O Deus da minha vida
Meu Deus está tão intimamente relacionado com o crescimento da minha pessoa que até a minha relação com Ele está expressa no meu nome (Eliezer, Elishua, Abida, Abitov, Achisamek). O Poderoso está intimamente ligado à minha formação e minha existência. Ele é meu Poderoso. Como uma parteira me fez sair do ventre materno para dentro do mundo desprotegido. De agora em diante Ele mesmo é como um seio materno que me envolve. Os salmos possuem uma profunda ressonância mística. O mistério do homem chama-se Deus, e o mistério de Deus não tem outro nome que o nome que o homem para isso encontrou: amor.
‘Foste tu quem me tirou do ventre,
tu me tinhas confiado
aos peitos de minha mãe;
desde o seio me lançaram a ti,
desde o ventre materno tu é o meu Deus’ (22,10-11).
( 22,10-11)

4. Meu auxilio
Meu Deus é à força da minha vida. Por isso eu lhe peço socorro quando as forças diminuem e abalam minha vida, quando meus inimigos acabam com minha resistência, quando as forças vitais escorrem de mim.
Ajuda-me ó Senhor, meu Deus!
Salva-me por causa do amor que
tens por mim (109,26).
O Senhor meu Deus,
olha para mim e responde-me!
Dá-me forças novamente
Para que eu não morra (13,4).
Ó meu Deus, livra-me dos meus inimigos! (59,2).
Levanta-te, Senhor!
Salva-me, meu Deus! (3,8)
No meu desespero,eu clamei ao Senhor
E pedi que ele me ajudasse (18,7).
Meu Deus é a resistência da minha vida, minha força, igualmente próximo de mim como a batida de meu coração, minha respiração. Meu Deus se torna a fonte da minha vida no momento que eu me confio a Ele. Quando me proteje o Poderoso, ele se torna meu Poderoso. É por isso que em muitos salmos essa confiança é verbalizada.
Guarda minha vida, pois sou fiel a ti,
Salva o teu servo que em ti confia (86, 2).
Assim minha alma te canta sem calar-me,
Senhor meu Deus, eu sempre te darei graças (30,13).
Eu me aproximarei do altar de Deus,
Ao Deus de meu prazer e alegria.
Eu te darei graças ao som da cítara,
Deus, Deus meu (43,4).
Tu és meu Deus, eu te dou graças,
Deus meu, eu te exalto (118,28).





A linguagem da vida monástica e contemplativa

Talvez seja oportuno esclarecer os termos que constituem o título das reflexões que vamos iniciar, apesar de eles serem comuns e nada extraordinários.7
Linguagem
Em primeiro lugar a palavra linguagem. A linguagem que a pessoa utiliza traduz a consciência que ela tem daquilo que ela intenciona dizer ou comunicar. A consciência intencional pode ter três modalidades: a inteligência normal de acordo com as condições que uma pessoa tem, a ciência à qual se dedica, e o símbolo.
Diariamente temos inúmeras impressões, experiências suscitadas pela realidade que nos cerca. Acontece frequentemente que a consciência humana não consegue absorver ao mesmo tempo todo esse fluxo de experiências. Conscientemente ou inconscientemente nós fazemos uma seleção. Cada um se abre espontaneamente a determinadas facetas da realidade. Essa abertura seletiva chama-se “consciência intencional’. É uma consciência que se prende com atenção a um significado que pescamos da riqueza confusa das nossas experiências.
A primeira modalidade da nossa consciência intencional é a da nossa inteligência normal da vida cotidiana, das nossas relações humanas. Por exemplo, uma irmã da comunidade fez um curso, ou precisou ir ao médico. Voltando para o mosteiro, pede a benção à abadessa que pergunta como que foi o curso, ou o que o médico achou. Estabelece-se um diálogo em que a abadessa ou priora se desliga, por assim dizer, de todas as suas preocupações, para dedicar a sua atenção para a irmã que está voltando em casa. A comunicação entre as duas se situa no campo da inteligência humana normal sem perspectivas científicas ou simbólicas. Trata-se do senso comum que possibilita as conversas, troca de impressões das coisas da vida. Pode acontecer que as evidências da vida de cada dia são diferentes quando os interlocutores pertencem a culturas diferentes das quais cada uma tem as próprias evidências. Neste caso podem surgir incompreensões que dificultam o diálogo.
É claro que todos os seres humanos, mesmo filósofos e cientistas, tanto como pessoas comuns se movem no campo da consciência intencional de cada dia.
A segunda modalidade da consciência intencional é a da ciência. Um cientista dirige sua atenção a um aspecto bem especifico das coisas que o rodeiam. O cientista dirige sua atenção para as causas dos acontecimentos, do desenvolvimento, dos fenômenos. Ele procura descobrir as leis que regem a vida humana, o mundo, etc. Para isto ele formula hipóteses e teorias. São dois mundos irredutíveis embora aos poucos também a linguagem das ciências vai entrando na vida de cada dia. No fundo o cientista não quer isolar-se do mundo comum.
A terceira modalidade da consciência intencional é a do símbolo. Esta modalidade tem o papel principal quando se trata de mística. Há gestos rituais carregados de simbolismo. Os muçulmanos que na mesquita se prostram de joelhos tocando o chão com a cabeça interpretam essa posição do seu corpo como um gesto simbólico. O gesto de versar água sobre a cabeça de uma pessoa, criança ou adulto, o ritual do batismo cristão supõe uma consciência intencional simbólica. A atenção se dirige para algo na realidade que, ao mesmo tempo, não pode e ao mesmo tempo pode ser captado pelos sentidos. Trata-se de uma realidade que, sem poder ser imaginada, se apresenta à consciência intencional através de um gesto que é visível aos nossos sentidos.
Assim há poesias que ativam a consciência simbólica de leitores. Assim é a recente poesia de Márcia D’Angelo.8

Uma busca inacessível do transcendente
Emoliente de um emocional à procura do racional
Dois pedaços de mim entregues ao Mistério
Outro pedaço no encalço, descalço, percalço
A me desesperar, sem hesitar

Jéssica, a menina do sorriso triste,
A grande experiência mística
Catalisadora de todas as demandas
Expectativas perenes, solenes
Transformou os problemas em questões menores
Refletiu todos os temores
Manifestou, provocou emoções maiores
Pontuadas de ternura e muita compaixão

Se as considerações sobre a consciência simbólica dizem algo de essencial sobre o caráter da experiência mística na sua múltipla aparição podemos concluir que mística jamais é uma tentativa de fugir da realidade, isto é, do aqui e agora da história. Sabemos que durante um período do século XIX a mística era considerada como um fenômeno obviamente estranho à realidade do mundo. Talvez porque existisse a idéia de que a mística era uma fuga. Esta interpretação já é desmentida na história onde apareceram místicos que também foram fundadores reformadores de ordens religiosas em benefício da humanidade nos seus contextos históricos. E mesmo em relação a uma vida de silêncio e solidão nos mosteiros e conventos de vida contemplativa podemos dizer que no mundo inquieto de hoje ninguém que crê na oração vai dizer que se trata de uma fuga. É mais um participar nos altos e baixos da sociedade humana. A experiência de Deus aponta para Deus e quem aponta para Deus não rompe com a realidade concreta pelo contrário, aponta para o essencial, para a realidade que sustenta as coisas ao redor. A verdadeira oração mesmo fraca, apagada, árida nos confere uma verdadeira liberdade interior e nos abre aos horizontes da humanidade e da criação ‘que aguarda ansiosamente a manifestação dos filhos de Deus’. A verdadeira oração não termina em nós.9 Karl Rahner certamente não falava especificamente da vida monástica e contemplativa quando escrevia: ‘O homem espiritual de amanhã será um místico ou não será mais’.10 São palavras que dizem o mundo foi criado em função da aliança de Deus com o homem. Desde o princípio Deus tem um plano em relação com a história do mundo e tudo existe orientado para a realização desse plano. O que dá sentido à linguagem da vida monástica e contemplativa.

Mística monástica

Um dos melhores conhecedores contemporâneos da vida monástica, Bernard McGinn, indica como características essenciais da mística dessa vida a solidão (solitudo) que aspira ao silêncio (silentium), a lectio divina como um manter-se meditativamente orante em textos espirituais, e oração e contemplação que, como frutos, brotam disso. Quem vê a mística só como fenômeno e experiência extraordinários não deixará de encontrá-la na história da vida monástica. Mas não é nisso que o movimento monástico define a sua identidade. A vida monástica se define em vista da necessidade de permanecer em Deus por Cristo como os ramos enxertados na videira. É o que define a vida cristã. Nesta perspectiva o Papa citou um texto num dos seus costumeiros encontros dominicais com os fieis na praça de São Pedro:
Numa carta escrita a João, o Profeta, que viveu no deserto de Gaza no século V, um fiel formula a seguinte pergunta: como é possível manter unidos a liberdade do homem e o fato de nada podemos fazer sem Deus? E o monge responde: se o homem inclina seu coração para o bem, e pede ajuda a Deus, recebe a força necessária para realizar a própria obra. Por isso, a liberdade do homem e o poder de Deus procedem juntos. Isto é possível, porque o bem procede do Senhor, mas ele é levado a cabo graças aos seus fiéis. O verdadeiro ‘permanecer’ em Cristo garante a eficácia da oração, como diz o beato cisterciense Guerrico d’Igny: “Ó Senhor Jesus ... sem ti nada podemos fazer. Com efeito,Tu és o verdadeiro jardineiro, criador, cultivador e guardião do seu jardim, que plantas com a tua palavra, irrigas com o teu espírito e fazes crescer com o teu poder”.11


Não há dúvida que o monasticismo do Ocidente na sua origem é tributário do Oriente cristão.12 Basta lembrar Antônio, Santo’Antão, o eremita do deserto do Egito. Sua biografia escrita por Atanásio de Alexandria será mais tarde uma contribuição para a conversão de Agostinho e fez São Jerônimo formar comunidades femininas em Belém. É provável que a mesma Vida de Antão tenha influenciado a espiritualidade de Martinho de Tours, o pai do movimento monástico na Gallia. Nascido em Panônia, na atual Hungria, seguiu seu pai na carreira militar. Ainda catecúmeno é conhecido o seu gesto de dividir o próprio manto militar com um mendigo junto às muralhas de Amiens: em sonho Cristo lhe apareceu vestido desse manto. Dois anos depois Martinho foi batizado. Durante algum tempo viveu como eremita para depois tornar-se discípulo de Hilário, bispo de Poitiers. Fundou em Ligugé o mosteiro mais antigo da Europa. A pressão do povo o fez bispo de Tours e tomou a iniciativa de fundar uma comunidade monacal em Marmoutiers. Outro vínculo, talvez o mais importante, entre o monacato oriental e o Ocidente foi João Cassiano.13 Nascido na região fronteiriço entre Romania e Bulgária perto do Mar Negro , teve sua formação monástica em Belém. Da Terra Santa ele partiu com seu amigo Germano para o Egito onde durante mais de dez anos fez visitas a eremitas e mosteiros. Partiu para Constantinopla onde foi ordenado diácono por João Crisóstomo. Recebeu em Roma a ordenação sacerdotal. Estabeleceu-se em Marselha onde fundou mosteiros masculinos e femininos. Seus escritos oferecem uma síntese da doutrina de Origenes e Evágrio que tiveram profunda influência na ascese e mística no Ocidente. Um cardeal chamou Cassiano de ‘mestre perfeitíssimo da perfeição monástica’. Para Cassiano a oração do Pai Nosso contém toda a perfeição.
‘Ela eleva aqueles que com confiança de filhos a recitam para um plano superior desta oração flamejante de que poucos têm conhecimento e experiência porque é inefável. Isto vai além dos sentimentos humanos; não se distingue mais nenhum som de voz ou movimento da língua ou expressão de palavras. Desta experiência também Nosso Senhor ofereceu uma imagem semelhante na oração que ele realizou, solitário e retirado na montanha, ou no silêncio, ou também quando rezou na sua agonia, enquanto Ele – exemplo inimitável de intensidade – suava sangue’.14
Pelo ano de 400 surgiu mais um centro de espiritualidade monástica na ilha de Lérins sob a direção de Honorato (ca.375-430) que para seus contemporâneos era como a caridade encarnada visivelmente e que estava tão plenificado por Cristo que seu nome lhe vinha aos lábios até enquanto dormia. A pequena igreja de Lérins é o primeiro santuário conhecido que foi dedicado à santíssima Trindade. Lérins tornou-se um centro de formação de bispos e que irradiava santidade e cultura. Foi em aí que São Patrício, missionário da Irlanda, recebeu a sua formação.
Santo Agostinho
Aurélio Agostinho (354-430) foi batizado por Ambrosio em 387. Depois ele iniciou espontaneamente com amigos uma vida de monge. Ordenado sacerdote em 391 fundou um segundo convento onde escreveu a regra monástica mais antiga do Ocidente. Mesmo como bispo vivia em comunidade junto com seus presbíteros e diáconos. É de fundamental importância para conhecer a sua espiritualidade a narração da sua conversão (Confessiones). Neste livro aparece a antiga convicção de que a felicidade é o fim é o objetivo mais elevado da vida humana. Agostinho vê a vida humana como um itinerário em direção à sabedoria e ao conhecimento da Verdade não passageira. A partir da sua conversão Jesus Cristo está no centro das suas experiências e reflexões. Com S. Paulo ele o coloca no quadro da Igreja que como comunidade de todos os fiéis forma o Corpo de Cristo. Esquematicamente podemos seguir sua visão da vida mística.15

Oração é um elevar-se para Deus. Nela Agostinho se deixa conduzir pelas faculdades da alma, o conhecimento, o querer e os afetos. Os degraus ele identifica com virtude, repouso, entrada na luz e permanência na luz.. Às vezes ele enumera sete degraus: os sete dons do Espírito e as sete (mais uma) bem-aventuranças: eles conduzem à contemplação que abre para a ação ao serviço da comunidade humana. A oração constante é o ponto de partida e o motor da ascensão para Deus. Para Agostinho a oração não é um momento extraordinário, mas o desejo constante da intimidade com Deus. Esta intimidade com Deus se expressa também em boas obras a favor dos homens. A oração é uma elevação afetiva do coração para Deus. Elevar-se significa que o homem deve ir além de si mesmo para encontrar-se com Deus.

Meditação é a atividade de pensar e refletir à qual alguém que ama se entrega. No tempo de Agostinho consistia em recitar ou cantar os salmos durante o trabalho, na leitura da Sagrada Escritura e em ruminar os mandamentos de Deus. Na medida do possível Agostinho preferia escrever suas meditações para não esquecê-las.

Contemplação é manter o olhar para Deus com admiração e deferência. Contemplação dá uma experiência da presença de Deus. É uma relação íntima com Deus: viver de, com e em Deus. Esta intimidade é um dom que o homem não pode apropriar-se.
Não é possível tocar em Deus com a nossa razão, mas sim com o nosso espírito, com o olho purificado do nosso coração. O nosso olho é purificado pelo amor ao próximo, pela fé, pelo repouso e silêncio. É uma preparação para ver o invisível. Pessoas agitadas fazem bem procurar repouso junto a contemplativos.
Embora nesta terra a contemplação seja imperfeita, não há um rompimento entre a contemplação terrestre e celeste. A contemplação consiste na procura e na descoberta da Verdade, de Deus como Ele é, o próprio Amor. A contemplação de Deus é a virtude mais alta.
‘Ao procurar meu Deus entre as coisas visíveis e corporais, sem encontrá-lo; ao buscar sua substância em mim mesmo, como se fosse semelhante a mim, sem igualmente o achar, percebo que meu Deus é alguma coisa acima de minha alma. Portanto, para atingi-lo “meditei essas coisas, e minha alma se expandiu acima de si mesma”. Quando minha alma poderia atingir acima de si mesma? Se permanecesse em si, nada veria a não ser a si mesma; e por se ver, nem por isso veria seu Deus. Digam os que me insultam: “Onde está o teu Deus?” digam-no. ... A casa de meu Deus está acima de minha alma; ali ele habita, de lá me olha, de lá me criou, me governa,cuida de mim, me incita, chama, dirige, conduz e guia’ 16

Êxtase é outro ponto sobre o qual Santo Agostino fala baseando-se nas suas próprias experiências. Em todos os seus escritos o mistério inefável de Deus volta regularmente. Conhecimento de Deus é agora ver como enigmas num espelho (1 Cr 13,12). Agostinho cita esse texto noventa vezes. De acordo com sua visão só Moisés e S. Paulo viram a Deus a durante vida deles no mundo. ( Num 12, 6-8 e 2 Cr 12, 1-4). Viram Deus num êxtase. Agostinho admite a possibilidade de que também outras pessoas espirituais tenham tido uma visão imediata de Deus. Deviam ter um olhar espiritual mais forte do que ele mesmo para poder estabelecer a contemplação do seu coração no que Deus em si mesmo é. Mesmo assim haveria uma diferença em ver e compreender. Ver é ver algo de Deus. Compreender a Deus é impossível. Como criaturas temos condições de ter contacto com Deus sempre por iniciativa dele. Mas não conseguiremos manter esse contacto por muito tempo.Temos que voltar para o ser humano e seu mundo, pois ninguém pode ver a Deus e continuar vivendo (Ex 33, 20).17
O êxtase religioso não deve ser confundido com o arrebatamento por causas naturais que pode acontecer como consequência de um pânico ou angústia. Quando acontece, seus frutos podem manifestar-se em aumento de energia espiritual, alegria, paz, reconciliação, confiança e esperança que é feita também de consciência e projetividade em termos do reinado de Deus.

União com Deus nunca é total já pelo fato de que Deus nunca pode ser um objeto de uma experiência humana.18 Pela mesma razão a experiência de Deus não é uma experiência especial e, menos ainda, especializada. Ninguém pode ser especialista em experiência de Deus. Seria uma idolatria porque se colocaria a si mesmo como fundamento do próprio Deus atingindo-o de maneira estritamente racional. O próprio êxtase é descoberta de uma douta ignorância que supõe um ardor e uma pureza interior.19 Faz lembrar as palavras de São Paulo: ‘Eu vivo, mas não eu: é Cristo que vive em mim’ (Gl 2,20). A experiência de Deus coincide paradoxalmente com a experiência da própria contingência: cum tangere, ‘tocar a tangente’, tocar os próprios limites o que faz abrir a consciência e faz perceber um ‘além disso’ que transcende toda limitação. Reconhecer esta condição humana, precária e ao mesmo tempo gloriosa, provoca uma reviravolta em todos os nossos valores. É uma experiência própria identidade. Poderá haver algo de mais libertador que fazer a experiência do último fundamento do que ele é? É neste ponto que alguém descobre a sua solidão – a beata solitudo – que é o contrário do isolamento porque faz descobrir a solidariedade. É aceitar a condição humana, a própria e a dos outros, porque ‘Deus se fez homem e habitou entre nós’. Na medida em que sou verdadeiramente só, encontro Deus não como objeto mas no, dizer de santo Agostinho, como intimior intimo meo, o mais intimo de mim mesmo.

O futuro da vida contemplativa

Contemplar significa olhar longamente com admiração. Na filosofia grega, antes do neoplatonismo, é sinônimo de intuição racional. A partir dos autores neoplatônicos como Plotino, e também no cristianismo, o termo refere-se à reflexão da alma sobre si mesma e à sua gradual purificação para aproximar-se de Deus. Neste sentido a palavra vai aos poucos apontar para duas perspectivas: na corrente tomista que considera a contemplação como uma ação do intelecto que gera o amor, a outra na corrente voluntarista representada por S. Boaventura e Duns Scoto (+ 1308) que considera a contemplação como amor e fruto de amor. Depois a contemplação é interpretada como uma forma superior de conhecimento que se caracteriza pela simplicidade do ato: intuição da verdade ou repouso tranquilo no objeto conhecido.20 Principalmente este último sentido podemos reconhecer numa página do Diário pessoal de Dag Hammarskjöld, (1905-1961), quando era secretário geral da ONU.
Em 4 de agosto de 1959, na solidão do seu apartamento em Nova York, ele escreve no seu diário pessoal:
‘A simplicidade consiste em conhecer a realidade não em relação a nós mesmos, mas na sua independência sagrada. Simplicidade é ver, julgar e agir a partir do centro de nós mesmos. Quantas coisas então vão cair fora! E como não vai cair todo o resto em seu lugar!
Repousando no centro do nosso ser, encontramos um mundo em que tudo, da mesma maneira repousa em si mesmo. Daí a arvore torna-se um mistério, a nuvem uma revelação, o ser humano um cosmos - cuja riqueza enxergamos só de vez em quando, num relâmpago. Para o simples a vida é simples, mas abre para ele um livro em que nunca passaremos além da primeira sílaba’.21

Uma vida contemplativa é, portanto, uma vida marcada pela contemplação. A expressão vai estendendo o seu sentido ao conjunto de pessoas cuja vida é uma procura de contempla-ção.22
Thomas Merton (1915-1968), um dos mais marcados escritores místicos do século passado. Convertido ao catolicismo entrou em 1941 na abadia dos trapistas. Em 1948 ganhou fama com seu bestseller The Seven Storey Mountain ( A Montanha dos Sete Patamares), que é uma autobiografia em que ele descreve os anos da sua juventude, sua conversão e os primeiros anos da sua vida como monge trapista. Um tema preferido das suas publicações é a contemplação. Já em 1948 aparece uma primeira publicação sobre esse assunto: ‘What is Contemplation?’ Mas o livro é pouco original. O tema teve uma atenção melhor em Seeds of Contemplation (Sementes de contemplação), mas que alguns anos depois mereceu uma publicação de New Seeds of Contemplation (Novas sementes de contemplação).
Mas o primeiro livro sobre contemplação merecia uma revisão e aprofundamento. O próprio Thomas Merton escreve no seu Diário pessoal (12.07.1959), referendo-se à edição de 1948:
Como me enganava ao considerar a contemplação só como parte da vida do homem. Para um contemplativo a vida toda é contemplação’. Depois de ter trabalhado em 1959, o manuscrito ficou sem ser publicado até uns últimos remanejamentos feitos pelo autor em 1968. Merton não chegou a ver a publicação do seu último livro ao qual deu o titulo de ‘A experiência interior’. O subtítulo ‘Notas sobre a Contemplação’ adverte o leitor que não deve pensar que o livro é um tratado completo e definitivo sobre a contemplação, pois este nunca será publicado. No que diz respeito a mística e contemplação, a palavra e o silêncio estarão sempre um oposição, mas também se fecundam mutuamente. Tendo entregado o texto para ser publicado, Thomas Merton viajou para a Índia afim de participar de um encontro com monges budistas, durante o qual morreu. Apresentaremos alguns tópicos de Merton sobre mística e contemplação como um estímulo a um aprofundamento pessoal e comunitário dos contemplativos (as) aqui presentes.23

Não podemos dizer que o nosso mundo passa por um período de paz e sossego. Basta dirigir a nossa atenção aos continentes ocidentais. No segredo do nosso interior a paz que desejamos, é ameaçada mesmo quando nos é oferecida uma solução dos problemas correntes. Fenômeno estranho nesta era que atravessamos. Basta limitar-nos ao nosso Brasil com os avanços que foram feitos no terreno público que, porém, de outro lado tornam mais visíveis e prementes os problemas que continuam atingindo o nosso povo. Tem-se às vezes a impressão de que os avanços da civilização do mundo secularizado fazem aumentar os problemas nas diversas dimensões da vida pública e que não deixam de repercutir nas diversas manifestações do fenômeno religioso. É Interessante observar que a própria interpretação secularizante da realidade recorre a uma linguagem religiosa para apresentar perspectivas de um mundo melhor. Lembro-me de ter lido expressões como a mística do PT, a mística da psicoanálise. A história nos oferece numerosos testemunhos que viveram a esperança cristã nos infernos escuros e terrificantes da existência humana. Neste sentido lembro-me de um confrade, carmelita, frei Tito Brandsma, professor de filosofia e mística na universidade católica da Holanda que morreu no campo de concentração de Dachau, em 1942, vítima do sistema nazista sobre o qual ele se tinha pronunciado numa palestra em 1939: ‘Vivemos num mundo em que até se chega a condenar o amor, dizendo que é uma fragilidade que deve ser superada. Nada de amor, mas desenvolvimento da própria força. ... Embora o neopaganismo não queira mais amor, mesmo assim nós venceremos este paganismo com o amor’.24 Preso para ser julgado, escreveu na cela da prisão uma poesia.
‘Quando te contemplo, ó Jesus / sinto de novo que eu te amo / e que também teu coração me ama, / como sendo o teu amigo predileto. / Sem dúvida, isso exige maior coragem para sofrer/ mas para mim todo sofrimento é bom/ pois assim eu me pareço mais contigo/ e é o caminho que me conduz ao teu Reino. / Sinto-me feliz no meu sofrimento/ porque já não o vejo como sofrimento / mas como uma graça toda especial, que me une contigo, ó meu Deus. / Ó deixa-me aqui quieto e sozinho / neste cantinho tão frio e gelado / e não permita que alguém me visite, / pois estar a sós não me cansa. / É que tu, ó Jesus estás comigo / nunca senti a tua presença tão real como agora/ Fica comigo, fica comigo, ó doce Jesus / a tua presença afasta de mim todo mal’.
Estamos um tanto esquecidos de que a esperança nasce da cruz de Cristo. Para isto será necessário que haja minorias criativas. Mas para serem criativas é necessário que haja um espaço, é o espaço da Igreja e além da Igreja também no espaço da sociedade. É preciso descobrir o alcance teologal da fé, da esperança e da caridade no contexto histórico fora do qual não existe uma vocação cristã, contemplativa e monástica. É claro que não existe uma técnica para descobrir e acordar o próprio interior a partir do qual essa dimensão teologal se irradia. Não haveria o eu interior se não fosse antes de tudo uma espontaneidade que só pode ser livre. O eu interior não é uma parte do nosso ser, como é um motor de um carro. É a nossa própria realidade substancial na sua inteireza ao seu nível mais alto, mais pessoal e mais existencial. Diria é a nossa vida espiritual quando está no máximo de vitalidade. O eu interior é um segredo que nenhuma ciência ou conceito pode atingir porque não é uma coisa, um objeto. O que podemos eventualmente fazer é levar uma vida de silêncio, de solidão - não de isolamento e de introversão, a fim de descobrir o silêncio do eu interior. Penso que a vida monástica, - na medida em que todos seus membros formam uma única “pessoa mística” que é ‘Cristo’ que ama a si mesmo - pode oferecer um ambiente receptivo para uma tímida e imprevisível manifestação da sua presença. Sem uma descoberta do eu interior não há consciência de Deus nem descoberta de que o homem é imagem de Deus. O eu interior é uma espécie de espelho em que Deus não somente vê a si mesmo, mas se revela enquanto se reflete no espelho. Metaforicamente podemos dizer que através do escuro, transparente mistério do nosso interior podemos ver a Deus através de um vidro. É o que vimos na visão que santo Agostinho tinha da vida contemplativa.

Para quem vive a partir do seu eu interior não há mais uma divisão entre o que é natural e o que é sobrenatural na sua vida. Por que Atanásio de Alexandria defendeu contra os arianos a doutrina da divindade de Jesus, o Filho do Pai que se fez homem e habitou entre nós? É um dogma da fé da Igreja católica. Até pode ser que não afeta a muita gente que se dizem cristãos. O que não deixa de refletir negativamente na vida espiritual. Como podemos nos salvar por Cristo, homem que não é Filho de Deus Pai? Como trabalhar por mundo melhor se este mundo, como humanidade, não for objeto do amor do Pai em seu Filho no qual não há nenhuma divisão entre a sua natureza divina e sua natureza humana? Insisto neste ponto para que pelo menos vislumbremos que a nossa vida monástica e contemplativa tem tudo a ver com a humanidade, com a sociedade de que somos membros. É impossível dividir o sagrado e o secular em dois compartimentos incomunicáveis. O que significaria neste caso a misericórdia de Deus? A opção preferencial pelos pobres, sempre presente no objetivo geral da pastoral da Igreja no Brasil, não deixa de ter suas tangentes políticas, sociais e econômicas. Penso que o contemplativo não foge dessa realidade. É claro que nesta altura entramos no capítulo sobre os vários tipos de contemplação. Penso inclusive que seria em detrimento da própria Igreja se a contemplação se reduzisse a uma só forma. Como diz Thomas Merton; ‘O espírito contemplativo não, de fato, normalmente ultraconservador, mas nem é necessariamente radical. Ele transcende a ambos esses extremos para conservar um contacto vivo com aquilo que é genuinamente verdadeiro em cada movimento tradicional’.25
O que dizer dos vários graus da contemplação: ordinária, extraordinária ou infusa, etc. Com Merton podemos dizer que a partir da expressão divina patitur, isto é ‘a experiência da realidade divina não é experimentada, mas vem experimentada, para sublinhar a passividade, é ‘acolhida da divina luz-nas-trevas como dom supremo misterioso e inexplicável do amor de Deus’. Assim podemos resumir os elementos essenciais da contemplação mística26: 1) Uma intuição que no seu nível inferior transcende os sentidos e no seu nível mais alto transcende o próprio intelecto. 2) Por isso se caracteriza por uma qualidade de luz na treva, de conhecimento no desconhecimento Encontra-se além das sensações e também além dos conceitos. 3) Neste contacto com Deus, na escuridão, deve haver uma certa atividade de amor de ambas as partes. 4) A contemplação é obra do amor e o contemplativo dá prova do seu amor deixando todos as coisas, mesmo as coisas mais espirituais a Deus na nulidade, no desapego e na noite. Mas o ponto decisivo na contemplação é sempre a ação livre e imprevisível de Deus. 5) Este conhecimento no desconhecimento não é intelectual, nem em sentido preciso afetivo. Não diz respeito a uma faculdade especifica que une a alma com um objeto que está fora dela. É um trabalho de união interior e de identificação na caridade divina. 6) A contemplação é sobrenatural e um amor sobrenatural e um conhecimento sobrenatural, simples e obscuro, infuso por Deus no ponto mais alto da alma, e que transmite um contacto direto e experimental com ele. Afinal ele foi o primeiro a nos amar. 7) São Bernardo diz: ‘Amo porque amo, amo para que ame’. Isto significa que a amor basta a si mesmo, é sua própria finalidade, seu próprio merecimento, seu próprio prêmio. 8) A experiência da oração contemplativa e os sucessivos estados de contemplação por quais se passa, são todos modificados pelo fato de que a alma é passiva,ou parcialmente passiva, sob a direção de Deus. Mas nesta sucessão de graus há também uma angústia especial na percepção aguda da própria fraqueza e do próprio abandono, vista a incapacidade de fazer algo por si mesmo. Isto acontece porque as faculdades humanas já não nos podem servir no seu modo ordinário; o que dá uma estranha incapacidade, amargura e também um aparente desespero. É que o amor de Deus não faz perguntas. 9) A contemplação é a luz de Deus que age diretamente na alma. Mas cada alma é enfraquecida por estar presa e obcecada pelo apego às coisas criadas, como consequência do pecado original. O Amor de Deus é, por assim, dizer demasiadamente puro. 10) Tudo isso faz supor que mais cedo ou mais tarde a contemplação infusa comporta uma terrível revolução interior. Quando a doçura da contemplação acaba, a meditação se torna impossível, até odiosa. As funções litúrgicas parecem um fardo insuportável. A mente está confusa e não sabe pensar. A vontade parece incapaz de amar. São períodos de escuridão, de aridez e de sofrimento. Há possibilidade de desistências da contemplação, mas há também perseverança. Continuamos assim no mistério de Deus e do homem. 11) Esta provação do indivíduo pode ser agravada por circunstâncias institucionais. A fidelidade da pessoa colocada à dura prova pode causar desavenças em relação a estruturas institucionais, porque quando é chamada a entrar na escuridão da contemplação a pessoa é convidada a deixar modelos de pensamento e de ação que antes interpretados como familiares e convencionais e a julgar com critérios completamente novos e escondidos: com a luz do Espírito Santo. Aí a situação se torna crítica. Como saber se a pessoa é conduzida pelo Espírito ou pelo demônio? Onde está o limite entre graça e ilusão? Essa situação não significa que as inspirações do Espírito Santo estão completamente em desacordo com as sábias normas tradicionais das sociedades religiosas. De outro lado não podemos negar que na história da Igreja houve casos em que pessoas guiadas por Deus foram tratadas e julgadas por homens profissionalmente santos. Pensemos em Joana D’Arc, e quem sabe, em outras pessoas que terminaram a vida delas nas fogueiras. Em todo caso não vamos negar que esses conflitos dolorosos não foram consequência de instituições que se tornaram rígidas e estereotipadas. A vida contemplativa pode ser danificada por certas definições regimentais. De outro lado, a situação torna-se particularmente difícil no caso de falsos místicos que estão sempre inclinados a reclamar a isenção de normas sociais, baseando-se em inspirações particulares. Não podemos negar que ao longo dos séculos houve um endurecimento das instituições monásticas que certamente não havia quando nasceram na Igreja. Regras são necessárias, mas de outra parte não podemos negar que existem casos em que os superiores podem dispensar determinados súditos das observâncias de certas regras. O que é evidente em casos individuais de enfermidade, de atividades, de problemas inerentes à velhice, etc. Não podemos, porém, excluir a priori a situação provocada pela vida interior da pessoa. Hoje sabemos que a membros de uma comunidade monástica se permite, depois de anos de vida comunitária, levar uma vida de eremita ou de recluso, porque desejam consagrar-se inteiramente à contemplação e à solidão.

Não nos foi possível considerar a “crise” da vida religiosa, e, em particular, da vida monástica, que no Brasil não atingiu ainda o mesmo grau de países do “primeiro mundo”. Mesmo assim o assunto mereceria uma atenção séria e mais prolongada. Percebe-se que hoje é difícil encontrar candidatos para as nossas comunidades religiosas e monásticas cujas estruturas institucionais têm um ‘vocabulário’ bem diferente da maioria de eventuais ‘vocacionados’. Querer cortar todo contacto deles com o ‘mundo’ e suas dependências seculares não deixará de provocar conflitos e frustrações. Não é de uma só vez que se descobre a gratuidade da própria existência que nos impele a colocar-nos ao serviço do amor de Deus e do próximo. Daí a necessidade de encontrar outras maneiras também comunitárias de vida contemplativa. O que não nos dispensará da escolha de habitar nos confins. O chamado de Deus só pode ser no sentido de seguir um caminho de libertação; o que implicará uma renúncia a todas as dominações mundanas e às devastações do mal. Do contrário dificilmente haverá minorias criativas: “homens e mulheres que, no encontro com Cristo, tenham encontrado uma pérola preciosa” como escrevia Bento XVI pouco tempo antes de ser eleito papa.27 Que os contemplativos seja onde estiverem, deem voz à sua e nossa esperança por uma vida de oração, oração que é uma experiência entre abraço e silêncio de Deus.

Dom frei Vital Wilderink, o.carm.
1 Sölle, Dorothee, Lieben und arbeiten –Eine Theologie der Schöpfung,Hoffmann und Campe, Hamburg 1999. O texto citado é da tradução do livro em neerlandês, God heeft mensen nodig, een theologie van de schepping, Uitgeverij Ten Have, Kampen, 2000, p.236.
2 Joris Baers, Evoluerend westers denken over mystiek in de twintigste eeuw, em Encyclopedie van de mystiek, Uitgeverij Kok-Kampen, 2003, p. 208.
3 Ver Luiz Carlos Susin (organizador) Sarça ardente,Teologia na América Latina: Prospectivas, São Paulo, Paulinas, 2000.
4 Gustavo Gutiérrez, Situação e tarefas da teologia da libertação, ibidem, pp. 49-77.
5 A convocação do Vaticano II era um eco de gritos que já havia mais tempo ressoavam de diversas maneiras em muitos lugares. Isto pode explicar o interesse por certos livros de autores que visavam algo mais do que apontar para distorcidas situações políticas, sociais e econômicas Diário de Dag Hammarskjöld (1905-1961), Le milieu divin de Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955), La pesanteur et la Grace e Attente de Dieu de Simone Weil (1909-1943) Widerstand und Ergebung (Resistência e Perdão) de Dietrich Bonhoeffer (1906-1945). O que dizer de Thomas Merton, monge trapista e ativista, um dos mais importantes autores místicos do século XX.
6 Sobre a Bíblia como fonte da espiritualidade ver Kees Waaiman, Spiritualiteit, Kok - Kampen e Uitgeverij Carmelitana – Gent, 2000, pp.33-35 e Mystiek in de psalmen, uitgeverijen Ten Have e Carmelitana, 2006 (segunda edição).
7 Ver Joris Baers, o.c., pp.215-223.
8 Trata-se de um testemunho de uma mãe que estava com seus filhos enfermos no hospital. A poesia foi publicada no Informativo do Instituto Camiliano de Pastoral da Saúde e bioética, maio 2012. Transcrevemos dois versos da poesia que tem como título A experiência mística. Há autores que admitem uma mística sem Deus, explicando-a como uma forma de consciência simbólica.
Não é provado que a aproximação simbólica do fenômeno místico vale para todas as formas de mística.
9 Ver as reflexões de Bento XVI na audiência geral de 16 de maio de 2012 cujo tema era A oração liberta, publicadas no L’Osservatore Romano em português de 19.05.2012 p. 3.
10 Karl Rahner, Frömmigkeit früher und heute, em Schriften zur Theologie VII, Einsiedeln-Zürich, 1966, p. 22.
11 Recitação do Regina Caeli na praça de São Pedro, em L’Osservatore Romano de 12 de maio de 2012, p.7.
12 Ver Gerard Mathijsen, Monastieke Mystiek tot circa 1300, em Encyclopedie van de mystiek, pp. 585-596.
13 Dizionario di Mistica, Libreria Editrice Vaticana, 00120 Città del Vaticano, verbete Cassiano Giovanni (O. Pasquato)
14 Gerard Mathijsen, Monastieke Mystiek, o.c. p.587.
15 Seguimos a visão da mística na ordem dos augustinianos até o século XVII, de Martijn Schrama, em Encyclopedie van de mystiek,, pp. 603-621.
16 Santo Aostinho, Comentário aos Salmos, (Tradução das Enarrationes in psalmos, Monjas beneditinas do Mosteiro de Caxambu-MG,, São Paulo: Paulus, 1997, Salmo 41, 8.
17 De acordo com a opinião de certos autores as experiências religiosas de Agostinho não foram ‘místicas’ no sentido que se reserva a uma ‘contemplação infusa’. Isto faz descobrir a variedade que existe em relação à interpretação da expressão ‘experiência mística’.
18 Ver Raimon Panikkar, L’expérience de Dieu, Icônes du Mystère, Éditions Albin Michel, Paris, 2002, pp.59-73.
19 De docta ignorantia é o título de um dos escritos teológicos do cardeal Nicolau Cusano (1401-1464).
20 Dizionario de Mística, verbete contemplazione, da autoria de M.Herraiz.
21 Dag Hammarskjöld, Merkstenen, Kok-Kampen, 2000, p.139.
22 A palavra contemplação aparece em vários estudos sobre o tema em composição com diversos adjetivos: Contemplação ordinária e extraordinária, ou adquirida e infusa, natural e sobrenatural, e‘contemplata aliis tradere’.
23 Só temos à nossa disposição o texto da The Inner Experience. Notes on Contemplation na tradução italiana: Thomas Merton, L’esperienza interiore, Note sulla contemplazione, Ed. San Paolo, Torino, 2005.
24 Egidio Palumbo, Sperare negli inferi della storia, Padre Tito Brandsma, em Horeb, Tracce di spiritualità, n. 1/2012, p. 51
25 L’Esperienza interiore, p. 109.
26 A partir dos textos enumerados de 1 a 11, reproduzimos resumidamente as páginas do capítulo 6 do livro de Thomas Merton; capítulo que trata da contemplação infusa., pp.129-141.
27 J.Ratzinger, L’Europa nella crisi delle culture, Subiaco, 1 abril 2005.







A VIDA CONTEMPLATIVA E MONÁSTICA:
ASPECTOS CANÔNICOS

Partimos da base do Concílio Vaticano II, fundamentalmente do Decreto Perfectae Caritatis. Nele temos apenas dois pequenos números sobre a matéria:

Institutos de vida contemplativa
7. Os Institutos que se dedicam exclusivamente à contemplação, de tal modo que seus membros permaneçam em oração contínua e alegre penitência, conservam sempre a parte mais excelente dentro do Corpo Místico de Cristo, em que «nem todos os membros... têm a mesma função» (Rom. 12,4), embora seja urgente a necessidade do apostolado. Na verdade, oferecem a Deus um exímio sacrifício de louvor, enriquecem com abundantes frutos de santidade o Povo de Deus, movem com o seu exemplo e dilatam-no mercê da sua misteriosa fecundidade apostólica. São honra da Igreja e fonte das graças celestes. O seu modo de viver, porém, seja revisto segundo os princípios acima expostos e os critérios duma conveniente renovação, mantendo-se, contudo, intactos a sua separação do mundo e os exercícios próprios da vida contemplativa.
Institutos de vida monástica
9. Conserve-se fielmente e brilhe cada vez mais no seu genuíno espírito, tanto no Oriente como no Ocidente, a venerável instituição da vida monástica, que tantos méritos alcançou no decorrer dos séculos na Igreja e na sociedade humana. O principal dever dos monges é servir dum modo ao mesmo tempo humilde e nobre, a divina majestade dentro das paredes do seu mosteiro, quer se entreguem totalmente ao culto divino na vida contemplativa, quer tenham assumido legitimamente algumas obras de apostolado ou caridade cristã. Mantida, pois, a índole própria da instituição, renovem as suas antigas e beneméritas tradições e acomodem-nas às necessidades hodiernas das almas, de tal forma que os mosteiros sejam como que os alfobres de edificação do Povo cristão. Do mesmo modo, as religiões que por regra ou instituto associam intimamente a vida apostólica à vida de coro e às observâncias monásticas, adaptem o seu gênero de vida à exigências e conveniências do apostolado, de maneira a manter fielmente a sua forma de vida, já que esta é de tão grande proveito para a Igreja.
É claro que, dado que os institutos contemplativos e monásticos formam parte da chamada vida religiosa, devemos ver, não apenas as normas particulares referentes a eles, mas também as comuns a todos os institutos religiosos.
Ao ser elaborada, após o Concílio, a reforma do Código de Direito Canônico, tentou-se traduzir, para a linguagem canonística a teologia conciliar, mas nem sempre se conseguiu uma síntese perfeita.


I. A posição da vida consagrada no Código de Direito Canônico

O Código de Direito Canônico de 1917 incluía no Livro II (De personis) uma segunda parte sobre "Os Religiosos". Mediante essa ordenação sistemática, parecia insinuar que estes eram uma espécie de gênero intermediário entre os clérigos e os leigos. Por outro lado, à ma neira de apêndice, falava das "Sociedades de Vida Comum sem votos".
O Concílio Vaticano II, no capítulo VI da Constituição dogmática Lumen Gentium, conservou a denominação genérica de religiosos, para os que fazem a profissão dos conselhos evangélicos. Afirmou, porém, explicitamente, no n. 43 do mesmo documento, que, "do ponto de vista da estrutura divina e hierárquica da Igreja, tal estado não constitui um estado intermediário entre o clerical e o laical".
Ao começar a reforma do Código, o grupo de trabalho correspon dente à nossa matéria de estudo recebeu o tradicional nome De religio sis. Mas já em 1969 passou a ser denominado Dos Institutos de per feição. Queria-se assim indicar que a matéria a ser tratada não era apenas a vida religiosa, no sentido canônico estrito, mas também os Institutos Seculares, as Sociedades de Vida Comum e outras formas de vida consagrada. Contudo, o con ceito de perfeição já havia tempo que vinha recebendo fortes crí ticas, como manifestativo de uma men talidade elitista, incompatí vel com a profissão dos conselhos evan gélicos, em cujo centro de veria estar radicada uma profunda humil dade. Em maio de 1974, o grupo de trabalho adotou a denominação de Os Institutos de Vida con sagrada pela profissão dos conselhos evangéli cos ou, mais sinteti camente, Os Institutos de Vida Consagrada, assim permane cendo quase até o fim da reforma do Código. Não faltou, po rém, um bom número das então chamadas Sociedades de Vida Comum que acha ram inadequada essa terminologia, que parecia ex cluí-las.
O texto definitivo do Código renunciou a dar um nome comum a to das as instituições contempladas nesta terceira parte do Livro II. Por isso, ela se encontra sob a rubrica: Dos Institutos de Vida Con sagrada e das Sociedades de Vida Apostólica. Constata-se, assim, para além da analogia, uma heterogeneidade irredutível, entre Insti tutos e Socieda des.
Também o lugar da nossa matéria dentro do Código conheceu vaci lações e incertezas. Pela própria declaração do Concílio, acima trans crita e em parte recolhida no cân. 207 § 2, era impos sível con tinuar a considerar o estado de vida consagrada como um gênero in termediário entre clérigos e leigos. Por isso, foi enqua drado dentro do fenômeno asso ciativo na Igreja. Ainda no projeto de 1980, a terceira parte do Livro II estava dedicada às asso ciações de fiéis, in cluindo, em primeiro lu gar, aquelas que assu mem a prática dos conse lhos evangélicos. No texto definitivo, po rém, a legislação sobre as associações passou para a primeira parte do Livro II, como uma espé cie de ponte entre o tratado so bre os fiéis -leigos ou clérigos- e o da hierarquia. Permaneceu as sim, na terceira parte, apenas o estudo da vida consagrada e de outras formas afins.
Essa colocação me parece altamente discutível. Apesar de to das as declarações contrárias, dá ainda a impressão de colocar a vida consa grada como uma espécie de estrutura que, de algum modo, parti cipa do caráter hierárquico da Igreja. Por que, se não, foi colocada dentro do Livro II, que trata do Povo de Deus, no seu ser mais ín timo e na sua estrutura básica? Por que lhe é dado um estatuto sepa rado do de outras associações existentes na Igreja? O cân. 207 é bastante claro: O estado dos que professam os con selhos evangélicos, embora não faça parte da estrutura hierár quica da Igreja, pertence, contudo, à sua vida e santidade. A vida consagrada não é, pois, um elemento constitu tivo do ser eclesial, mas deriva de sua vida e do exercício do seu mú nus de santificar. É por isso que creio que o lu gar mais próprio para tratar dela teria sido o Livro IV do atual Có digo. De fato, a vida con sagrada pela profissão dos conselhos evan gélicos não é um monopólio da santidade ou da perfeição, e sim um dos meios que a Igreja usa para realizar o seu encargo peculiar de promover a santificação dos seres humanos.
O tratado que nos ocupa divide-se, no Código, em duas seções, de acordo com a heterogeneidade já indicada da matéria. A primeira trata dos Institutos de Vida Consagrada; a segunda das Sociedades de Vida Apostólica. Pretendeu, sobretudo, inspirar-se no princípio da diversi dade dos dons. Por isso, é relativamente breve -174 cânones, contra os 195 do Código de 1917-, embora não tão breve quanto o pro jeto enviado aos Bispos em 1977, que conti nha apenas 126 cânones. Conseqüentemente, deixa uma ampla margem para a variedade dos diver sos institutos e para o desenvolvimento de uma legislação própria de cada um. Apesar de um título sobre as Normas comuns a todos os Ins titutos de Vida Consa grada, vê-se facilmente que os Institutos reli giosos continuam a ser o para digma, pois na legislação peculiar para os Institutos seculares e para as Sociedades de Vida Apostólica há freqüentes referências ao que fora determinado especificamente para os religiosos.
Apesar de uma certa resistência manifestada por diversos organis mos, durante a reforma do Código, este procura refletir, mais talvez aqui do que em outras partes, não só os elementos ju rídicos, mas tam bém os mais importantes princípios teológicos da vida consa grada na Igreja, de acordo com os documentos do Concí lio Vaticano II.


II. Conceito de Vida Consagrada: o sentido da Con sagração

Não obstante a variedade de motivações que se podem consta tar na longa evolução histórica da vida consagrada, o elemento básico aparece já insinuado em São Paulo, no capítulo 7 da 1a Carta aos Co ríntios: trata-se de servir a Deus com o coração in diviso. O cân. 573 expressa essa realidade com uma radicalidade difícil de superar: consagram-se totalmente a Deus sumamente amado. A vida consagrada, pois, no seu cerne mais radical, não é nem mais nem menos do que um aprofundamento da própria vida cristã, ou seja, a consumação no amor de uma existên cia humana. Esse amor tende a ser total, tanto na sua extensão -"consa gram-se totalmente"- quanto na sua intensidade -"a Deus sumamente amado". Desse modo, tudo, absolutamente tudo, é colo cado em relação explí cita com Deus, não apenas enquanto Criador e Senhor, mas também en quanto centro da vida afetiva, do coração do homem. Sem dúvida, a con sagração batismal já aponta para esse cami nho, mas nor malmente isso se realiza através da mediação do amor hu mano. No es tado de vida consa grada, para além do batismo, existe um novo e pe culiar título, o da profissão, me diante o qual se pro cura centrali zar a existência humana no amor de Deus, sem ter que passar pelas mediações humanas. É verdade que, nas nossas vidas, essas me diações são insubstituíveis; sem elas não chega ríamos à maturidade afetiva. O amor dos pais, dos irmãos, das pessoas que nos rodeiam, nos faz descobrir o amor de Deus. Mas, na vida consa grada, chega um momento em que, de modo semelhante aos sama ritanos, poderíamos dizer para essas pessoas: "Já não é por causa do que tu fa laste que ama mos. Nós próprios o ouvimos e o vimos, e sabemos que esse é verda deiramente o Amor presente no mundo."(1)
O novo e peculiar título de que estamos falando recebe, na tra dição cristã, o nome de consagração. Essa palavra, no seu sen tido eti mológico, designa a ação mediante a qual uma coisa, mas sobretudo uma pessoa, é "feita sagrada", ou seja, é reservada para Deus. Sem dúvida, toda a criação deveria ser considerada as sim. O ser humano, porém, sabe que não possui a sua existência em plenitude e que, por isso, é incapaz de expressar, constantemente e em todas as coisas, o caráter sagrada de toda a realidade. Daí brota, quase naturalmente, o princí pio da representação: objetos ou pessoas determinadas passam a ser considerados numa relação especial com a Divindade, cumprindo de algum modo o papel de re presentantes dos outros. Por isso, esses objetos e essas pessoas recebem o nome de sagrados. Contudo, no ba tismo, essa consagração é algo mais do que uma simples denominação; trata-se de uma ver dadeira incorporação a Cristo, que transforma o próprio ser hu mano, conferindo-lhe um caráter indelével.
Na consagração pela profissão dos conselhos evangélicos, não se dá mais essa transformação íntima. O que acontece, como dizíamos, é uma retomada em profundidade da consagração batismal, atualizando-a e colocando-a em destaque. Além disso, há nela ou tros dois elemen tos in substituíveis: a iniciativa de Deus e o mi nistério da Igreja. A vida consagrada, no sentido que estamos ex plicando, não acontece pela sim ples vontade humana, nem indivi dual nem coletiva. Ela é sem pre fruto do impulso do Espírito Santo, conforme expressa o já ci tado cân. 573. Nessas breves pa lavras, está contido o conceito de vocação divina, tão enraizado na tradição da vida religiosa. Nesse sentido, pode-se dizer que o primeiro agente da consagração de que estamos falando não é o ho mem mas o Espírito Santo. É Ele quem se para alguns para uma obra es pecial(2). É Ele também quem dá a força para a sua realização.
Mas, na vida consagrada, há também uma inserção especial na vida da Igreja. Trata-se de algo que pertence à vida e santidade dela(3). De fato, não estamos tratando de qualquer tentativa in dividual de vi ver os conselhos evangélicos, mas de estados canô nicos de vida, ou seja, reconhecidos pela autoridade da Igreja. Por isso, a profissão dos re ligiosos se faz num ato litúrgico, em sentido es trito. A mesma coisas se diga da profissão das virgens consagradas no mundo. Embora isso não apareça tão claro no caso dos Institutos seculares e das So ciedades de Vida Apostólica, trata-se também de instituições canonica mente erigi das e os seus vínculos são regula mentados pela autoridade eclesiás tica. Por isso, podemos dizer que a consagração de que estamos falando acontece pelo ministério da Igreja. Com efeito, a Igreja aco lhe, em diversos graus, o ofereci mento dos que professam a vida consa grada. Este elemento eclesial encontra-se apenas implicitamente no cân. 573, mas tem a sua expli citação no cân. 574:
§ 1. O estado dos que professam os conselhos evangélicos nesses institutos pertence à vida e santidade da Igreja e, por isso, deve ser incentivado e promovido por todos na Igreja.
§ 2. Para esse estado, alguns fiéis são especialmente chama dos por Deus, a fim de usufruírem de um dom particular na vida da Igreja, e, segundo o fim e o espírito do instituto, servirem à sua missão sal vífica.


III. A finalidade da consagração

O amor de Deus não é só a fonte donde brota a consagração, mas também a meta para a qual ela aponta. Como nesse amor se en contra a salvação do homem e a sua perfeição, primeiramente o es tado reli gioso e depois os outros estados de especial consagração receberam o nome de estados para adquirir a perfeição ou, sim plesmente, estados de per feição, nome certamente discutível, mas que poderia ser bem entendido. Na aquisição da perfeição da cari dade, no seu sentido mais pleno, ou seja, como amor de Deus, en contra-se a finalidade principal da vida consagrada. Não obstante os mal-entendidos que essa expressão tem pro vocado, o Código de 1983 ainda a conserva no cân. 573 § 1: para alcan çarem a per feição da caridade, no serviço do Reino de Deus. Advirta-se, po rém, que não se trata de um perfeccio nismo individualista, mas, pelo contrário, do esquecimento de si, mergulhando no amor total de Deus, vivido sumamente. Por isso, o Có digo não utiliza mais a tradi cional expressão "salvação própria", que era tão comum nas consti tuições dos religiosos. Amar sumamente é sair de si suma mente. A tensão na vida consagrada não pode ser colo cada na pró pria pessoa do consagrado, mas em Deus que chama e que consagra.
O amor de Deus concretizou-se, para nós, em Cristo Jesus. Por isso, a consagração vai levar também a seguir mais de perto a Cristo(4). Esse seguimento deverá produzir uma identificação com a própria missão de Cristo: a honra do Pai, a construção da Igreja e a salvação do mundo. Essa tarefa é explicitada, com es sas palavras, pelo mesmo cân. 573.
Como dizíamos, na vida de especial consagração, há também um ele mento eclesial. De fato, os que professam os conselhos evangé licos, unem-se de modo especial à Igreja e ao seu mistério (cân. 573 § 2; cf. LG 44). Daí deriva uma tarefa peculiar para os con sagrados: serem si nal preclaro na Igreja e preanunciarem a glória celeste. Ao meu ver, estas expressões do cân. 573 § 1 se aplicam mais direta mente aos reli giosos, pois eles, pelo seu gênero de vida, constituem um sinal mais explícito e inteligível para o Povo de Deus. Mas tam bém devem ser en tendidas, de algum modo, em relação aos outros esta dos de vida consa grada. É verdade que aqui, como em outros pontos já explicados, não se trata de uma tarefa exclusiva. A Igreja toda tem um sentido escatoló gico (5). Por isso, todos os fiéis devem ser sinal e presença incoada do mundo futuro. Mas a vida que esperamos con siste fundamentalmente na vivência plena do amor de Deus. Por isso, os membros dos esta dos de vida consagrada, que pretendem viver esse amor na imedia ticidade di reta de sua entrega total, têm uma tarefa especial de preanunciar a glória celeste.

IV. O aspecto libertador da consagração.
O Concílio Vaticano II afirma que o fiel que é chamado à vida consagrada, para que possa colher frutos mais abundantes da graça ba tismal, procura pela profissão dos conselhos evangélicos na Igreja li bertar-se dos impedimentos que o possam afastar do fervor da cari dade e da perfeição do culto divino(6). De fato, num mundo onde os apelos ao consumismo, à sexualização total da vida e ao domínio ou prevalên cia sobre os outros são contínuos, a vida consagrada mostra uma exis tência possuída em plenitude, sem que a pessoa se deixe ar rastar pelos condi cionamentos externos. Neste sentido, os consagra dos são também "uma denúncia evangélica da queles que servem ao di nheiro e ao poder, reser vando para si egoisticamente os bens que Deus outorga para bene fício de toda a comunidade"(7). Essa denúncia se estende também a todo pro jeto histórico que, apartando-se do plano divino, não faça crescer o homem em sua dignidade de filho de Deus"(8). Assim, já não se trata apenas de uma libertação para si, mas também de um incen tivo para a libertação dos outros. De modo es pecial, aparece isto em relação ao conselho evangélico da castidade. "Neste mundo, onde o amor está sendo esvaziado de sua plenitude, onde a desu nião amplia distâncias por toda a parte e o prazer é eri gido como ídolo, os que pertencem a Deus em Cristo pela castidade consa grada serão um testemunho da aliança liber tadora de Deus com o homem e, no seio da própria Igreja particular, uma presença do amor com que Cristo amou à Igreja e se entregou a si mesmo por Ela (Ef 5,25). Finalmente, serão todos um sinal luminoso da li bertação esca tológica, vivida na entrega a Deus e numa solidarie dade nova e uni versal com os homens"(9).
É por isso que a Sagrada Congregação para os Religiosos e Insti tutos Seculares (atual Congregação para os IVC e as SVA) afirma que "os temas de uma libertação evangélica fundada no Reino de Deus devem tornar-se particularmente familiares aos re ligiosos"(10). Não se es queça, porém, que esse aspecto libertador não é algo isolado, mas forma parte integrante da vivência dos conselhos evangélicos. É por eles e através deles que o consa grado prestará o seu serviço liberta dor.


V. Os elementos jurídicos da consagração

Até agora focalizamos os elementos teológicos da vida consa grada na Igreja. Mas o tantas vezes citado cân. 573 § 1 contém ainda alguns elementos claramente jurídicos. Trata-se, de fato, de uma vida consa grada pela profissão dos conselhos evangélicos; e é uma forma estável de viver. Há, pois, três elementos jurídi cos básicos:
1. A estabilidade - A consagração, enquanto nascida do amor, não pode ter um sentido provisório. Todo amor autêntico tende, por sua própria natureza, a perpetuar-se. Por isso, a vida consa grada é uma forma estável de viver. Essa estabilidade encontra a sua ex pressão plena no compromisso definitivo, mediante vínculos perpé tuos. Daí os questionamentos que se têm levantado, após o Concílio Vaticano II, contra os votos temporários dos religiosos. A legis lação canônica atual os conservou, mas indicando clara mente que eles somente têm sen tido na medida em que se trata de vínculos a serem renovados ao tér mino do prazo. Embora esta de claração do cân. 607 § 2 se refira dire tamente apenas aos reli giosos, a sua doutrina parece estar implícita no conceito de forma estável de viver, do cân. 573 § 1. O oferecimento de si, que a pessoa faz na vida consagrada, tem sempre uma dinâmica de perpetuidade. Em qualquer gênero de vida con sagrada, a intenção mais profunda deveria ser a de dar sem medida, para sempre.
2. A profissão - A consagração de que estamos falando se rea liza mediante um ato formal, regulamentado pelo Direito, que se chama pro fissão. Etimologicamente, essa palavra -derivada do latim profiteri- significa o discurso pronunciado na frente de outros. A profissão é uma manifestação, clara e explícita, em face da Igreja, de assumir a vida de consagração. Como veremos, ela pode ser reali zada de modos di versos, de acordo com a natu reza do Instituto -secu lar, religioso- ou do estado -virgens no mundo, eremitas- em que é emitida. Precisamente porque nas Socie dades de Vida Apostólica nem sempre aparece tão clara mente essa declaração perante a Igreja, é pelo que elas formam uma seção pe culiar desta parte do Código e não entram dentro da categoria de Institutos de Vida Consagrada.
3. Os conselhos evangélicos - Como dizíamos, a consagração se re sume na vivência imediata e plena do amor de Deus. Contudo, na tra dição da Igreja, essa vivência encontrou uma formulação ju rídica nos três chamados conselhos evangélicos. Apesar das ob jeções levan tadas contra esta terminologia, o Código de 1983 con servou-a, por estimar que longos séculos de tradição indicam cla ramente o que com ela se de seja significar. Assim, o cân. 575 afirma: Os conselhos evangélicos, fundamentados na doutrina e nos exemplos do Cristo Mes tre, são um dom divino que a Igreja recebeu e que, com sua graça, conserva sempre.
O conteúdo da profissão da vida consagrada concretiza-se nos três conselhos evangélicos -castidade, pobreza e obediência-, mesmo que, em algumas ordens antigas, eles não apareçam tão cla ramente diferencia dos.
O aspecto jurídico dos conselhos evangélicos fica suficien temente claro no cân. 575: Cabe à competente autoridade da Igreja interpretar os conselhos evangélicos, regular por meio de leis sua prática e, as sim, constituir, pela aprovação canônica, formas está veis de viver.



VI. A diversidade de formas de vida consagrada na Igreja.

Através do panorama histórico que traçamos no capítulo pri meiro, vimos a enorme diversidade de formas de vida consagrada que floresce ram e florescem na Igreja. Nunca faltaram tentativas de cer cear essa variedade. Os Concílios Ecumênicos IV de Latrão, de Lyon e de Trento ditaram proibições de novas fundações. Também durante a última codifi cação surgiram, no seio da comissão de re forma, tendên cias neste sen tido. O novo Código, porém, não aco lheu essa tendên cia, antes louva a variedade existente, como um bem para a Igreja: Há na Igreja numero síssimos Institutos de vida consagrada que pos suem dons diversos se gundo a graça que lhes foi dada, pois seguem mais de perto a Cristo que ora, que anuncia o Reino de Deus, que faz o bem aos homens, que convive com eles no mundo, sempre, porém, fa zendo a vontade do Pai (cân. 577).
O Código, aliás, não se conforma apenas com elogiar a diver sidade já existente, mas deixa também a porta aberta para o sur gimento de no vas formas de vida consagrada. Não obstante a re serva pontifícia para a aprovação dessas novas formas, o cân. 605 acres centa: Os Bispos dio cesanos... se esforcem para discernir novos dons de vida consagrada confiados pelo Espírito Santo à Igreja; ajudem seus promotores para que expressem e protejam, do melhor modo possí vel, seus objetivos, com estatutos adequados es pecialmente usando as normas gerais contidas nesta parte. Pode mos, por isso, dizer que, no momento atual, a Igreja adota uma atitude de expectativa confiante na força do Espírito, sem pre tender limitá-lo às formas já existen tes.
Mas quais são essas formas? De acordo com a legislação canô nica atual, podemos falar de quatro formas básicas de vida consa grada, e de outras duas que, pelo menos parcialmente, a elas se podem assimi lar ou que lhes são próximas. As formas que chamamos básicas se di videm em dois grandes grupos:

1. Em Institutos canonicamente erigidos - Trata-se de asso ciações de fiéis, com a finalidade expressa de promover a obser vância dos con selhos evangélicos, segundo normas próprias, dentro do quadro geral da legislação canônica. Os Institutos são erigi dos ca nonicamente, quer dizer, recebem a sua existência e perso nalidade jurídica mediante um ato (decreto) da autoridade ecle siástica compe tente(11). Por isso, seus membros unem-se de modo especial à Igreja e a seu mistério(12). Conseqüentemente, os Ins titutos de que tratamos gozam de personalidade jurídica pública.
Os Institutos de vida consagrada reconhecidos pela Igreja po dem ser de dois ti pos:
a) Institutos religioso, que no Código de 1917 recebiam o nome genérico de religiões.
b) Institutos seculares, denominação um tanto ambígua, por causa do uso do adjetivo secular também em outros contex tos diferen tes. Re gulamentados por leis especiais, a partir de 1947, entraram no Código de 1983.

2. Fora dos Institutos canonicamente erigidos - Na descrição his tórica da vida consagrada, já vimos como, em 1957 e 1958, Pio XII fez alusão a novas formas de consagração. O Código de 1983 recolhe, em parte, aquelas afirmações e nos fala de dois tipos de consagração fora dos Institutos:
a) As Virgens consagradas no mundo (ou "virgens seculares") do cân. 604. Contrariamente ao que insinuou Pio XII, aqui não se faz nenhuma alusão a um tipo semelhante de con sagração para os homens.
b) Os eremitas, no sentido mais estrito da palavra, ou seja, que vivem no afastamento completo do mundo e no silêncio da soli-dão, reproduzindo, em certo modo, o monaquismo primitivo. Mas também aqui falta qualquer referência a uma vida contemplativa vivida no mundo, de que Pio XII fa lava(13).

3. Novas formas de vida consagrada - A seu devido tempo, tratare mos em particular das quatro formas citadas. Recentemente, porém, foi apro vada, com base no cân. 605, uma nova forma de vida consagrada, "na sua singularidade, conforme as próprias insti tuições". Ainda mais, a nota de L'Osservatore Romano fala de Fa mília eclesial de Vida consagrada, sem que fique claro o signifi cado dessa expressão. Trata-se da Obra da Igreja, "integrada por sacerdotes e por leigos de ambos os sexos, que professam os con selhos evangélicos com votos; por sacerdotes que, sem viver em comunidade nas casas da Obra, estão incardinados nas próprias Dioceses; por leigos, de qual quer idade e condição social, que buscam a perfeição cristã no mundo, segundo o próprio estado. To dos desen volvem em conjunto um mesmo harmônico e co-responsável trabalho apos tólico, nas casas de apostolado e nas paróquias con fiadas à mesma Obra"(14).

4. Formas que se aproximam ou "acrescem" à vida consagrada - Além das formas que acabamos de enumerar, o Código apresenta, na seção II da III parte do Livro II, as Sociedades de Vida Apostó lica, anterior mente chamadas Sociedades de Vida Comum, sem votos, que imi tam a vida religiosa e que se aproximam da vida consagrada. A elas dedicaremos um estudo mais completo.
Por outro lado, creio que também o estado clerical, tal como é descrito na atual legislação canônica, poderia ser qualificado de es tado de vida consagrada ou, pelo menos, de estado que se aproxima ou acresce à vida consagrada. Com efeito, o cân. 276 § 1, diz que os clé rigos são obrigados, por especial razão a procu rar a santidade, já que consagrados a Deus por novo título na re cepção da ordem. Essa consa gração se reflete no fato de eles es tarem obrigados a observar a con tinência perfeita e perpétua por causa do Reino dos céus (cân. 277); devem levar uma vida simples e abster-se de tudo o que denote vaidade, empregando os bens que lhes sobrarem para as necessidades da Igreja e o sustento dos po bres (cf. cân. 282 § 1), o que se apro xima bastante do conselho evangélico da pobreza; e têm obrigação es pecial de reve rência e obediência ao Romano Pontífice e ao respec tivo Ordinário (cân. 273). Inclusive, existe para eles a recomen dação da vida comum (cf. cân. 280). Tudo isso leva a concluir que a vida clerical é uma vida de especial consagração, análoga às outras formas de vida consa grada e que se não se fala dela na parte do Có digo que estamos estu dando é porque a sua especificidade está no minis tério, para o qual os clérigos são consagrados.



DEPENDÊNCIA E AUTONOMIA
DOS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA


I. Vida da Igreja e regulamentação jurídica.

Como acabamos de ver, a vida consagrada pela profissão dos conse lhos evangélicos pertence à vida e santidade da Igreja(1). Mas a Igreja é, simultaneamente, "sociedade provida de órgãos hierárquicos e Corpo místico de Cristo, assembléia visível e co munidade espiri tual, Igreja terrestre e Igreja enriquecida de bens celestes... Esta Igreja, constituída e organizada neste mundo como uma sociedade, subsiste na Igreja Católica, governada pelo sucessor de Pedro e pe los Bispos em comunhão com ele"(2). Por causa desse aspecto social -que não é algo extrínseco, acrescen tado, mas parte integrante do ser eclesial- cabe à competente au toridade da Igreja interpretar os con selhos evangélicos, regular por meio de leis sua prática e, assim, constituir pela apro vação canônica formas estáveis de viver; a ela cabe também, na parte que lhe compete, cuidar que os institutos cresçam e floresçam de acordo com o espírito dos fundadores e as sãs tradições (cân. 576).
Sem dúvida, a dupla natureza da Igreja provoca tensões e dificul dades. E isto aparece mais claramente num estado, como o da vida con sagrada, em que o elemento carismático é tão forte mente co locado em destaque. Não se esqueça, porém, que, de acordo com o ci tado n0 8 da Lumen Gentium, o mistério da Igreja é compa rável ao mistério do Verbo Encarnado. Por isso, a solução do con flito apa rente não pode estar na supressão de um dos elementos, visível e es piritual, da natureza da Igreja. Ambos se encontram unidos "sem con fusão e sem mudança, sem di visão e sem separação", de acordo com a conhecida fórmula de Calcedô nia. Por isso, nem a hierarquia pode su primir o carisma, nem o carisma pode sobrepor-se à hierarquia. Como víamos, a vida consagrada surge sob o im pulso do Espírito Santo, mas para ser vivida na Igreja, como parte integrante de sua caminhada à procura da santidade para a qual é chamada.
A intervenção da autoridade eclesiástica, em relação à vida con sagrada tem uma dupla finalidade: promover o desenvolvimento de suas diversas formas, e dar aos fiéis uma garantia de autenti cidade da pre sença do Espírito, em cada forma concreta. É pela própria au toridade de Cristo, da qual o Romano Pontífice e o Co légio Episcopal são depo sitários, que essa garantia é possível. Sem dúvida, os abu sos podem acontecer, porque o elemento humano, intrínseco à Igreja, é falível. Temos conhecido épocas em que o ideal parecia ser a uni ficação de to das as formas de vida consa grada, sem atender à diver sidade de inspi rações. Não é essa a tendência atual; antes, seguindo o Concílio, pro cura-se viver a riqueza da diversidade. Mas não há dúvida que continua e conti nuará a haver tensão entre o elemento institucional e o caris mático. Saber caminhar harmonicamente, combi nando os dois, é o grande desafio atual da vida consagrada.


II. A Vida própria de cada Instituto: elementos funda mentais

O dado inicial, no surgimento de um Instituto de vida consa grada, não é a intervenção da hierarquia eclesiástica, mas o so pro do Espí rito. Daí a necessidade de lembrar sempre a inspiração funda cional. É o Espírito Santo quem convoca pessoas concretas para res ponderem a uma necessidade da Igreja; é Ele quem dá as formas para levar adiante essa tarefa. Por isso, o Código de Direito canônico ordena: A mente e os objetivos dos fundadores, aprovados pela compe tente autoridade da Igreja, no que se refere à natureza, à finali dade, ao espírito e à índole do instituto, bem como suas sãs tra dições, tudo isso constitui o patrimônio desse instituto e seja fielmente conservado por todos (cân. 578). Para alguns, chamará a atenção o fato de o Código não em pregar, nem neste nem em outros lu gares, a palavra carisma, mas con tentar-se com uma série descritiva de elementos próprios ao ins tituto. A rigor, a palavra carisma, de acordo com a teologia pau lina(3), deve aplicar-se a um dom pessoal que o Espírito Santo concede livremente a pessoas determinadas, para utilidade de todo o Corpo de Cristo, que é a Igreja. Nesse sentido, poderia, com toda a razão, falar-se do ca risma dos fundadores, mas não do ca risma da Congregação. O Código, pa rece que, para evitar a confusão de conceitos, prefere falar da mente e os objetivos dos fundado res. Ainda mais, para sublinhar o aspecto ins titucional, acres centa a expressão aprovados pela competente autori dade eclesiás tica.
A partir do momento em que essa mente e esses objetivos são apro vados, deixam de ser um dom particular do fundador e se trans formam em missão do Instituto. Com efeito, a Igreja, com sua autori dade de atar e desatar, acolheu-os como algo próprio e os devolveu ao Instituto como tarefa a ser executada. Essa idéia de missão ecle sial aparece com freqüência nas fórmulas de aprovação das consti tuições de um insti tuto.
O documento Mutuae Relationes, publicado a 14 de maio de 1978, conjuntamente pelas Congregações romanas para os Bispos e para os Re ligiosos e Institutos Seculares, descreve, do seguinte modo, aquilo que poderia ser entendido como carisma dos fundado res:
"O próprio carisma dos fundadores revela-se como uma expe riência do Espírito, transmitida aos próprios discípulos, a fim de ser por eles vivida, conservada e aprofundada e constantemente desenvolvida em sintonia com o Corpo de Cristo em perene cresci mento. É por isso que a Igreja protege e apóia a índole própria dos diversos Institu tos Reli giosos. Essa índole própria comporta outrossim um estilo pe culiar de santificação e apostolado, que estabelece uma determinada tradição própria, a tal ponto que se podem convenientemente colher seus elemen tos objetivos" (n. 11).
"Todo carisma autêntico traz consigo certa dose de genuína novi dade na vida espiritual da Igreja, bem como de particular opero sidade, que poderá talvez mostrar-se incômoda no ambiente e também criar difi culdades, pois não é fácil reconhecer sempre e logo sua proveniência do Espírito.
"A nota carismática própria de cada Instituto exige, tanto nos Fundadores quanto nos seus discípulos, contínuo exame da fide lidade ao Senhor, da docilidade ao seu Espírito, da atenção inte ligente às cir cunstâncias e da visão cautamente voltada para os sinais dos tem pos, da vontade de inserção na Igreja, da consciên cia de subordi nação à Sa grada Hierarquia, da coragem das inicia tivas, da constân cia em doar-se, da humildade em suportar os constratempos. A relação justa entre carisma genuíno, perspectiva de novidade e sofrimento interior com porta uma constante histórica de conexão entre carisma e cruz, a qual, mais do que como motivo para justificar as in compreensões, é sumamente útil para discernir a autenticidade de uma vocação" (n0 12).
Como dizíamos, o Código fala de mente e objetivos dos funda dores. Desdobra, porém, essa expressão em quatro elementos, sem con tudo defi nir o que entende por eles. Tampouco os autores que pude consultar in dicam claramente o seu significado. Ao meu ver, podem ser entendidos do seguinte modo:

-natureza.- é o tipo específico de instituo de vida consa grada: religioso ou secular; clerical ou laical; contemplativo ou de vida ativa; etc.;
-finalidade.- é a necessidade concreta da Igreja a que o Insti tuto pretende responder, como o ensino, o atendimento aos doentes, etc. Dado o caráter específico dos elementos de que es tamos tra tando, creio que não se deveriam incluir aqui as finali dades genéri cas, pró prias de toda vida consagrada, como o louvor de Deus, a sal vação das almas, etc., mesmo que delas se fale, como é natural, nos escritos dos fundadores;
-espírito (talvez seria melhor dizer espiritualidade).- é o modo concreto de viver a vida de relacionamento explícito com Deus. Creio que este, mais do que os outros, é o elemento direta mente especifi cante de um instituto. É precisamente a atitude que se toma diante de Deus a que vai criando uma tradição e dando uma cor pró pria à vida co munitária e às atividades do instituto;
-índole.- parece ser o tipo de organização e atuação: insti tuto centralizado, capitular, etc.

Como dizíamos, esses elementos, aprovados pela competente autori dade da Igreja e devolvidos ao Instituto como missão, pas sam a inte grar a vida cotidiana do mesmo. Ora, a partir dessa co tidianidade, de senvolve-se uma tradição, que não é, pura e sim plesmente, uma repe tição do que foi recebido de épocas passadas, mas uma tradução dos elementos originais para as diversas cir cunstâncias históricas em que o instituto se desenvolve. Também neste campo pode-se dizer que o cos tume é o melhor intérprete da lei (cân. 27). Por isso, quando se trata de determinar quais são os elementos fun damentais de um instituto, o Código não se con tenta com "a mente e os objetivos do fundadores", mas acrescenta, no mesmo cân. 578, as sãs tradições (cf. também cân. 576). Essa expressão pode ser enten dida -analogamente ao que se costuma fa lar a respeito da evolução homogênea do dogma- como um desenvol vimento harmônico que, sem negar o passado, vai compreendendo, cada vez mais profundamente, a inspi ração inicial, tirando dela as conseqüências para os novos contextos históricos, interpre tando-a à luz dos novos desafios, enriquecendo-a com a experiên cia prática.
O conjunto de ambos elementos -a inspiração fundacional e as sãs tradições- constituem o patrimônio espiritual de cada insti tuto. Essa expressão, que procede do Decreto Perfectae Caritatis (n. 2b), indica o valor que a Igreja lhe atribui. Por isso, con clui o cân. 578, seja fielmente conservado por todos.


III. Princípio de autonomia dos Institutos de Vida Con sagrada

"Redunda em benefício da Igreja que os institutos tenham ín dole e função próprias"(4). A partir desta declaração conciliar, o Código afirma que é reconhecida aos institutos justa autonomia de vida, prin cipalmente de regime, pela qual possam ter disciplina própria na Igreja e conservar o próprio patrimônio, mencionado no cân. 578 (cân. 586 § 1). A autonomia é, pois, a capacidade para desenvolver uma vida própria, sem a intervenção constante das au toridades exter nas. Não é, porém, o mesmo que independência. Por isso, é compatí vel com a exis tência de um direito de inspecção e de recurso, sobre tudo em casos de conflito. A autonomia, tal como se deduz do Código, significa que os assuntos próprios da vida e administração ordiná rias do Instituto se resolvem dentro de suas próprias instâncias. O que, porém, diz res peito à sua irradiação externa, através do apos tolado, deve ser harmo nizado com a pasto ral de conjunto das Igrejas particulares em que se encontra inse rido.
A autonomia implica também a capacidade de elaboração de normas próprias. A este respeito, atenda-se à terminologia do Có digo, em re lação à vida consagrada: Direito comum são as dispo sições da Igreja universal, relativas a todos os Institutos de vida consagrada ou, pelo menos, a um gênero deles, como os reli giosos. Encontra-se, fundamental mas não exclusivamente, contido no Código de Direito Ca nônico; Direito próprio (anteriormente chamado "direito particu lar"), pelo contrário, são as normas ema nadas do próprio Instituto, seja qual for a sua cate goria. Dentro do Direito próprio, o Código distingue dois tipos de normas:
-as Constituições ou "Código fundamental"(5). A terminologia usada, a este respeito, pelos diversos Institutos, não é comple tamente uniforme. As antigas Ordens religiosas possuem uma Regra, proveniente do fundador ou inspirador, a qual permanece imutável através dos sécu los. São tradicionais as quatro Regras de São Ba sílio, São Bento, Santo Agostinho e São Francisco; mas também exis tem as dos Carmelitas, dos Mínimos, etc. Ao lado dessas Re gras, há também, nessas Ordens, Constituições ou Estatutos, que determinam a norma aplicável na vida cotidiana. Na Companhia de Jesus (jesuítas), em lugar da Regra, existe algo análogo, na cha mada Fórmula do Insti tuto, breve descrição da fi nalidade e estru turas da Ordem, contida nas bulas papais de aprovação; mas também, ao lado dela, existem Cons tituições, escritas pelo próprio Sto. Inácio. Pelo contrário, nas outras Ordens nascidas a partir do século XVI, e em todos os outros institutos de vida consagrada, não existe normalmente algo seme lhante à Regra e há, simples mente, Consti tuições, que codificam não só os princípios inspira dores, mas também as normas básicas sobre a espiritualidade, a estrutura e o governo do Instituto. Em tempos re centes, em lugar de Constituições, foram empre gados outros nomes, como Regra de Vida, etc. Seja, porém, qual for o nome, o Código de Direito Ca nônico exige que todos os Institutos te nham um código fun damental aprovado pela competente autoridade da Igreja, no qual, além do que no cân. 578 se estabelece que se deve conservar [o "patrimônio espiritual"] devem constar as normas funda mentais so bre o regime do instituto e a disciplina dos membros, sua incor poração e formação, bem como sobre o objeto próprio dos vínculos sagrados (cân. 587 § 1). É a este Código fundamental que o nosso Có digo de Direito Canônico se refere, quando fala de Consti tuições. Ne las, de acordo com o nosso corpo legal, devem ser de vidamente harmoni zados os elementos espirituais e jurídicos; as normas, porém, não se mul tipliquem sem necessidade (cân. 587 § 3);
-outros Códigos.- Também aqui a terminologia é variada: fala-se de Diretórios, Costumeiros, Regras (no plural), Regula mentos, etc.
Além desses dois tipos de normas, dentro do Direito próprio, po dem existir outras, como decisões dos capítulos, decretos do Supe rior Geral, etc. Para estas vale também a advertência de que não se multi pliquem sem necessidade.
A finalidade primordial da autonomia dos Institutos de Vida Con sagrada é, conforme o Código afirma, proteger mais fielmente a vocação própria e a identidade de cada instituto (cân. 587 § 1). Não se trata, pois, de condescendência com certas tendências iso lacionistas, mas de favorecer a contribuição específica de todos para o bem da Igreja.
A autonomia dos Institutos de Vida Consagrada não é algo que in teresse somente a eles. A Igreja inteira participa dessa varie dade en riquecedora. Por isso, cabe aos Ordinários locais conser var e pro teger essa autonomia (cân. 586 § 2)(6). A profundidade do princípio de auto nomia chega até o ponto de ser lembrado mesmo quando se trata da de pendência dos Institutos em relação à Santa Sé, pois fica expressa mente salvaguardada a prescrição do cân. 586 (cân. 593).
O princípio de autonomia é, pelo menos em parte, uma apli cação do princípio de subsidiariedade, que foi um dos norteadores da re forma do Código. Em virtude dele, os assuntos que não forem necessá rios para a a unidade de disciplina da Igreja universal devem ser deixados às le gislações particulares ou ao poder execu tivo(7). Dentro dos cânones ge rais relativos à vida consagrada, que estamos comen tando, há uma dis posição bem concreta a esse respeito: Cabe à compe tente autoridade do instituto, de acordo com as Constituições, divi dir o instituto em par tes, quaisquer que sejam os seus nomes, erigir novas partes, unir as erigidas ou dar-lhes novos limites (cân. 581). Nem sequer a primeira divisão está mais reservada à Santa Sé, como o estava no direito ante rior ao Código de 1983. Ainda mais, a su pressão de partes do instituto pertence à autoridade competente do mesmo instituto (cân. 585). Essas partes costumam ser chamadas, nos institutos religiosos, províncias, embora também possam receber ou tros nomes, como re giões, custódias, etc.


IV. Princípio de dependência

A autonomia dos institutos de vida consagrada não é abso luta. Ainda mais, encontra-se numa espécie de relação dialética com a depen dência dos mesmos em relação à autoridade eclesiás tica, que deve sal vaguardar a unidade de disciplina da Igreja universal. Por isso, os institutos de vida consagrada,, já que dedicados de modo especial ao serviço de Deus e de toda a Igreja, estão sujeitos por razão especial à sua autoridade suprema (cân. 590 § 1). Em relação aos institutos, a diversidade de autoridades de que dependem confi gura uma classificação em:
-institutos de direito diocesano, erigidos canonicamente pela au toridade de um bispo diocesano, após obter o nihil obstat da Santa Sé, sem que tenham obtido desta o decreto de aprovação; salvo o cân. 596, permanecem sob o cuidado especial do Bispo dio cesano (Cân.. 594);
-institutos de direito pontifício, erigidos ou, pelo menos, apro vados pela Santa Sé, de acordo com o procedimento que estuda remos mais adiante(8). Salva a prescrição do cân. 586 [relativo ao princípio de autonomia], os institutos de direito pontifício, quanto ao regime in terno e à disciplina, estão imediata e exclu sivamente submetidos ao poder da Sé Apostólica (cân. 593). Essa dependência, porém, tem limites bem precisos, determi nados pelo direito. Pode-se dizer que ela é maior para os insti tutos de di reito diocesano do que para os de direito pontifício, pois quanto mais próxima estiver a autoridade supervisora, tanto mais freqüente será a sua intervenção. De fato, ao Bispo da sede principal de um instituto de direito diocesano compete não só aprovar as consti tuições (que não devem ser ela boradas pelo próprio Bispo), mas tam bém confirmar as mudanças nelas legitimamente introduzidas. A razão está em que as constituições são o instrumento jurídico que serve de elo de união entre um instituto de vida consagrada e a estrutura hierárquica da Igreja, que, no caso dos institutos de direito dioce sano é precisa mente o Bispo diocesano. Como, porém, para a ereção do instituto de direito diocesano foi ne cessária a consulta à Santa Sé, o Bispo em questão deverá respeitar os pon tos das constituições em que ela, como se diz tradicionalmente, co locou a mão. Por isso, es ses pontos só podem ser modificados com o consentimento da própria Santa Sé.
Além do poder relativo à aprovação e modificação das consti tuições, o Bispo da sede principal do instituto de direito diocesano trata de todas as questões de maior importância, referentes a todo o instituto e que superam o po der da autoridade interna(9). No Código de 1917, essa inter venção episcopal deveria ser realizada, de comum acordo, por to dos os Bis pos das cir cunscrições eclesiásticas onde a congregação de direito diocesano ti vesse casas. Agora basta que o Bispo da sede principal consulte os ou tros Bispos, sem que isso implique a obrigação de se guir o parecer da maioria. Finalmente, o Bispo diocesano(10), em ca sos particulares [não exatamente em "casos singulares"], pode conce der dispensa das consti tuições (cân. 595 § 2).
Um poder análogo ao que acabamos de descrever corresponde, em re lação aos institutos de direito pontifício, à Santa Sé, que o exercita normalmente através da Congregação para os Institutos de Vida Consa grada e as Sociedades de Vida Apostólica. Só que, como di zíamos, fora do caso de aprovação ou reforma das consti tuições, a sua intervenção é, normalmente, bastante moderada.
Tanto para os institutos de direito diocesano quanto para os de direito pontifício, há uma obrigação de informação, sobre sua vida e atividades à Santa Sé. Por isso, os superiores gerais estão obriga dos a enviar relatórios periódicos à Congregação para os IVC e as SVA, no modo e tempo por ela determinados(11). A praxe atual é que sejam envia dos relatórios qüinqüenais, de acordo com um questionário remetido previamente pela mesma Congregação para os IVC e as SVA. Essa infor mação tem a finalidade de melhor ali mentar a comunhão dos institutos com a Sé Apostólica (cân. 592 § 1). Com a mesma finali dade, os moderadores de qualquer instituto promovam o conhecimento dos documentos da Santa Sé que dizem res peito aos membros que lhes são confiados, e cuidem que sejam ob servados (cân. 592 § 2).


V. Agregação Fusão, União, Federação e Confede ração de institutos

Dentro do capítulo dedicado à autonomia e dependência dos ins titutos de vida consagrada, convém considerar essas figuras ju rídicas de relacionamento entre os diversos insti tutos.
Agregação é um ato, mediante o qual, um instituto, depositá rio de uma tradição espiritual própria, reconhece um outro como inte grante dela e participante dos seus privilégios espirituais. A agre gação não implica, portanto, nenhuma dependência jurídica, pois nela fica sempre a salvo a autonomia canônica do instituto agregado (cân. 580). É antes uma comunhão de espírito e uma comu nicação de graças espirituais. Atualmente, a Santa Sé não admite mais a fundação de institutos, como as chamadas segundas ordens dos mendicantes, com verdadeira dependên cia jurídica da primeira ordem. As terceiras or dens, no sentido origi nário do termo, podem ter essa dependência, mas não são institutos de vida consagrada e sim associações de fiéis. Pelo contrário, o são as chamadas ter ceiras ordens regulares, às quais se aplica o citado cân. 580. De acordo com ele, a agregação é reservada à competente autori dade do instituto agregante. Normal mente, essa autoridade competente é o Superior Geral, mas a determi nação concreta dos trâmites a se rem se guidos corresponde ao direito próprio de cada instituto.
Fusão é a absorção de um instituto ou mosteiro por um outro, de tal forma que o primeiro despareça por completo, embora alguns elemen tos de sua tradição possam ser incorporados ao instituto ab sorvente. É uma figura jurídica recomendada pelo Concílio Vati cano II(15), em re lação aos institutos ou mosteiros decadentes e que não oferecem espe rança fundada de reflorescimento.
União é o ato de fazer com que dois institutos se integrem en tre si, de tal modo que passem a formar um novo instituto, sob um novo tí tulo. O Motu Próprio Ecclesiae Sanctae (II, 39-41) deu algu mas normas sobre o modo prático de realizar as fusões e uniões. Elas supõem uma preparação adequada, espiritual, psicoló gica e jurídica. Deverá ser levado em conta o bem da Igreja, atendendo tanto às ca racterísticas próprias de cada instituto como ao bem de seus mem bros. De fato, ne nhum deles pode ser obri gado a integrar-se no novo instituto, pois isso supõe uma mudança substancial no contexto jurí dico de sua pro fissão. Por isso, o citado Motu Próprio mandava que "seja ouvido pre viamente cada um dos religiosos e tudo seja feito com caridade"(16).
Confederação é o organismo jurídico de colaboração entre vá rios institutos da mesma tradição -como, p.ex., as diversas Con gregações de Irmãs de São José, das quais existem mais de 40 pro venientes de uma única fundação-, a fim de se ajudarem mutuamente na conservação e de senvolvimento do patrimônio espiritual comum. Análoga a esta fi gura é a Confederação Monástica ou associação de várias federações de mostei ros autônomos, como as dos benediti nos, sob um abade pri maz, que não exerce verdadeira jurisdição sobre os mosteiros filia dos.
Federação é a associação de vários mosteiros autônomos, sob um superior maior comum, a fim de facilitar sua atuação em certos cam pos como, por exemplo, no da formação, de acordo com estatutos Essa dependência, porém, tem limites bem precisos, determi nados pelo direito. Pode-se dizer que ela é maior para os insti tutos de di reito diocesano do que para os de direito pontifício, pois quanto mais próxima estiver a autoridade supervisora, tanto mais freqüente será a sua intervenção. De fato, ao Bispo da sede principal de um instituto de direito diocesano compete não só aprovar as consti tuições (que não devem ser ela boradas pelo próprio Bispo), mas tam bém confirmar as mudanças nelas legitimamente introduzidas. A razão está em que as constituições são o instrumento jurídico que serve de elo de união entre um instituto de vida consagrada e a estrutura hierárquica da Igreja, que, no caso dos institutos de direito dioce sano é precisa mente o Bispo diocesano. Como, porém, para a ereção do instituto de direito diocesano foi ne cessária a consulta à Santa Sé, o Bispo em questão deverá respeitar os pon tos das constituições em que ela, como se diz tradicionalmente, co locou a mão. Por isso, es ses pontos só podem ser modificados com o consentimento da própria Santa Sé.



VI. A Isenção

Como vimos, ao examinar a história da vida consagrada, a isenção é uma instituição jurídica surgida na Idade Média, para pro teger os mosteiros contra intromissões indevidas de Bispos e senho res feudais. Posteriormente, no caso dos mendicantes e dos clérigos regulares, teve a finalidade de facilitar-lhes o aposto lado especí fico do instituto, como a pregação ou a administração dos sacramen tos. Sem dúvida, a isenção provocou também conflitos e dificuldades no relacionamento en tre religiosos e Bispos. Por isto, o Concílio Vaticano II deu-lhe uma nova interpretação: "A isenção, pela qual os religiosos se relacionam diretamente com o Sumo Pontífice ou outra autoridade eclesiástica e são subtraídos à jurisdição dos Bispos, se refere sobretudo à disci plina interna dos institutos. Sua finalidade está em ordenar e harmo nizar tudo, e em cuidar do progresso e da perfeição da vida religiosa. E ainda, para que deles possa dispor o Sumo Pontífice em benefício das Igrejas da própria jurisdição. Esta isenção, porém, não im pede que os religiosos, em cada diocese, este jam, à norma do di reito, sob a juris dição dos Bispos, conforme o exigem o desempe nho do ofício pastoral e a devida organização da cura de al mas"(18).
A partir desse texto conciliar, o novo Código de Direito Canô nico, diferentemente do de 1917, contenta-se com uma decla ração gené rica sobre a isenção, sem regulamentar-lhe o conteúdo: Para pro ver me lhor ao bem do instituto e às necessidades do apos tolado, o Sumo Pon tífice, em virtude do seu primado na Igreja universal, tendo em vista o bem comum, pode eximir os institutos de vida consagrada do regime dos Ordinários locais e submetê-los somente a ele próprio ou a outra autoridade eclesiástica (cân. 591). Essa outra autoridade eclesiástica é, por exemplo, a dos Patriarcas Orientais. Dada a atual falta de re gulamentação, pelo direito comum, da isenção, é ne cessário recorrer sempre ao di reito próprio de cada instituto. Não se esqueça, aliás, que, con forme o cân. 4, os privilégios concedidos pela Sé Apostólica, an teriores à promulgação do atual Código, per manecem em vigor, a não ser que sejam expressamente revogados.
Por outro lado, dadas as declarações conciliares sobre o pa pel dos Bispos diocesanos, na direção do apostolado da Igreja particular e dada a autonomia de vida e de regime reconhecida a todos os insti tutos de vida consagrada, conforme já explicamos, a isenção perdeu uma boa parte de seu conteúdo e valor.


III. Tipologia dos Institutos Religiosos

O Código de 1983, após longas discussões havidas no seio da co missão de reforma, renunciou a fazer uma tipologia completa dos insti tutos religiosos. Emprega, contudo, algumas denominações, sem defini-las, e omite outras tradicionais. Já vimos anterior mente três classificações comuns a todos os institutos de vida consagrada -de direito diocesano e de direito pontifí cio; isentos e não-isentos; clericais e laicais-. Vejamos ainda outras, especí ficas dos institu tos religiosos:
-- ordens - congregações.- No quadro histórico da vida consa grada, já aparece esta distinção. Ordens são os institutos em que, pelo menos alguns membros, emitem votos solenes; congre gações, aque les em que somente se emitem votos simples. Por causa da pouca conside ração que recebe, no novo direito, a distinção entre esses dois tipos de votos, o Código atual não faz nenhuma alusão a essa classi ficação dos institutos. Isso não impede que as deno minações ordem, con gregação continuem a ser usadas. Advirta-se, porém, que, desde os fins do século XVII, a Santa Sé não aprova novas ordens;
-- institutos monásticos são institutos onde prevalece a vida contemplativa e a ligação permanente do religioso a uma comuni dade local determinada, chamada mosteiro. A maior parte dos mos teiros são autônomos, sem que essa qualidade seja necessária para a qualifi cação de um instituto como monástico. O Código faz tam bém repetidas alusões às monjas e aos seus mosteiros, mas não de fine o que seja monja. Como, porém, de acordo com o cân. 6 § 2, os cânones, na me dida em que reproduzem o direito anterior, devem ser apreciados le vando-se também em conta a tradição canônica, podemos reter o con ceito que aparecia no cân. 498, 70 do Código de 1917: "as religiosas de votos solenes ou, se não constar o contrário pela natureza das coi sas ou pelo contexto do discurso, as religiosas cujos votos, em razão do seu instituto são solenes, mas por disposição da Sé Apostó lica, em alguns lugares são sim ples". O Código atual distingue dois tipos de mosteiros de mon jas: os que se destinam inteiramente à con templação e os outros. Mais adiante estudaremos as leis que os re gem, especial mente no que toca à clausura;
-- institutos canonicais são institutos com forte tradição de ce lebração solene dos ofícios divinos e com um apostolado de mar cada inserção diocesana, especialmente nas paróquias;
-- institutos conventuais são aqueles em que se conservam as ob servâncias monásticas do culto divino, embora normalmente com menos solenidade do que nos mosteiros, junto com uma vida apostó lica e com uma especial austeridade. Dentre os insti tutos conven tuais, destacam os mendicantes, assim chamados por que, diferente mente das ordens an teriores, não devem viver de rendas, mas da esmola recebida, in cluindo as espórtulas por ocasião do exercí cio do ministério sa grado;
-- institutos de caráter integralmente apostólico, onde as obser vâncias conventuais ficam plenamente subordinadas ao exercí cio do apostolado, de acordo com a inspiração fundacional. Como exemplos deste tipo de institutos, citam-se os clérigos regulares e as congre gações religiosas, tanto as clericais quanto as lai cais, de homens ou de mulheres.
A dificuldade de caracterizar cada um dos tipos de instituto ci tados se deve, em parte, à interpenetração de elementos de um modo de vida no outro. As formas são fluidas. O que faz, em defi nitiva, que se aplique uma ou outra denominação é a tradição do instituto e o reco nhecimento da autoridade competente da Igreja.




O GOVERNO DOS INSTITUTOS
RELI GIOSOS
OS SUPERIORES E OS SEUS CON SELHOS


I. Sentido da autoridade na vida religiosa

A Constituição dogmática Lumen Gentium, do Concílio Vaticano II, no seu n0 8, expõe a dupla natureza da Igreja, simultanea mente visível e espiritual, e compara o mistério da Igreja ao mistério de Cristo. Por isso, não podemos considerar a autoridade e os aspectos organiza cionais (as estruturas, como se costuma di zer) como uma sim ples con cessão à debilidade humana. Eles são uma conseqüência do sentido en carnatório do ser eclesial. A encar nação de Cristo signi ficou um assu mir plenamente a natureza hu mana, com todas as conse qüências que daí se derivam. Ora, como essa natureza é também so cial, a Igreja possui uma dimensão so cial intrínseca ao seu próprio ser. Do mesmo modo que, em Cristo, as duas naturezas - divina e hu mana - se encontram indissolu velmente unidas, sem mistura e sem con fusão, sem divisão e sem sepa ração, também o aspecto visível, so cial, externo da Igreja se encontra indissoluvelmente unido a sua vida íntima, a sua atuação como conti nuadora do Cristo, sinal e ins trumento da graça divina. Nesse sentido, a autoridade da Igreja tam bém participa do seu ser sacramen tal.
A vida religiosa, enquanto estado reconhecido e organizado em institutos canonicamente erigidos, encontra-se inserida dentro desse contexto da dupla natureza da Igreja, e dela participa. Por isso, o novo Código, quando trata do governo dos institutos reli giosos, co meça por uma afirmação que, de acordo com a Consti tuição Sacrae Dis ciplinae Leges, que o promulgou, pertence ao cerne da Eclesiologia do Vaticano II: Os Superiores exerçam em espírito de serviço o seu poder, recebido de Deus pelo ministério da Igreja (cân. 618). A au toridade é, pois, um serviço aos irmãos. Esse serviço, porém, con siste precisamente em or denar o que deve ser feito, para o bem de todos; ou, como expressou Paulo VI, na Exortação Apostólica Evange lica Testificatio (n. 25), em "despertar nos coirmãos as certezas da fé". O Superior religioso não é um Senhor. Por isso, como já fala mos, afortunadamente, o novo Código não qualifica mais o seu poder de dominativo. Por ou tro lado, ele não re cebe a sua autoridade da comu nidade; conse qüentemente, não pode ficar simples mente à mercê dela. O seu ser viço específico consiste precisamente em exercer a autori dade, mesmo que, às vezes, isso se torne custoso. Tão reprová vel é o superior autoritário, que esquece o espírito de serviço com que deve atuar, quanto o superior que abdica de sua auto ridade e se torna in capaz de tomar uma decisão. O Código fala insis tentemente(1) de ver dadeiro poder. Por isso, creio que carece de sen tido o uso da pala vra coordenador(a) -bastante difundida nos institutos femininos brasileiros-, para designar os supe riores re ligiosos. A função deles não é simplesmente a de coorde nar, mas a de de cidir e prescrever o que deve ser feito (cân. 618).


II. Modo de exercer a autoridade na vida religiosa

Da concepção da autoridade como serviço, derivam-se algumas con seqüências importantes para o seu exercício. Neste ponto, o Có digo se gue fielmente o n0 14 do Decreto Perfectae Caritatis, dando, no cân. 618, as seguintes recomendações:
sejam dóceis à vontade de Deus. O exercício da autoridade é sempre um exercício de discernimento, de procura da vontade de Deus. Esse discernimento só será possível se o superior tiver uma intensa vida de oração e estiver atento aos sinais dos tempos;
governem seus súditos como a filhos de Deus. A autoridade é função de serviço, não uma base para o estabelecimento de pri vilégios. A dignidade de filhos de Deus é igual para todos, supe riores e súdi tos;
tenham respeito pela pessoa humana. Poderia pensar-se que este conselho já está incluído no anterior. Na realidade, fazia-se necessá rio explicitá-lo, porque, no nosso tempo, houve um cresci mento da sen sibilidade em relação aos direitos da pessoa humana; ainda mais, uma intervenção decidida da Igreja nesse campo. É ver dade que, pela pro fissão, o religioso renuncia volun tariamente a al guns dos seus direitos e isso deve ficar bem claro para todos os can didatos que se apresentam à vida religiosa. Mas isso não equivale a uma renúncia à própria per sonalidade. Certas atitudes de superio res e mestres, para provar os seus co-irmãos são completamente descabi das;
promovam a obediência voluntária dos súditos. Autoridade e obe diência são duas faces da mesma medalha. Por isso, se no cân. 601 se falava de submissão da vontade, aqui se exorta o superior a faci litar essa obrigação, que, em princípio, não é nada fácil. Para con seguir essa finalidade, o superior deve procurar fazer compreensí veis suas ordens e, sobretudo, mostrar que as dá em ra zão do bem não só do instituto, mas também de cada um dos seus membros;
ouçam de bom grado os seus súditos. É um outro modo de con seguir a obediência voluntária. Ainda mais, como o superior deve procurar discernir a vontade de Deus, em cada caso concreto, um dos dados com que sempre terá que contar é precisamente a si tuação pes soal e a in clinação de seus súditos. Não pode tratar-se de um sim ples ouvir mate rialmente, mas de escutar com verdadeiro interesse; por isso, deve ser um ouvir de bom grado;
promovam a colaboração dos súditos para o bem do Instituto e da Igreja. Obediência não é o mesmo que indiferença passiva ou desconhe cimento dos problemas. O religioso deve sentir como pró pria a vida toda do instituto em que se encontra inserido, e a da Igreja, a cujo serviço está dedicado de um modo especial(2);
Todas essas atitudes, porém, não significam que o superior deva abdicar de sua função específica, de serviço, de que falamos acima. Tanto para ele quanto para os súditos, deve ficar claro o princípio de que deve ser mantida a autoridade do superior, de decidir e prescrever o que deve ser feito(3). Essa autoridade deverá ficar dentro dos limites das constituições e terá que ser exer cida com o espírito que acabamos de descrever, mas é verdadeira autoridade.


III. A finalidade e os meios de exercer a autori dade religiosa

Mas para que serve a autoridade? O nosso Código não se con tenta com afirmar a existência e legitimidade da autoridade reli giosa. Quer também que seja exercida para finalidades concretas. No caso da vida religiosa, não podia faltar o próprio sentido da vida consa grada ("consagração total a Deus sumamente amado"), nem o modo de levar adiante o compromisso da profissão religiosa (mediante uma "vida fra terna em comum"). Dessa forma, pode-se di zer que o exercí cio da auto ridade serve mais claramente à reali zação da vocação re ligiosa: cons truir uma comunidade religiosa, na qual se busque e se ame a Deus an tes de tudo (cân. 619).
Para a consecução dessa finalidade global, o instituto reli gioso e quem nele exerce o serviço da autoridade devem usar os meios adequa dos. O Código enumera alguns:
nutram os membros com o alimento freqüente da Palavra de Deus. É esta uma necessidade derivada do próprio ser da vida con sagrada, en quanto seguimento de Cristo(4), de acordo com o que está proposto no Evangelho(5);
levem-nos à celebração da sagrada liturgia; de modo mais especí fico, à celebração da Eucaristia, que deve ser verdadeira mente o cen tro da vida da comunidade religiosa(6);
sirvam-lhes de exemplo no cultivo das virtudes; não só das natu rais, como a prudência ou a afabilidade, mas também das so brenaturais, como a fé, a esperança e a caridade. Só edifica ver dadeiramente quem, mediante o exemplo, demonstra a veracidade de suas palavras;
sirvam-lhes de exemplo na observância das leis e tradições do próprio instituto, conservando assim a fisionomia própria dele;
atendam convenientemente a suas necessidades pessoais, tanto de ordem espiritual - como a disponibilidade de confessores e dire tores espirituais - quanto de ordem material, dentro, é claro, da austeri dade própria daqueles que professam a pobreza evangélica;
tratem com solicitude e visitem os doentes. Também dentro da vida religiosa, é necessário um cuidado especial para aqueles que mais o precisam. Em relação aos doentes, não se esqueça que, nos institutos clericais, é função do superior ministrar a Euca ristia como viático(7) e a unção dos enfermos(8);
corrijam os irrequietos. Como dizíamos, o serviço da auto ridade consiste precisamente em exercer a sua função, dirigindo, na parte que a cada superior cabe, o instituto para a consecução dos seus fins. Daí a necessidade de corrigir aqueles que erram. Não se esqueça que essa é precisamente uma obra de misericórdia. A omissão perante o erro pode ser interpretada, às vezes, como concordância com ele;
consolem os desanimados. O superior deve ser um verdadeiro ani mador da comunidade, marchando à frente dela, mostrando a sua con fiança na Divina Providência, quando surgem dificuldades, acei tando com generosidade e ânimo forte as contrariedades, es tendendo a mão aos que se sentem fatigados no meio do caminho;
sejam pacientes com todos. A paciência é o modo de acomodar o próprio passo ao ritmo de que cada um é capaz, incentivando-o a cami nhar; não é, pelo contrário, ficar parado no meio do caminho. Quem é verdadeiramente paciente não perde de vista a meta aonde pre tende che gar, mas sabe esperar o momento oportuno para acele rar a caminhada.


IV. Terminologia do Código a respeito dos Superio res

O Código de Direito Canônico usa dois termos para se referir aos que exercem a autoridade nos institutos religiosos: moderado res e su periores. Contra o que poderia parecer, numa visão super ficial, o termo latino moderator não tem uma conotação de menor autoridade. O próprio Código o usa para referir-se, por exemplo, aos superiores dos seminários (câns. 239 § 3 e 261), aos presi dentes ou diretores de as sociações de fiéis (câns. 309, 317, 318, 319,320, 324, 329), às auto ridades civis (cân. 364, 70), etc. De fato, etimologicamente "moderador" é aquele que regula as ener gias, refreia e dirige os ímpe tos. Tem, conseqüentemente, uma verdadeira função de direção.
Na parte relativa à vida religiosa, quando fala do Superior Ge ral de um instituto, o Código usa sempre a expressão moderador su premo. Também, quando fala de um mosteiro autônomo, usa prefe rencial mas não exclusivamente o termo moderador. Em relação, po rém, aos ou tros que exercem a autoridade num instituto religioso, usa o termo superior. Mas em relação aos institutos seculares e às sociedades de vida apos tólica, emprega também a expressão mo deradores maiores.
Dentro da 3a parte do livro II do Código, o termo abade ("abbas") é aplicado somente ao presidente de uma congregação mo nástica ou ao primaz de uma confederação. Para os superiores de mos teiros autônomos, usa-se, como dizíamos a palavra moderador. Con tudo, no cân. 370 apa rece a figura do abade territorial, e no livro VII se fala dos abades locais(9), para indicar superiores que estão à frente de um único mos teiro de monges.
Superiores maiores são os que governam todo o instituto, uma sua província, uma parte a ela equiparada, ou uma casa autônoma, bem como seus vigários. A estes acrescentam-se o Abade Primaz e o Supe rior de congregação monástica que, todavia, não têm todo o poder que o direito confere aos Superiores maiores (cân. 620). Como vimos, a superiora de uma casa autônoma também não tem todo o poder de um su perior maior. Em relação às limitações que afetam o Abade Primaz e o Superior de Con gregação monástica, deve-se atender ao que determine o direito pró prio.
Superiores locais - no Código não se usa a expressão "superiores menores" - são os que se encontram à frente de uma casa não-autônoma, embora canonicamente erigida.
Cada superior tem autoridade no âmbito de sua jurisdição. Por isso, o Moderador supremo tem poder sobre todas as provín cias, casas e membros do instituto, a ser exercido de acordo com o direito pró prio; os outros superiores o têm dentro dos limites do próprio ofí cio (cân. 622).


V. Constituição dos Superiores Gerais

O cargo de superior num instituto religioso é um verdadeiro ofí cio eclesiástico, no sentido do cân. 145. Por isso, é necessá rio que quem é chamado a exercê-lo receba uma provisão canônica, con forme dispõe o cân. 146. O direito comum determina o modo dessa pro visão somente em relação ao moderador supremo de um instituto, ao qual pa recem também equiparar-se os superiores de mosteiros autôno mos. Em todos estes ca sos, a provisão deve ser feita me diante eleição canô nica, de acordo com as constituições(10). De fato, não existindo uma autoridade supe rior, interna ao insti tuto, a não ser o capítulo ge ral, não se vê de que outro modo po deriam ser designados esses supe riores, sem ferir a autonomia própria dos institutos de vida consa grada. A eleição canô nica é um procedimento preciso, regu lamentado no Código de Direito Ca nônico, nos cânones 164-179(11). Mas, por dis posição expressa do ci tado cân 625, deve haver ainda no vas concreti zações nas consti tuições de cada instituto. Ainda mais, estas po derão afastar-se, em alguns pontos, do que determina o di reito co mum, como se de clara expressa mente nos câns. 119, 164, 165, 174, 176 e 179 § 5. É conveniente que as constituições sejam bas tante explí citas nesta matéria. A experiên cia ensina que os confli tos surgem mais freqüentemente quando faltam normas ou quando elas são muito am bíguas. É claro, porém, que questões de mero procedi mento, como o formato das cédulas ou da urna, a ordem de votação dos membros do capítulo e outras semelhantes não precisam estar determi nadas nas constituições, embora seja conveniente que constem em ou tros do cumentos, como o diretório geral do instituto ou o regimento do pró prio capítulo.
A eleição do superior geral, por disposição expressa do Có digo, deve ser realizada pelo Capítulo Geral(12). Em institutos geografica mente muito dispersos, essa norma parece óbvia, pois faltará normal mente à maioria dos membros do instituto o conheci mento adequado das pessoas capazes de desempenhar esse encargo. No capítulo geral, pelo contrário, sempre há o contato direto dos delegados das diversas re giões, e a possibilidade de obter as in formações oportunas. Ainda mais, os próprios membros do capítulo, com as suas intervenções, vão manifestando seu modo de ser, mos trando a sua personalidade, suas opiniões e mentalidades. Por isso, normalmente, é eleito um membro do próprio capítulo.
O que levamos dito não tira a possibilidade, sobretudo em insti tutos menos numerosos, de se fazer uma prévia, entre os pro fessos de votos perpétuos, com a finalidade de detectar as prefe rências, con tanto que fiquem a salvo a liberdade do capítulo e o ca ráter meramente indicativo dessa prévia. Mas não creio que, em ne nhuma hipótese, seja conveniente a realização de eleições "diretas", para preencher o cargo de superior geral. Esse proce dimento tiraria a possibilidade de se criar o clima de discerni mento através da oração, que sempre se deve procurar, nessas oportunidades, nos capí tulos. Além disso, o recurso à eleição "direta" poderia prolongar desnecessariamente a eleição, pois sempre terá que ser exigido um quórum significativo, que rara mente será atingido nos primeiros es crutínios. Ora, como estes deverão pro cessar-se mediante o envio dos votos à sede principal, haveria a ne cessidade de prazos relativa mente dilatados, a fim de não preterir ninguém. A eleição "direta" é também mais apta a criar um clima de partidarismo, dentro do insti tuto, com detri mento do espírito reli gioso(13). Em todo caso, para a introdução das eleições "diretas", na escolha do superior geral, é necessá rio um indulto da Santa Sé, pois a eleição pelo capítulo é, como dizõamos, norma obrigatória no direito comum.
A presidência do capítulo geral que elege o moderador su premo corresponde, nos institutos de direito pontifício, a quem, no mo mento, estiver exercendo, mesmo que só interinamente, o go verno ge ral do ins tituto. O Código atual já não faz, a este res peito, ne nhuma distinção entre institutos masculinos e femininos. No caso, porém, de institutos de direito diocesano - tanto mascu linos quanto femininos - e no de mosteiros autônomos de mon jas(14), essa presidên cia corresponde ao Bispo diocesano da sede principal(15). Mas essa presidência não con fere ao Bispo nem o di reito de voto, nem o de confirmar ou deixar de confirmar a pessoa eleita. Corresponde a ele unicamente o direito de proclamar o re sultado da eleição, de acordo com o cân. 176. Por isso, deverá abster-se de qualquer intervenção que possa ser interpretada como uma manobra para conseguir a eleição ou a exclusão de um indiví duo determinado. Pela própria natureza de sua função, é claro que o Bispo diocesano pode delegar a presidência a uma outra pessoa, inclu sive a um leigo, pois não se trata de um verdadeiro ato de jurisdição.



VI - Constituição dos outros superiores

O Código dá uma norma de caráter genérico, que deverá ser concre tizada ulteriormente: Os outros superiores sejam constituídos de acordo com as constituições, mas de tal modo que, se são eleitos, ne cessitem de confirmação do Superior maior competente; se são no meados pelo Su perior, haja consulta adequada (cân. 625 § 3). Na prá tica, existem di versos sistemas. Para a designação dos superiores provin ciais, os mais comuns são os seguintes: a) a eleição em capí tulo pro vincial, com con firmação prévia ou poste rior do superior ge ral; b) eleição por votação direta de todos os membros da província e confir mação pelo superior geral; c) se leção de três ou mais nomes, por vo tação direta e aprovação deles pelo superior geral, com eleição defi nitiva pelo capítulo provin cial; d) consulta prévia aos membros da província e nomeação li vre pelo superior geral; e) levan tamento prévio do "perfil" do superior provincial que se deseja, mas sem indicação de nomes, e nomeação livre da parte do geral. Cada instituto, baseado na sua experiência e tradições, deveria avaliar os diversos sistemas e estabelecer, nas constituições o que achar mais conveniente. Em todo caso, não se esqueça a necessidade de um certo equilíbrio entre as es truturas democráticas e as hierárquicas, representado pelos binômios eleição-confirmação e consulta-nomeação.
Algo semelhante se poderia dizer a respeito da designação dos su periores locais, com a ressalva, porém, de que, fora das casas autôno mas, nas quais os superiores locais se equiparam a superiores maiores, dificilmente se poderá pensar numa eleição pura e simples mente direta. Afinal, a comunidade local não perma nece a mesma du rante o mandato do superior e nem sempre disporá no seu seio de pes soas aptas para o cargo, pelo que deverá recor rer a membros de ou tras comunidades, sobre os quais não tem ne nhuma autoridade. Por isso, o sistema quase univer salmente em vi gor é o da nomeação pelo superior geral, ou pelo provin cial com consentimento do geral, pré via consulta, mais ou menos for mal, aos membros da comunidade.


VII - Outras normas para a constituição dos supe riores religiosos

Além do que está estabelecido nos cânones 164-179 e das ou tras determinações que acabamos de comentar, o Código dá, no cân. 626, al gumas recomendações aplicáveis aos superiores maiores que nomeiam os inferiores, e aos membros que participam de uma eleição. As mes mas re comendações se deveriam aplicar, com as devidas adaptações, aos casos de confirmação e de escolha prévia de candidatos, pois se trata de questões similares. Não se pode, porém, dizer que se trate aqui de de terminações cuja violação comporte a nulidade da nomeação ou eleição, pois em nenhum lugar aparece uma cláusula irritante. São antes apelos à consciência e à responsabilidade dos religiosos, num assunto de tanta importân cia para a vida do instituto.
Como dizíamos acima, a designação de um superior religioso deve ria acontecer num clima de discernimento espiritual, permeado pela oração. Daí a procura de motivações corretas, na busca da von tade de Deus e do bem da Igreja e do instituto. Todos devem abster-se de exer cer pressões, abuso de autoridade ou discrimi nação de pes soas, por mo tivos alheios à própria vida religiosa. O Código pede que [os superio res] nomeiem os que no Senhor reconhe cerem ser verda deiramente dignos e idôneos (cân. 626). Advirta-se que não se impõe a obrigação de ele ger o mais idôneo. De fato, pode haver circunstân cias em que, para evitar a eleição ou no meação de alguém manifesta mente inepto, seja ne cessário fixar-se em alguma pessoa que não reúna todas as qualidades, mas que tenha as suficientes para o de sempenho do cargo. O que não se ria moral mente aceitável é votar em alguém que o eleitor julga, em cons ciência, claramente incapaz.
O Código pede, especialmente, para evitar as manobras eleitorei ras. Por isso, proíbe angariar votos, direta ou indire tamente, para si mesmo ou para outros (cân. 626). Infelizmente, esta é uma das normas mais violadas na prática: ou positivamente, levando a cabo uma verda deira campanha eleitoral; ou negativa mente, fazendo propaganda contrá ria a determinada ou determinadas pessoas. Insista mos: um instituto religioso não é comparável a uma sociedade polí tica. O que se deve procurar, acima de tudo, na designação dos supe riores religiosos, através da oração, do dis cernimento e da re flexão, é a vontade de Deus. Por isso, é fre qüente que os capítulos eletivos passem um ou mais dias em re tiro, antes de proceder à eleição do superior geral ou provin cial. Não se pode, porém, dizer que vá contra estas prescrições a prática, tão comum em institutos religiosos, de permitir e até acon selhar as informações fornecidas pelos diversos capitulares, contanto que não se pretenda, com elas, de jeito nenhum, impor ou excluir um candidato.
Já não existe no Código nenhuma norma que declare nulo o voto dado a si mesmo, mas a própria natureza das coisas desacon selha uma auto-votação. De fato, não pareceu oportuno, à comissão redatora, declarar essa nulidade, que estava expressa no Código de 17; nem pa rece conve niente fazê-lo no direito próprio de um instituto, dada a grande difi culdade e os inconvenientes que se seguiriam da identifi cação do voto do eleito, caso a maioria ob tida fosse a mínima estri tamente requerida para a eleição.




IX - Requisitos para o cargo de superior religioso

O superior religioso deveria corresponder à figura descrita nos três primeiros parágrafos deste capítulo. É verdade que o Có digo, nos cânones correspondentes, traça apenas uma descrição, sem se pa rar a determinar ou não a obrigatoriedade das qualidades lá mencio nadas. As constituições, porém, deveriam concretizar um pouco mais, requerendo também que se trate de religiosos profun damente amantes das tradições do instituto e plenamente inseridos no seu espírito.
Por outro lado, o Código exige que o direito próprio - tra tando-se de superiores maiores, devem ser especificamente as consti tuições - determine um tempo conveniente, depois da pro fissão perpé tua ou defi nitiva, para a nomeação ou eleição de su periores religio sos(16). Con tra o que constava no Código de 1917, o atual não quis dar uma norma unificadora de todos os institu tos. É bastante comum as constituições exigirem um mínimo de dez anos de profissão perpé tua, para o cargo de superior geral; e de cinco, para o de superior provincial. Não há, porém, como dizía mos, nenhuma determinação do direito comum a esse respeito, pelo que os limites citados poderiam variar, de acordo com a índole e as tradições do instituto.
Quanto aos superiores locais, em muitas congregações femini nas no Brasil, se apresenta atualmente uma certa dificuldade para cum prir o citado cân. 623. Ao existir, cada vez mais, "pequenas comuni dades", com três ou quatro membros - se fossem apenas dois, não se poderia fa lar de casa religiosa -, não é sempre fácil en contrar irmãs professas de votos perpétuos, capazes de assumir nelas o ser viço da autoridade. Como o requisito da profissão per pétua, de acordo com o cân. 623, é para a validade da consti tuição do supe rior, a única saída possível seria adscrever essas pequenas comuni dades a uma outra casa maior, de cuja superiora dependeriam efetiva mente. Trata-se-ia do que chamamos casas fi liais, para cuja figura jurídica apontamos alguns inconvenien tes no capítulo anterior. Como, de acordo com o conceito que lá de mos, nas casas filiais há apenas um delegado do superior da comu nidade da qual dependem, é claro que esse delegado poderia ser professo de votos temporários. Por outro lado, no caso dos supe riores locais, o tempo conveniente após a pro fissão perpétua exi gido pelo Código poderia ser reduzido ao mínimo no caso dos supe riores locais.
O Código nem estabelece diretamente, nem exige que o direito pró prio dos institutos determine uma idade mínima para o cargo de supe rior. As constituições e os diretórios, porém, poderiam con ter algumas determinações a este respeito, como também fixar uma idade máxima - por analogia com o que se estabelece nos câns. 401 e 583 -, para o desempenho de funções de governo num instituto.

X - Duração e cessação do mandato dos superiores

Como norma geral, os superiores religiosos são temporários ou, como diz o cân. 624 § 1, constituídos por determinado e con veniente período de tempo, segundo a natureza e a necessidade do instituto. Deve haver, portanto, uma determinação clara e ex pressa do direito próprio, acerca desse período: dois, três, qua tro... anos. Ele deve, porém, ser conveniente, ou seja, tal que permita um verdadeiro go verno. Estabelecer períodos curtíssimos, como seriam seis meses, equi valeria a reduzir os superiores a fi guras pouco mais do que decorati vas. Quanto mais elevado é o ní vel de governo, tanto mais conveniente parece o prolongamento do mandato, a fim de permitir a execução de um programa de go verno. Não se esqueça, aliás, que os mandatos dos su periores, como já dissemos, devem ser determinados segundo a natureza e as necessidades do instituto. Exatamente por isso, o Código prevê uma possível exceção à temporalidade do mandato dos superiores: o Mo derador supremo de um instituto e o Superior de uma casa autô noma po dem ser vitalícios, se as constituições assim o determina rem(17). É o que acontece, por exemplo, com o superior geral dos jesuítas, dos cis tercienses ou dos cartuxos, e com os abades de um bom número de mos teiros autônomos beneditinos. Contudo, a praxe atual da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as So ciedades de Vida Apostó lica é a de não aprovar novas cons tituições que contenham uma cláusula de vitaliciedade do superior geral.
O direito próprio deve determinar também se é permitida, nos di versos níveis de governo, a reeleição ou recondução para manda tos su cessivos. É comum que as constituições de institutos reli giosos permi tam um segundo e, às vezes, um terceiro mandato, para gerais e provin ciais; para superiores locais é bastante freqüente a permissão de até um terceiro mandato, dado que, geralmente, são designados para dois ou três. anos.
Um problema prático, que se apresenta com freqüência nos institu tos religiosos, é o do surgimento de uma certa "casta" de su periores. Algumas pessoas permanecem em cargos de governo quase du rante a vida toda, dando a impressão de que apenas "trocam de ca deira" entre elas. A simples limitação do número de reeleições pos síveis não soluciona o problema, que pode ter graves conse qüências, como a estagnação do ins tituto e o culto à personali dade. Por isso, o Código de 1983 introdu ziu um novo dispositivo: O direito próprio providencie, mediante nor mas adequadas, que os Superiores constituí dos por tempo determinado não permaneçam du rante muito tempo sem in terrupção em ofícios de go verno. A rigor, trata-se aqui de superio res (cân. 624 § 2), em sentido estrito, não de diretores de obras - p.ex., o diretor de um colégio o rei tor de uma universidade - ou de membros dos conselhos, os quais não são verdadeiramente superiores. A finalidade, porém desta lei aconse lha também uma certa prudência para evitar a permanência ilimitada destes últimos no cargo. Como norma geral, cremos que seria aconselhá vel limitar o desempenho de cargos de governo a um período de nove a doze anos consecutivos. Após esse tempo, o re ligioso deveria permane cer alguma tempo, por exemplo de dois a três anos, reaprendendo a ser súdito e tendo de novo a experiên cia do obedecer. Talvez conviria fa zer uma exceção para a eleição do superior geral, pois este cargo exige uma maior experiência de governo, que se manifesta no desempenho de outros cargos, em ní vel provincial e local.
O mandato dos superiores religiosos pode cessar, como em qual quer ofício eclesiástico, pelo transcurso do tempo prefixado, pelo cumpri mento da idade porventura determinada pelo direito, pela re núncia le gitimamente aceita, pela transferência, pela des tituição e pela pri vação. Já falamos suficientemente das duas primeiras hipóte ses. Veja mos as outras duas.
Na parte relativa aos institutos de vida consagrada, o Có digo não dá nenhuma norma sobre a renúncia, nem sequer aludindo à sua possibi lidade. Aplica-se, portanto, a legislação geral, con tida nos câns. 187-189. De acordo com eles, qualquer um, cônscio de si, pode renun ciar a um ofício eclesiástico por justa causa. Poderiam as consti tuições proibir a renúncia? Creio que não, por que seria algo contra a legislação geral da Igreja e até contrá rio ao próprio di reito natural. Com efeito, pode haver razões graves, de consciência, que aconselhem a renúncia. Como norma ge ral, porém, ela deverá ser aceita pela autori dade competente, ou seja, por aquela a quem cor responde a provisão do ofício em questão. Para os superiores locais, essa autoridade poderia ser o provincial; para este, o geral. Mas para o geral a praxe da Con gregação para os IVC e as SVA tem sido a de considerar a acei tação da renúncia assunto reservado a ela pró pria, embora o ló gico seria deixá-la à competência do capítulo geral do instituto. Por outro lado, é claro que, nos institutos de direito diocesano, basta que a renúncia seja aprovada pelo bispo diocesano.
A transferência e a destituição de superiores religiosos se en contram explicitamente previstas no cân. 624 § 3 que acrescenta que elas podem acontecer por causas determinadas no direito pró prio. Além desse direito próprio que, com freqüência, é omisso, devem ser levados em conta os câns. 190-191 (para a transferên cia) e 192-195 (para a destituição). A decretação delas corres ponde também à auto ridade com petente para a provisão do ofício em questão. Advirtamos, porém, que também nesta matéria a Congre gação vaticana considera a destituição de um superior geral como assunto reservado a ela pró pria.
A privação do cargo de superior, como pena imposta pela co missão de um delito, rege-se pelo cân. 196 e supõe um processo pe nal, para a apuração da responsabilidade. É claro que o supe rior competente pode ria, se o achasse conveniente, decretar a suspensão provisória do acu sado de sua função de governo. Por ou tro lado, tanto neste caso quanto nos já citados de transferência e desti tuição, é sempre preferível atuar pela via dos entendimen tos frater nos. Somente quando estes não sejam possíveis, é que se deve recor rer aos procedimentos jurídicos.


XI Âmbito do poder dos superiores

Ao falar dos institutos de vida consagrada, em geral, fala mos da natureza do poder de seus superiores. Agora, interessa-nos deter minar a sua extensão. O cân 622 é bastante claro ao res peito: o mo derador supremo tem poder sobre todas as províncias, casas e membros do insti tuto, a ser exercido de acordo com o di reito próprio, os ou tros o têm dentro dos limites do próprio ofício. Não se esqueça, porém, que o princípio de subsidiariedade é aplicável também nos institutos reli giosos. Por isso, não obs tante a competência própria, as instâncias superiores não devem intervir quando as instâncias in feriores são ca pazes de resolver adequadamente um assunto e a inter venção não se de monstra neces sária para a unidade do instituto.
O poder dos superiores está limitado, em princípio, ao foro ex terno, ou seja, àquilo que se refere à ordem social, dentro do insti tuto religioso. Contudo, não se deve esquecer que a vida consa grada tem uma finalidade primária, de ordem espiritual, al cançar a perfeição da caridade no serviço do Reino de Deus (cân. 573). Por isso, o supe rior não se pode desentender do progresso espiritual de seus coirmãos, na prática do amor de Deus e do pró ximo. Nesse sen tido, a manifestação espontânea do religioso feita ao superior, a respeito da vida de oração, da intimidade com Deus, das dificuldades e lutas interiores, pode ser um grande ato de caridade para com o mesmo superior, pois lhe possibilitará o exercício de sua função de pai espiritual. Por isso, o Código exorta a que os membros procurem com confiança os Superiores, po dendo abrir-lhes livre e espontanea mente o próprio ânimo (cân. 630 § 5). Essa abertura é conhecida tra dicionalmente como conta de consciên cia, e foi muito inculcada por alguns fundadores, como São Bento e Santo Inácio. Ela pode brotar do desejo de ajudar o superior, dando-lhe os dados necessários para um bom governo es piritual; ou do desejo de o religioso ser ajudado por ele. Mas, de acordo com a legislação atual, a conta de consciência não pode ser imposta, como um dever. De fato, os Superiores são explicita mente proibidos de induzir os súdi tos, de qualquer modo que seja, a manifestar-lhes a própria consciên cia (ibid.). O inciso "quoquo modo" (de qualquer modo) foi expressa mente colocado para re jeitar a prática de tornar obrigatória a mani festação da consciência a um grupo, como seria a própria comunidade religiosa, ou a alguns psicólogos designados pelo superior(18).
Para prevenir qualquer abuso, neste campo, o Código proíbe tam bém que os superiores e os mestres de noviços ouçam habitual mente as con fissões de seus súditos (19). Só podem fazê-lo em ca sos particula res e sob petição espontânea dos interessados. Qual quer disposição do di reito próprio que contrarie as proibições que acabamos de ver só pode ria existir em virtude de indulto pon tifício. De fato, alguns institu tos obtiveram, por exemplo, o privilégio de que o mestre possa ser confessor ordinário de seus noviços. Mesmo nesses casos, deve-se evi tar qualquer modo de agir que tolha a liberdade de cons ciência do no viço ou do reli gioso(20).


XII - Os conselhos dos superiores religiosos

Chama a atenção o fato de o Código tratar dos Conselhos no mesmo artigo dedicado aos superiores, como que a sublinhar o ca ráter de or ganismo auxiliar que lhes corresponde. O direito comum é extraordina riamente parco em relação a eles. Um único cânon, o 627, é quanto se contém no nosso corpo legal, a respeito dos con selhos, cuja organi zação e funcionamento devem, por isso, ser re gulamentados no direito próprio de cada instituto. Contudo, desse cânon se deduz claramente o seguinte princípio fundamental:
Os conselhos são organismos auxiliares do superior. Nem eles pró prios nem os seus membros são superiores, no sentido verda deiro da pa lavra, nem formam com o Superior uma unidade de go verno. Por isso, a rigor, não é correto falar, como se costuma, do governo ge ral ou do governo provincial, como que a indicar, com essas ex pressões, uma es pécie de corpo colegial que dirija o instituto reli gioso ou uma pro víncia; muito menos ainda, poderia ser empregada uma expressão seme lhante a nível local. De fato, as instâncias romanas intervieram já duas ve zes, a fim de evitar desvios desse tipo: a primeira, em 2 de fevereiro de 1972, a então Congregação para os re ligiosos e os insti tutos secu lares declarou que não se pode admitir um regime colegial ordinário e exclusivo no governo de um instituto religioso(21). O do cumento da mesma SCRIS, de 31 de maio de 1983, "sobre os elementos es senciais da doutrina da Igreja acerca da vida religiosa, nos institu tos dedicados ao apostolado", reafirma o mesmo princípio, excluindo o regime cole gial ordinário em qualquer nível de governo, geral, provin cial ou lo cal.
Em segundo lugar, a Comissão Pontifícia para a interpretação autêntica do Código de Direito Canônico declarou, a 5 de julho de 1985(22), que "quando o direito estabelece que para realizar cer tos atos o superior precisa do consentimento de algum colégio ou grupo de pessoas, conforme a norma do cân. 127 § 3", o mesmo su perior não tem o direito de emitir seu voto juntamente com os ou tros, nem se quer para dirimir a paridade de votos. Embora esta resposta tenha um alcance su perior ao âmbito da vida religiosa, pois se aplica também a outras pessoas jurídicas na Igreja (dioceses, associações, etc.), possui uma repercussão especial no nosso campo de estudo. De acordo com ela, sem pre que o direito, comum ou próprio, determina que um superior reli gioso precisa do consentimento do seu conselho, isso significa que o conselho deve ser convocado e, estando os seus mem bros reunidos, a questão em apreço deve ser aprovada pela maioria dos presentes(23). Ao supe rior cabe unicamente submeter a questão à votação e presidir a reunião, mas sem emitir qualquer voto, nem mesmo para dirimir um even tual empate.
Isso não impede, porém, que, em determinadas matérias, as consti tuições determinem que o superior e o conselho ajam cole gialmente, como um único corpo deliberativo. O próprio Código de termina esse modo de agir no caso da demissão de um professo de vo tos perpétuos(24). In sistamos todavia em que o governo colegial não pode ser ordinário e exclusivo em nenhum nível.
Não há nenhuma determinação do direito comum quanto ao nú mero de conselheiros. Do citado cân. 699 § 1, deduz-se que os conselhei ros ge rais não podem ser menos de quatro; mas, no nível provincial ou local, bastariam dois. Levando, por outro lado, em conta a citada resposta de 5 de agosto de 1985 e a impossibili dade dela derivada de o superior di rimir um eventual empate, pa rece conveniente que os conselheiros sejam em número ímpar, a fim de evitar situações de im passe, coisa que pode ria acontecer no caso em que dois conselheiros votassem a favor da proposta e dois contra; nessa hipótese, sem que te nha havido uma verda deira re jeição, o superior não poderia agir, pois não teria o consen timento do seu conselho.
Nada impede que, em comunidades pouco numerosas - digamos, até seis ou oito membros -, a própria comunidade atue como conse lho. Em comunidades maiores, isso não seria prático e até poderia conduzir a paralisar a ação do superior, ao não conseguir, às ve zes, convocar e reunir a comunidade, com quórum suficiente para deliberar.
Tampouco está determinado, pelo direito comum, o modo de desig nação dos conselheiros: por eleição, nomeação, etc. Tudo fica para as disposições do direito próprio. O comum, porém, é que os conse lheiros gerais sejam eleitos pelo capítulo geral; os provinciais e locais, eleitos ou nomeados.
Quanto às qualidades requeridas para o cargo de conselheiro, é comum exigir que os gerais sejam professos de votos perpétuos. Entre os conselheiros provinciais, poderia ser admitido algum que fosse só de votos temporários. Para os locais, haverá que contar com a reali dade de cada comunidade e, por isso, não se pode exi gir sempre a pro fissão perpétua. Também não há nenhuma determi nação do direito comum acerca da idade requerida para o cargo de conselheiro. É comum deter minar, nas constituições, para os ge rais, algo em torno dos trinta anos. Por outro lado, é evidente, pela própria natureza das coisas, que os conselheiros gerais e, analogamente, os provinciais devem ser religiosos que se distin gam pela sua observância, amor ao instituto e conhecimento do seu espírito e tradições.
Poderiam o Secretário e o Ecônomo ("Tesoureiro") gerais ser con selheiros, no respectivo nível? Nada o impede, do ponto de vista do direito comum. Inclusive muitas constituições o determi nam positiva mente. Quanto ao tesoureiro ou ecônomo, não vejo ne nhuma di ficuldade especial. Diferente, porém, me parece o caso do Secretá rio. Pela pró pria natureza das coisas, trata-se de uma pessoa que deve gozar da confiança do superior, pois terá que co laborar íntima e cotidianamente com ele. Ora, os conselhos ge rais, e com freqüência também os provin ciais, não são da livre designação do superior, mas eleitos pelo res pectivo capítulo. Constituem, portanto, um certo contrapeso ao perso nalismo do su perior, não tendo necessariamente a mesma linha de pensa mento que ele. Ainda mais, a permanência dos conselheiros no cargo não de pende da vontade do superior, pois não o receberam dele e sim do ca pítulo. Não parece, porém, conveniente im por ao superior um se cretário determinado, que pode não se afinar com as idéias dele, para todo o período do seu mandato. Por isso, creio que o secre tário geral e o provincial não devem ser conselhei ros, nem deveriam ser elei tos em capítulo. Isso não tira que, se assim for deter minado pelo direito próprio, possam assistir às sessões do conselho, inclu sive com direito a voz, mas não a voto e com a incumbência de la vrar as atas, estando assim à par dos assuntos tratados.
Seria bom que o direito próprio determinasse claramente a fre qüência das reuniões dos conselhos. No nível geral, parece di fícil um bom governo sem, pelo menos, uma reunião mensal. Algo semelhante se poderia dizer do nível provincial. No local, as condições são tão di versas que dificilmente se poderia estabelecer uma norma comum para todas as ca sas.
Em relação ao lugar de residência dos conselheiros, o di reito co mum é omisso. Também é raro encontrar determinações ex pressas no di reito próprio dos institutos religiosos. Contudo, a grande maioria das constituições atribuem aos conselheiros gerais outras funções, como a de vigários ou "assistentes" gerais, su pervisores dos diver sos setores do instituto (formação, ação so cial, pastoral paroquial, etc.). Por isso, parece mais do que conveniente que eles residam na mesma sede ou muito perto do su perior geral. De modo especial, quando o instituto se encontra estendido por diversos países, não se vê como eles poderiam de sempenhar o seu encargo, residindo habitual mente em regiões diferen tes.
Para os conselheiros provinciais, valem considerações análo gas, levando em conta, porém, que, na maior parte dos casos, as provín cias não são tão extensas, pelo que poderiam residir em ca sas diver sas e até desempenhar outros encargos, inclusive o de superior local ou di retor de uma obra apostólica. Mas é claro que os conselheiros locais, por sua própria natureza, devem pertencer à comunidade a cujo superior auxiliam e, por isso, conviver com ele na mesma casa.
A duração do mandato dos conselheiros costuma ser igual à do res pectivo superior, embora isso não seja uma norma imposta pelo di reito comum. Ainda mais, em institutos de caráter centralizado, nos quais os superiores provinciais e locais são nomeados e não eleitos, não é raro que haja um certo intervalo - às vezes, meses - entre a constituição do superior e a renovação do conselho. Por outro lado, é sumamente conveniente que as Constituições prevejam a eventual substituição de um conselheiro, nos casos de morte ou impedimento. O mais comum é que o próprio Superior, com o consen timento do seu con selho, designe (ou proponha à instância supe rior, a qual agirá de modo análogo) o novo conselheiro, que com pletará o mandato daquele que ficou impedido.
Quanto ao modo de agir dos conselhos, distingamos os casos em que eles gozam de voto deliberativo ou de voto consultivo; ou, dito de ou tro modo, entre os casos em que o superior deve contar com o consenti mento do conselho, ou em que apenas deve ouvi-lo. Essas ex pressões de vem ser interpretadas de acordo com o cân. 127(25). Por isso, quando é estatuído pelo direito que, para pra ticar certos atos, o Superior ne cessita do consentimento de algum colégio ou grupo de pessoas, o colé gio ou grupo deve ser convo cado de acordo com o cân. 166, a não ser que haja determinação contrária do direito particular ou próprio, quando se trata uni camente de pedir o conse lho. Mas, para que os atos sejam válidos, requer-se que se obtenha o consentimento da maioria ab soluta dos que estão presentes, ou que se peça o conselho de todos (cân. 127 § 1).
É, portanto, muito importante determinar claramente quais são os atos para cuja validez se requer o consentimento do conse lho e quais aqueles em que apenas precisa ser ouvido. Pelo di reito comum, requer-se o consentimento para os seguintes atos:

- alienação e qualquer negócio em que a condição patrimonial da pessoa jurídica pode tornar-se "pior" (cân. 638 § 3);
- ereção, transferência e supressão do noviciado (cân. 647 § 1);
- licença para que o noviciado seja feito em outra casa do insti tuto e sob a direção de um religioso experiente, que faça as vezes do mestre de noviços (cân. 647 § 2);
- licença de ausência prolongada da casa religiosa (cân. 655 § 1);
- consentimento à passagem para um outro instituto religioso (can. 684 § 1);
- concessão de indulto de exclaustração (cân. 686 § 1);
- solicitação à Santa Sé ou ao bispo diocesano, de exclaus tração imposta (cân. 686 § 2);
- concessão de indulto de saída a professos temporários (cân. 688 2);
- readmissão de quem tiver saído legitimamente, ao concluir o no viciado ou após a profissão temporária (cân. 690 §§ 1-2);
- expulsão, em caso urgente, da casa religiosa (cân. 703);

Também pelo direito comum, exige-se a atuação colegial do conse lho, junto com o superior, na decretação da demissão de um pro fesso (cân. 699 § 1). Parece igualmente, que o Código insinua uma ação cole gial nos seguintes casos:

- declaração do fato da demissão automática (cân. 694 § 2);
- constatação da incorrigibilidade, em ordem à demissão (cân. 697, 30).

Pelo direito comum, é necessário ouvir o conselho unicamente no caso de ex clusão de um professo temporário da profissão subse qüente (cân. 689 § 1).

Não há nenhuma determinação explícita em relação a certos assun tos importantes, mas a própria natureza das coisas parece exi gir neles, pelo menos, o voto deliberativo do conselho. Em al guns, até parece mais conveniente entregar a resolução ao capítulo geral. São os se guintes:

- agregação de um instituto religioso a outro (cân. 580);
- divisão de um instituto em partes, ereção de novas partes, união das erigidas ou determinação de novos limites para elas (cân. 581);
- supressão de partes do instituto (cân. 585);
- aprovação de "outros códigos", que não as constituições, como seriam os "diretórios" (cân. 587 § 4);
- ereção de casas religiosas (cân. 609 § 1);
- supressão de casas religiosas legitimamente erigidas (cân. 616 § 1);
- nomeação ou confirmação de superiores, bem como sua transferên cia e destituição (câns. 625 § 3 e 624 § 3);
- admissão de candidatos ao noviciado (cân. 641);
- prorrogação do tempo de profissão temporária (cân. 657 § 2);
- modificação das disposições sobre administração, uso, usu fruto e testamento dos religiosos professos (cân. 668 § 2);
- renúncia do religioso de votos perpétuos a seus próprios bens (cân. 668 § 4);
- admissão à profissão de um religioso já professo perpétuo num outro instituto (cân. 684 § 2);
- transferência de um religioso de um mosteiro autônomo a um ou tro do mesmo instituto, federação ou confederação (cân. 684 § 3);
- avaliação das provas relativas aos delitos que implicam de missão obrigatória, antes de remetê-las ao Superior Geral (cân. 695 § 2).
Além destes casos, explícita ou implicitamente determinados pelo direito comum, o direito próprio determine os casos em que, para agir validamente, se requer o consentimento ou o conselho, que deve ser so licitado de acordo com o cân. 127 (cân. 627 § 2). Que ca sos poderiam ser esses, além dos que acabamos de enumerar? Não há um critério único, mas poderíamos pensar, por exemplo, na convocação de capítulos extraordinários, na aceitação da renúncia de conselheiros ou superio res provinciais e locais, na designação de equipes de for mação ou co ordenadores de setores apostólicos, na aprovação do plano de formação (se não está reservado ao Capí tulo Geral), na mudança das finalidades de uma casa religiosa, etc., etc.


XIII. A "Visita Canônica" dos superiores religiosos

Os superiores designados pelo direito próprio para esse ofí cio visitem, nos tempos determinados, as casas e os membros que lhes estão confiados, de acordo com as normas do direito próprio (cân. 628 § 1). Essas normas variam muito, de acordo com a natu reza e as circunstân cias do instituto. O mais comum é prescrever uma visita anual do supe rior provincial (ou do geral, em institu tos não dividi dos em provín cias) a todas as casas da província (ou do instituto). Quando o insti tuto está dividido em provín cias, o superior geral costuma visitar as casas, pelo menos uma vez durante o seu mandato. Em alguns casos, como os de institutos muito numerosos ou muito es palhados geograficamente, nem sequer se impõe explicitamente essa obrigação ao geral. Ele, po rém, cos tuma enviar alguns dos seus con selheiros ou assistentes, e até mesmo outros religiosos nomeados ex pressamente para tanto, como visi tadores, a fim de realizar uma vi sita canônica formal, infor mando de pois do resultado.
A finalidade fundamental da visita é de caráter pastoral. O supe rior deve mostrar nela a sua solicitude pelo bem não só do ins tituto, como um todo, mas também de todos e cada um dos mem bros, le vando em conta a salus animarum, que, na Igreja, tem sem pre o pri meiro lu gar(26). Por isso, é fundamental que o visitador reserve tempo sufi ciente para conversar com cada religioso em particular, e que os ouça com atenção, ponderando diante de Deus tudo o que eles acharem por bem comunicar-lhe. Contudo, o poder jurídico do visita dor está limitado ao foro externo, tal como já advertíamos a res peito do poder dos superio res, em geral. Daí a restrição contida no parágrafo 3 do cân. 628: Os membros proce dam com confiança para com o visitador, a quem devem res ponder segundo a verdade, na caridade, quando os interrogar legitima mente. Ora, como já vimos, de acordo com o cân. 630 § 5, qualquer in tromissão no campo da consciência é ilegítima. Por isso, o re ligioso não está obrigado a responder a perguntas que se refiram a esses as suntos. Mas, como também vimos anteriormente, é louvá vel a confiança do religioso para com o visi tador e a manifes tação espontânea a ele dos assuntos mais íntimos. A utilização, porém, dessa manifestação de consciência, para o governo fica condicionada a um licença expressa e totalmente livre do interes sado.
Como a visita é fundamental para que o instituto religioso seja governado numa relação pessoal entre superiores e súditos, a ninguém é lícito desviar os membros da obrigação de responder, quando são legi timamente interrogados, na verdade na caridade; nem de impedir de outro modo a finalidade da visita(27).
Quando a visita é realizada por alguém com poder delegado pelo superior, é claro que a sua autoridade está limitada pelos termos da delegação. Daí que possa haver visitadores para assun tos específi cos, como a formação, o apostolado social ou as questões econômicas.


XIV - A visita do Bispo diocesano

Conforme advertíamos, ao tratar dos institutos de vida consa grada, em geral, eles gozam de justa autonomia de vida, principal mente de regime (cân. 587). Essa autonomia é, em princí pio, a mesma para os institutos cclericais do que para os lai cais. Por isso, o novo Código limitou fortemente os poderes que, no corpo legal de 1917, eram atri buídos aos bispos diocesanos em relação às congre gações laicais, e até no que diz respeito aos institutos religiosos de direito dioce sano, clericais ou laicais. O princípio geral apli cável nesta matéria está formulado, conse qüentemente, de modo res tritivo: O bispo pode vi sitar os membros dos institutos religiosos de direito pontifício e as suas casas, só nos casos expressos pelo direito (cân. 397 § 2). Numa leitura superificial, poderia dar a im pressão de que os bispos têm um po der pleno de visita em relação aos institutos de direito dioce sano. Na realidade, não é assim, pois o cân. 628 § 2, 20 fala ex clusivamente das casas e não dos membros. A mesma coisa vale para os mosteiros men cionados no n0 10 do citado parágrafo. Não se es queça, porém, que as limitações que apontamos referem-se ao re gime interno das comunidades religiosas. Pelo que diz respeito à irradiação externa, o Bispo dioce sano pode visitar, por si ou por outro, as Igrejas e oratórios freüen tados habitual metne pelos fiéis, as escolas e outras obras de religião ou de cari dade espi ritual ou temporal confiadas aos religiosos, por ocasião da vi sita pastoral e ainda em caso de necessidade; não, porém, as es colas abertas exclusivamente aos alunos próprios do instituto (cân. 683 § 1). Os lugares aqui enumerados são precisamente aque les que correspondem às áreas de atuação apostólica em que, con forme o cân. 678 § 1, os religiosos estão sujeitos ao poder dos bispos, aos quais devem obedecer com devotado respeito e reverên cia.


XV. O dever de residência dos superiores religiosos

A obrigação de residir perto daqueles que lhes estão especial mente confiados é um dos deveres que o Código frisa em relação a to dos os que exercem cura de almas ou outros encargos importantes para o bem da Igreja: Cardeais da Cúria Romana (cân. 356), Bispos dioce sanos (cân. 395 § 1), Bispos coadjutores e au xiliares (cân. 410), adminis trador diocesano (cân. 429), párocos (câns. 533 § 1 e 543 § 2, 10), vigários paroquiais (cân. 550 § 1). Ainda mais, o Código pune a irre sidência com "justa pena", que pode chegar, após adver tência, à pri vação do ofício eclesiás tico(28). De fato, esses ofícios são consti tuídos para o bem dos fiéis e não precisamente do titular do cargo. Por isso, este deve ficar num lugar de fácil acesso para os fiéis que precisam de sua atuação.
No caso dos religiosos, pode-se dizer que os superiores exercem uma função pastoral ou quase-pastoral, pois o primeiro encargo deles é cuidar do bem espiritual dos membros que lhes estão confiados. Daí deriva o dever de residência estabelecido no cân. 629: "Os Superio res residam cada qual em sua casa, e não se afastem dela, a não ser de acordo com o direito próprio. Como se vê, o cânon tem uma redação genérica e se aplica, por isso, não só aos superiores locais, mas também aos maiores. De fato, estes também devem estar adscritos a uma casa - cúria ou sede provin cial ou geral -, conhecida por todos os súditos. Contudo, o dever de residência do superior maior deve ser harmonizado com o de vi sita, que já estudamos anteriormente. Dada a diversidade de si tuações (número de membros, extensão terri torial, facilidade de comunicações, etc.), o Código se abstém de de terminar ulterior mente esses deveres. Isso corresponde ao direito próprio - não necessariamente as Constituições! - que deverá indicar as ausên cias permitidas e os mecanismos de suplência do superior au sente.
É lógico que o dever de residência tenha que ser mais urgido no caso do superior local, e que pessoas com encargos pastorais que as obriguem a ausências prolongadas da própria casa não são as mais ap tas para o cargo de superior. Também se deve considerar que, no caso de vários grupos de religiosos, com pluralidade de moradias, mas for mando juridicamente uma única casa, o superior local deverá ter dispo nibilidade suficiente para se tornar pre sente, de modo re gular, em to das elas.
Em relação ao superior geral, quanto maior for o instituto reli gioso, parece mais aconselhável a sua permanência na sede, a fim de que governe realmente e não entregue praticamente tudo nas mãos de vi gários ou assistentes. Isso não tira a conveniência e até a necessi dade de viagens, não muito prolongadas, para conhe cer a rea lidade dos lugares onde os membros do instituto traba lham e vivem.


XVI. Superiores religiosos e liberdade de consciên cia

Como vimos no esboço histórico da vida consagrada, a figura do superior religioso surgiu, na vida monástica, mais como um pa dre espi ritual, cuja experiência poderia ser de ajuda na cami nhada dos novos monges. Essa mesma concepção é marcante na Regra de São Bento. A pró pria palavra abade indica a paternidade espi ritual. Nem é de maravi lhar que o mesmo valesse para os mosteiros femininos, onde a abadessa também exerceu uma certa maternidade espiritual. Afinal, no monaquismo primitivo, a direção espiritual não estava unida ao sa cramento da pe nitência, nem era exercida inicialmente por sacerdo tes, pois abades e abadessas não costuma vam ser clérigos. A tradição medieval continuou a acentuar essa prática. No início da Idade Mo derna, Santo Inácio, nas suas Cons tituições, pede que o religioso não tenha nada oculto para o su perior, "nem a consciência própria"; ao mesmo tempo, estabeleceu a obrigatoriedade da conta de consciên cia sistemática, uma ou duas vezes por ano.
Contudo, a crescente união entre direção espiritual e sacra mento da penitência acabou produzindo sérias dificuldades, com risco da violação, pelo menos indireta, do sigilo sacramental. Por ou tro lado, a tendência, cada vez mais forte, a separar o foro interno do externo acabou produzindo uma legislação forte mente restritiva, já no Código de 1917, quanto à função dos supe riores em matéria de di reção espiritual, legislação essa que per dura basicamente no Código atual. Deixando de lado as prescrições relativas aos confessores, que estudaremos em conexão com o dever estabelecido no cân. 664, ve jamos o que o nosso corpo legal or dena ao respeito.
O princípio básico, neste campo, é o da liberdade de cons ciência: Os superiores respeitem a justa liberdade dos membros quanto ao sacra mento da penitência e à direção de consciência, salva porém a disci plina do instituto (cân. 630 § 1). Todos os outros pa rágrafos deste cânon devem ser interpretados à luz deste princípio geral. A consciên cia, enquanto santuário íntimo da pes soa humana, onde ela se encontra com Deus, deve ser respeitada e só pode ficar patente por um ato livre e espontâneo do sujeito. Note-se que o câ non citado usa três ex pressões diversas: direção de consciência (§ 1), abertura de ânimo (§ 2) e manifestação de consciência (§ 5). A direção de consciência, na prática atual, vai unida, com freqüência, ao sacramento da penitência; não é, porém, necessário que assim seja. Pessoas leigas podem ser ex celentes diretores de consciência, pois a direção está mais li gada ao dom de sabedoria, que o Espírito Santo concede livremente a quem quer. A direção é um meio de cami nhar com segurança nas vias do Espírito, evitando ilusões e enganos. Daí a sua quase-obrigatoriedade, sobretudo nos anos da formação in cial.
Por outro lado, também há necessidade de se evitar que, neste campo, se introduzam interesses alheios, como poderiam ser as conve niências do governo do instituto. Os superiores devem respeitar ou, mais exatamente, reconhecer a justa liberdade, quanto á direção de consciência, pois ela existe antes e indepen dentemente da autori dade. Contudo não se trata de uma liberdade ilimitada: ela deve ser justa. Não seria tal, por exemplo, a di reção que fosse conduzida por um não-católico, como um monge bu dista, um psicanalista agnóstico ou atéu, etc. A liberdade citada deve respeitar também a disciplina do insti tuto. Seria indiscreta uma atitude que, em nome da liberdade de di reção espiritual, pre tendesse uma violação da clausura de um mos teiro de contemplati vas, ou que impedisse o cumprimento habitual dos deveres próprios de um religioso em estabelecimentos educaionais ou hospitala res ou mesmo no seio da própria comunidade. Relacionamentos suspeitos entre um religioso(a) e o seu diretor espiritual podem e devem ser vi giados e corrigidos, sem violação da justa liberdade, pois eles cons tituem um abuso dela.
A abertura do ânimo e a manifestação da consciência, de que fala o parágrafo 5, relacionam-se muito mais com a própria função de go verno, pois servem para que o superior conheça mais profun damente o súdito, fornecendo assim elementos para um governo mais paternal e prudencial. Não se trata aqui, portanto, de uma verda deira direção es piritual e sim de uma transparência do religioso, inclusive no âm bito da consciência, como um ato de caridade para com o superior, a quem são fornecidos dados que, de outro modo, desconheceria por com pleto. A abertura de ânimo parece ter um âm bito menor do que a mani festação de consciência. O ânimo se pode abrir em relação a um campo restrito, como, por exemplo, em re lação aos anseios e dificuldades na ação apos tólica ou na vida de oração; a manifestação da consciên cia, pelo con trário, é mais abrangente e inclui a comunicação de pe cados e ten tações. O Có digo, por lado, exorta à confiança com os su periores, a fim de propiciar a abertura livre e espontânea do reli gioso para com o seu superior. Ao mesmo tempo, porém, contém uma proibição formal de induzir de qualquer modo que seja, quer dizer, direta ou indireta mente, a uma manifestação da consciência. Se, con tudo, o religioso, espontaneamente, quiser fazer essa manifestação, deve ser acolhido, com caridade e agradecimento, pelo superior, o qual deverá evitar qualquer discriminação contra os que não se sen tem movidos a tal mani festação.
Pela própria natureza das coisas, tudo aquilo que o superior chega a saber através da manifestação da consciência de um seu sú dito fica limitado ao âmbito do foro interno e não pode ser usado para o foro externo, a não ser que, em casos particulares, o próprio súdito dê, para tanto, licença expressa e livre.

(1) Nos câns. 596, 617, 618 e 622.
(2) Cf. cân. 590 § 1.
(3) Cf. cân. 618.
(4) Cf. cân. 573 § 1.
(5) Cf. cân. 662.
(6) Cf. cân. 608.
(7) Cf. cân. 911.
(8) Cf. cân. 1003 § 2.
(9) Cf. câns. 1427 § 1 e 1438 § 3.
(10) Cf. cân. 625 §§ 1-2.
(11) Cf. também cân. 119, 10.
(12) Cf. cân. 631 § 1.
(13) Cf. Hortal, J., "Eleição direta da Superiora Geral?", em Direito e Pastoral, no 5, jul. 1987, pp. 54-56.
(15) Cf. cân. 625 § 2.
(16) Cf. cân 623).
(17) Cf. cân. 624 § 1.
(18) Cf. Communicationes 12 (1980) 166.
(19) Cf. câns. 630 § 4 e 985.
(20) Cf. cân. 630 § 1.
(21) Cf. AAS 64 (1972) 364s.
(22) Cf. o comentário de Luis Madero López à citada resposta, em Direito e Pastoral n0. 6, out. 1987, pp. 33-39.
(23) Cf. cân. 127 § 1.
(24) Cf. cân. 699 § 1.
(25) Cf. cân. 627 § 2.
(26) Cf. cân. 1752.
(27) Cf. cân. 628 § 3.
(28) Cf. cân. 1396.




1)(1) Cf. Jo 4,42.
2)(2) Cf. At 13,2.
3)(3) Cf. cân. 207 § 2.
4)(4) Cân. 573 § 1; Cf. LG 44; PC 1.
(5)(5) Cf. LG, cap. VII: "Da índole escatológica da Igreja peregri nante".
(6)(6) LG 44.
(7)(7) Conclusões de Puebla, n0 747.
(8)(8) Id., n0 748.
(9)(9) Id., n0 749.
(10)(10) Doc. Religiosos e Promoção Humana, n0 I, 3.
(11)(11) Cf. cân. 573 § 2.
(12)(12) Ibid.
(13)(13) Cf. cân. 603.
(14)(14) "A Obra da Igreja reconhecida oficialmente", em L'Osservatore Romano, ed. port., 2 de junho de 1991, p. 9.
(1)(1) Cf. LG 44c; cân. 207 § 2; cân. 574 § 1.
(2)(2) LG 8.
(3)(3) Cf., p.ex., 1 Co 12 e 14.
(4)(4) PC 2b.
(5)(5) Cf. cân. 587.
(6)(6) Na primeira edição brasileira do Código de 1983, a palavra latina tueri foi traduzida por "tutelar", detur pando o sentido do cânon, pois o que nele se ordena é uma proteção e não uma tutela, como se os Ins titutos fossem menores de idade
(7)(7) Cf. Prefácio ao Código (p. XXIX, 50 da edição brasileira).
(8)(8) Cf. cân. 589.
(9)(9) Cf. cân. 595 § 1).
(10)(10) Creio que, por analogia com o cân. 691 § 2, deveria entender-se como o Bispo do lugar da casa de ads crição dos interessados.
(11)(11) Cf. cân. 592 § 1.
(15)(15) Cf. PC 21.
(16)(16) Cf. cân. 119, 30.
(18)(18) CD 35,3.








































































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