Nossa
Pátria é o Céu (Fil 3, 20)
O tema
deste encontro -“Nossa Pátria é o Céu”– espelha, de certa
forma, o estilo de vida que já é vivido por tantos religiosos
contemplativos generosos e aquele que é sonhado para todos os
consagrados.
A frase se
encontra na Carta de Paulo aos Filipenses, capítulo 3.
Alguns
dados sobre a Carta aos Filipenses
A maioria
dos exegetas coloca a Carta aos Filipenses entre as Cartas aos
Coríntios, escrita em Éfeso, pelos anos 56-57. A prisão do
Apóstolo, suposta nesta Carta, não é mais colocada na época das
Cartas do cativeiro, Efésios e Colossenses.
Algumas
rupturas no próprio texto e na apresentação dos temas, como, por
exemplo, o salto dado entre o 1º e 2º versículos do capítulo 3º
e a serenidade da gratidão de Paulo no final do capítulo 4º, numa
carta polêmica, assim como outras razões de ordem técnica levaram
alguns exegetas a desconfiarem da unidade da Carta. P. Benoit, por
exemplo, na tradução e comentário da Carta, na Bíblia de
Jerusalém, supõe 3 cartas em Filipenses, artificialmente costuradas
numa só, num segundo momento: Carta A : 4, 10-20;
Carta B : 1, 1-3-3,1 + 4, 2-9.21-23; Carta C :
3, 2 – 4,1. Por sua vez, J. Gnilka, especialista na Carta, no seu
grande comentário teológico, encontra 2 cartas: Carta A, da
prisão : 1, 1 – 3, 1ª; 4, 2-7. 10-23; Carta B, a
carta polêmica : 3, 1b – 4, 1. 8s. Outros muitos autores
acham que os elementos aduzidos não são suficientes para repartir a
Carta e continuam defendendo a sua unidade. L. A. Schökel, levando
em consideração a índole acentuadamente pessoal desta carta, diz:
“Num texto tipicamente do gênero carta pessoal, os saltos,
mudanças e prolongamentos não estranham”. (Introdução à
Carta aos Filipenses, na Bíblia do Peregrino). Apesar de técnica,
esta discussão não é sem importância para situar no seu contexto
e entender o nosso texto: “Nossa Pátria é o Céu”.
Índole
própria da Carta aos Filipenses
A Carta
aos Filipenses tem cunho de carta muito pessoal, confidencial, quase
de abertura de coração, de espontaneidade.
A mensagem
geral da Carta, direta e transversal, é a comunhão fraterna na
fidelidade ao Cristo humilde e soberano, a ser defendida contra
qualquer irrupção de autossuficiência e de questionamento da
centralidade do Cristo Senhor.
Contexto
imediato
O contexto
próximo do nosso tema é todo o capítulo 3º da Carta, que convém
ter presente:
3.1.“No
mais, meus irmãos, alegrai-vos no Senhor. Não me custa escrever-vos
as mesmas coisas, e para vós é uma confirmação.
2.Cuidado
com os cães! Cuidado com os maus operários! Cuidado com os falsos
circuncisos!
3.Pois
os circuncisos somos nós que prestamos o nosso culto pelo Espírito
de Deus, que fazemos consistir a nossa glória em Jesus Cristo, que
não confiamos em nós mesmos (na carne).
4.No
entanto, eu tenho motivos de ter confiança também em mim mesmo (na
carne). Se um outro crê poder confiar em si mesmo (na carne),
eu o posso ainda mais, eu,
5.circunciso
no oitavo dia, da raça de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu,
filho de hebreus, quanto à lei, fariseu,
6.quanto
ao zelo, perseguidor da Igreja; quanto à justiça que se encontra na
lei, tornado irrepreensível.
7.Ora,
todas essas coisas que
para mim eram ganho, eu as considerei como perda por causa de Cristo.
8.Como
não, eu considero que tudo é perda em comparação desse bem
supremo que é o conhecimento de Jesus Cristo, meu Senhor. Por causa
dele, perdi tudo e considero tudo isso como lixo, a fim de ganhar a
Cristo
9.e ser
achado nele, não já com uma justiça que seja minha, que veio da
lei, mas com a que vem pela fé em Cristo, a justiça que vem de Deus
e se apóia na fé.
10.Trata-se
de conhecê-lo a ele, ao poder da sua ressurreição e à comunhão
com seus sofrimentos, de tornar-se semelhante a ele em sua morte,
11.a
fim de chegar, se possível, à ressurreição dentre os mortos.
12.Não
que eu já tenha alcançado tudo isso ou já me tenha tornado
perfeito; mas arremeto para tentar alcançá-lo, porque eu mesmo fui
alcançado por Jesus Cristo.
13.Irmãos,
eu não julgo já tê-lo alcançado. A minha única preocupação é,
esquecendo o caminho percorrido e ansiando com todas as forças pelo
que está na frente,
14.arremeter
rumo à meta, visando ao prêmio ligado ao chamado que, do alto, Deus
nos dirige em Jesus Cristo.
15.Nós
todos, os ‘perfeitos’, comportemo-nos pois assim, e se em algum
ponto vos comportais de outro modo, Deus também vos esclarecerá a
esse respeito.
16.Entretanto,
seja qual for o ponto a que chegamos, caminhemos na mesma direção.
17.Imitai-me
todos juntos, irmãos, e fixai o vosso olhar naqueles que se conduzem
segundo o exemplo que tendes em nós.
18.Muitos,
com efeito, eu vo-lo dizia muitas vezes e agora repito-o chorando,
comportam-se como inimigos da cruz de Cristo.
19.O
seu fim será a perdição; o seu deus, é o ventre; e sua glória,
eles a põem na própria ignomínia, já que só levam a peito as
coisas da terra.
20.Pois
a nossa pátria está nos céus, de onde esperamos como salvador, o
Senhor Jesus Cristo
21.que
há de transfigurar o nosso corpo humilhado para torná-lo semelhante
ao seu corpo glorioso, com a força que também o torna capaz de tudo
submeter ao seu poder.
(Tradução
da TEB)
Como se
vê, é um capítulo marcadamente polêmico. Por isso, é
absolutamente necessário conhecer quem são os adversários visados
por Paulo para entender o seu pensamento de contrapartida.
Os
adversários no capítulo 3
Pelas
referências feitas pelo Apóstolo, e sabendo ler nas entrelinhas,
aqui, algumas características dos adversários de Paulo:
-são
falsos circuncisos (v.2) a circuncisão aparecendo como ‘incisão’,
‘corte’,quase uma ‘mutilação’.
-confiam
na ‘carne’, entendida aqui como sistema judaico de vida, raça,
circuncisão, costumes, lei, culto, comidas, justiça vinda da lei
(v.6.9.).
-não
aceitam o mistério da cruz de Cristo (v.18).
-julgam já
ter chegado, de certa maneira, à perfeição, à ‘escatologia já
realizada’.
-parecem
até levados a um certo laxismo.
Paulo os
chama de ‘maus operários’(v.2) por pertencerem à
comunidade dos cristãos; ‘cães’ e diz que o fim deles é
a destruição (v.19).
Há
indícios de que sejam os mesmos opositores da Carta aos Gálatas, os
judaizantes, com alguma característica a mais, como a
autossuficiência.
A
experiência de Paulo
Defendendo
ou precavendo a comunidade contra essa maneira de pensar de
valorização salvífica do sistema judaico, Paulo aduz a própria
experiência do encontro com Cristo Ressuscitado, na estrada de
Damasco, seu encantamento e a reviravolta na sua vida.
Deixa bem
claro que agora o que conta é o Cristo Jesus Ressuscitado com quem
entramos em comunhão no seu mistério de morte e ressurreição.
De fato, a
experiência de Paulo no seu encontro com o Senhor Ressuscitado é
paradigmática, tem cunho de exemplaridade.
Agora, o
que conta é encontrar-se com o Senhor, conhecê-lo, fazendo
experiência de vida com ele, ganhar a Cristo, nele ser justificado
através da fé nele, entrar em comunhão com os seus sofrimentos,
tornando-se semelhante a ele na sua morte, tentar alcançá-lo,
deixando para trás o caminho andado e arremetendo, correndo,
avançando para a meta, o prêmio do chamado do Pai, a ressurreição
dentre os mortos.
Isto é o
que conta agora para Paulo, para os Filipenses e para todos os
cristãos.
Paulo põe
em evidência um elemento fundamental em toda essa realidade nova no
que respeita a ele e a todos os cristãos. É o próprio Cristo Jesus
Senhor quem desencadeia todo esse processo de transformação e de
vida. É o Senhor quem primeiro vem ao encontro e alcança, pega,
conquista Paulo; que o coloca na pista de corrida, o impulsiona, o
provoca e cria comunhão no mistério de morte e o faz sonhar com a
ressurreição de entre os mortos. Paulo, como exemplar de todo
cristão, vive esta tensão do ‘agora, já’, em vista do ‘não
ainda’. Já agora, Paulo é possuído, trabalhado pelo Senhor
Ressuscitado que veio ao seu encontro, o apanhou, e entrou em
comunhão com ele. Esta situação presente do ‘já agora’ em
comunhão com o Ressuscitado tende toda ela, vai, é ordenada
ansiosamente para a situação futura do ‘não ainda’.
O futuro,
a meta é descrita como “quando o Senhor Jesus Cristo (vier)
como salvador e vai transfigurar o nosso corpo humilhado, para
torná-lo semelhante ao seu corpo glorioso” (v.21); quando
houver a ressurreição de entre os mortos. É o prêmio, o alvo, a
meta para que tende a comunhão atual, já agora, com o Senhor.
De fato,
Paulo já está em comunhão com o Cristo Jesus Senhor, mas espera
ansiosamente, como a pessoa que aguarda um visitante e olha, da
soleira da casa, para o lado de onde deve chegar a visita, quase
querendo ouvir os seus passos de chegada. É a atitude de Paulo, já
em comunhão com o Senhor, que o aguarda vindo como salvador,
transformador do seu corpo. Importante ressaltar que esse anseio, a
expectativa certa do acontecimento futuro, já é fruto da comunhão
de Paulo com o Senhor que o apanhou primeiro. Por isso, convém
entender melhor esta atual, presente, comunhão com o Senhor, como
Paulo a vê.
A
comunhão com o Ressuscitado
“Fiel
é o Deus que vos chamou à comunhão com o seu Filho Jesus Cristo,
nosso Senhor” (1 Cor 1, 9). Quem se encontra com Jesus Cristo
Senhor Ressuscitado, quem foi santificado e é chamado a ser santo,
pela fé e pelo batismo, entra em comunhão com Jesus Cristo Filho e
Senhor, e espera a revelação de nosso Senhor Jesus Cristo no Dia de
nosso Senhor Jesus Cristo (Cf. 1 Cor 1, 1-9).
São
fortes as expressões usadas por Paulo para exprimir essa comunhão.
-O
cristão, na sua inteireza, com o seu corpo, faz um espírito só com
o Senhor Ressuscitado, Espírito que dá vida (Cf. 1 Cor 6, 17; 15,
45).
-O batismo
une o batizado ao Cristo de maneira a fazer com ele um único ser,
como quer dizer a palavra usada uma única vez no Novo Testamento,
aqui,
‘symphytoi’
(Rom 6, 5).
-Num texto
de grande ternura, numa Carta em que, algumas vezes, se mostra severo
com os Gálatas, diz Paulo: “meus filhinhos que, entre dores,
novamente dou à luz, até que Cristo seja formado em vós”
(Gal 4, 19), lembrando que em Filipenses (2, 6-7), ‘forma’ é
quase sinônimo de natureza.
-A
comunhão com o Cristo Senhor, já presente, atual, torna o crente
uma pessoa só com o Senhor Ressuscitado, Espírito que dá vida (Cf.
Gal 3, 28), destacando que Paulo usa “um” no masculino,
diferentemente de João (Cf. Jo 17, 21-22), que usa “um” no
neutro”. De onde Paulo tira a conclusão que “vivo, mas não
sou mais eu, é Cristo que vive em mim” (Gal 2, 20). É
impressionante o realismo dessa comunhão. Bento XVI, mais de uma
vez, se deteve sobre essa união profunda, pessoal do Senhor com o
cristão. Vale a pena citar alguns trechos da palavra do Santo Padre.
“De
fato, as suas palavras conclusivas (palavras de Paulo em Gálatas)
encerram o núcleo dessa pequena biografia espiritual: “Já não
sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gal 2, 20). Vivo, mas
já não sou eu. O próprio eu, a identidade essencial do homem –
deste homem, Paulo – foi modificada. Ele existe ainda, e já não
existe. Atravessou um “não” e encontra-se continuamente neste
“não”: eu, mas já “não” eu. Com estas palavras Paulo não
descreve qualquer experiência mística que porventura lhe tivesse
sido concedida e que poderia interessar-nos, quando muito, sob o
ponto de vista histórico. Não, esta frase é a expressão do que
aconteceu no batismo. O meu eu próprio é-me tirado e inserido num
novo sujeito maior. Tenho de novo o meu eu, mas agora transformado,
trabalhado, aberto por meio da inserção no outro, no qual adquire o
seu novo espaço de existência”. (Bento XVI, 15/04/2006).
“É
precisamente partindo que ele (Jesus) vem. A sua partida
inaugura um modo totalmente novo e maior da sua presença. Com a sua
morte, Jesus entra no amor do Pai. A sua morte é um ato de amor. O
amor, porém, é imortal. Por isso, a sua partida transforma-se numa
nova vinda, numa forma de presença mais profunda que não acaba
mais. (...) A corporeidade coloca limites à nossa existência.
Não podemos estar contemporaneamente em dois lugares diferentes. O
nosso tempo tende a acabar. E entre o “eu” e o “tu” existe o
muro da alteridade. (...) A sua partida torna-se uma vinda no
modo universal da presença do Ressuscitado, no qual ele está
presente ontem, hoje e para sempre; em que abraça todos os tempos e
lugares. Agora pode ultrapassar também o muro da alteridade que
separa o “eu” do “tu”. Assim, aconteceu com Paulo, que
descreve o processo da sua conversão e do seu batismo com estas
palavras: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim”
(Gal 2, 20). Por meio da vinda do Ressuscitado, Paulo obteve uma
identidade nova. O seu “eu” fechado abriu-se. Agora vive em
comunhão com Jesus Cristo, no grande “eu” dos crentes que se
tornaram – segundo definição dele – “um em Cristo” (Gal 3,
28). (Bento XVI, 22/03/2008).
Este é o
realismo da comunhão, já agora, com o Cristo Senhor, que se abre na
expectativa certa da comunhão com ele no futuro, quando ele, vindo
do céu onde está,“há de transfigurar o nosso corpo” (
Fil 3,20-21). Portanto, já agora estamos em comunhão, fazendo uma
só pessoa , com o Senhor, ele que está nos céus, lá no alto, de
onde Deus nos chama (Cf. Fil 3,14), e, ao mesmo tempo, “ainda não”
comungamos com ele com o corpo transfigurado na glória, “ainda
não” chegamos lá, onde está Deus que nos chama.
Onde
nos leva a lógica
Já agora,
em comunhão com Jesus Ressuscitado, nesta “vida escondida com
Cristo em Deus” (Col 3, 3), já entramos na vida íntima da
Trindade, em que o Pai eternamente gera o Filho no Espírito Santo.
Ora, se formamos uma só pessoa com o Cristo, entramos então, já
agora, de certa maneira, naquele circuito misterioso de vida
trinitária. Já ‘habitamos’ em Deus, enquanto caminhamos no
histórico da nossa vida terrena, bem presentes neste mundo. João
dirá: “Que todos sejam um como tu Pai estás em mim e eu em ti;
que também eles estejam em nós...eu neles como tu em mim...e assim
o mundo possa conhecer que tu me enviaste e os amaste como tu me
amaste...a fim de que o amor com que me amaste esteja neles e eu
neles” (Jo 17, 21.23.26).
Nossa
Pátria é o Céu
O texto de
Fil 3, 20 usa um termo que só aparece aqui, em todo o Novo
Testamento: “A nossa ‘políteuma’ está nos céus”. Após
analisar o termo no ambiente grego da época, C. Spicq sintetiza
assim o seu sentido: “Politeuma de Fil 3, 20 seria, portanto, o
conjunto dos cristãos, residentes na Macedônia, reunidos e
unificados como cidadãos pela sua naturalização comum, pelo fato
da sua inscrição batismal nos registros da Metrópole celeste. A
‘ecclesia’ (assembléia) deles é uma imagem reduzida da
assembléia dos céus. Graças à sua cidadania eles participam dos
direitos e dos privilégios, alcançados e comunicados pelo Sôter
deles, Jesus, definidos pela constituição (politeia) do seu país
de origem”. (C.Spicq, Théologie Morale du Nouveau Testament.
T.I, p.429).
É,
portanto, por estarmos em comunhão com o Cristo Senhor, que está
nos céus, por recebermos o chamado do alto, que é o céu, da parte
do Pai; caminhando para a futura plenitude de vida de que já
participamos agora; inseridos na própria vida trinitária, é por
todas essas razões que a Palavra nos garante, com segurança, que
‘somos do céu’, ‘cidadãos do céu’, ‘a nossa pátria é o
céu. Este é o verdadeiro estatuto e identidade do cidadão do céu.
A
lógica da história
Com os pés
no chão, não nos esquecemos que ainda caminhamos na história,
nossa vida se faz todos os dias, nossas opções são feitas
diariamente, com liberdade, confrontando-nos com todas as
vicissitudes da história e do humano. Toda a “vida escondida
com Cristo em Deus” (Col 3,3) deve ser vivida dia-a-dia.
Existe uma
continuidade de desabrochamento entre a vida escondida em Cristo de
agora e a vida na glória da ressurreição, apesar da
descontinuidade e ruptura entre ambas. (Cf.Carta sobre algumas
questões referentes à escatologia, da Congregação para a Doutrina
da Fé, 17/05/1979; Cf. C.Spicq, Lês chrétiens vivent em citoyens
du ciel, em TMNT, T I, p.417-432)
Descendo
das alturas da contemplação, em Colossenses (3, 1-17), Paulo mostra
como, mesmo vivendo a vida escondida com Cristo em Deus (3,3), ao
mesmo tempo temos de fazer morrer o que em nós não é de Deus, as
coisas do homem velho (3,9), as coisas da terra e, vivendo na lógica
de cidadãos do céu, em comunhão com o Cristo Senhor,
renovando-nos, continuamente, como homens novos (Cf.3,10). A vida do
cidadão do céu, do alto, praticamente é descrita assim: “Visto
que sois eleitos, santificados, amados por Deus, revesti-vos dos
sentimentos de compaixão, benevolência, humildade, doçura,
paciência. Suportai-vos uns aos outros, e se alguém tiver motivo de
queixa contra o outro, perdoai-vos mutuamente; assim como o Senhor
vos perdoou, fazei o mesmo, também vós. E, acima de tudo,
revesti-vos do amor: é o vínculo perfeito. Reine em vossos corações
a paz de Cristo, à qual fostes chamados em um só corpo. Vivei na
gratidão. Que a palavra de Cristo habite entre vós em toda a sua
riqueza: instrui-vos e adverti-vos uns aos outros com plena
sabedoria; cantai a Deus, em vossos corações, a vossa gratidão,
com salmos, hinos e cânticos inspirados pelo Espírito. Tudo o que
podeis dizer ou fazer, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando graças,
por ele, a Deus Pai” (Col 3, 12-17).
O problema
existencial, a mística cristã consiste em historicizar a nossa vida
escondida com Cristo em Deus, numa caminhada terrena de abertura para
o céu, a nossa pátria, fazendo passos firmes de “amor, vinculo
da perfeição” (Com 3,3).
Conclusão
A modo de
conclusão, notamos como ser cidadão do céu não aliena nem afasta
nunca o cristão da realidade crua, às vezes, dura, da terra, dos
irmãos da terra, do mundo de aqui em baixo.
Cidadãos
do céu sonham realizar um mundo com o perfume do céu, da sua
beleza, da sua paz, do seu amor, do seu Deus, do seu Senhor.
A vida
contemplativa é profecia que proclama que toda realidade carrega uma
dimensão de céu.
Nossas
comunidades, nossos mosteiros, nossos eremitérios são testemunhas
do céu, buscam uma pequena parte da vida de céu, já aqui na terra,
sonham ser verdadeiros cidadãos do céu.
Sugestões
para a reflexão
1.Quais
os sinais que o consagrado, a comunidade, podem dar para que o mundo
perceba o céu que nos habita.
2.Que
ferramentas utilizar para fazer crescer a fé que percebe a vida
escondida com Cristo em Deus.
Aparecida,
16/06/2012
D.
Paulo A. M. Roxo, opraem
Bispo
emérito de Mogi das Cruzes-SP
Contemplação Sapiencial dos Sinais dos Tempos
1. INTRODUÇÃO
Para compor um olhar sobre a realidade vivida em nossos claustros
hoje, e considerar diretamente os sinais vivos, pedi uma colaboração
a algumas comunidades, aos irmãos e irmãs. As perguntas são
semelhantes às estudadas em nosso plenário ontem. Suas respostas, e
agradeço aos que se prontificaram a respondê-las, ajudaram-me a
refletir e enriquecem este texto.
Gostaria de começar lembrando uma visão e leitura de um grande
sinal, bem recuadas no tempo, mas ligadas a nós pelo seu caráter
paradigmático: trata-se da experiência culminante de S. Bento,
relatada por Gregório Magno, seu biógrafo, no II Livro dos
Diálogos.1
Estamos no final de sua vida. O abade, mais que tudo monge, segundo
seu costume, antecipava as vigílias em oração na torre. Era noite.
Bento perscrutava com fé e esperança inabaláveis a escuridão da
noite e dos tempos. De repente, diz S. Gregório: “viu uma luz
que se difundia do alto e dissipava as trevas da noite, brilhando com
tal esplendor, que, apesar de raiar nas trevas, superava o dia em
claridade.(...) Seguiu-se uma coisa admirável (...) o mundo inteiro
lhe apareceu ante os olhos, como que concentrado num raio de sol”.
Que mundo ele perscrutava e que mundo surge revelado aos olhos de S.
Bento? O paradoxo de um mundo em muitos aspectos semelhante ao nosso,
enquanto tempo de mudanças drásticas. Lembremos a passagem da
Antiguidade para a Idade Média, a conturbada mudança de época, a
invasão de novas culturas derrubando a antiga tábua de valores.
Mas ao mesmo tempo, um mundo iluminado, a outra face da mesma moeda,
que fazia parte da sua visão do cimo da torre, e advinha de sua
capacidade de contemplar de forma sapiencial os sinais do tempo, do
seu tempo. O grande santo era capaz de enxergar os acontecimentos, as
grandes mudanças, à luz de um Deus Criador, que nunca deixa de
lançar luz sobre a obra de Suas mãos.
Homens e mulheres, iniciadores das famílias monásticas e
contemplativas, têm tido em comum com São Bento a capacidade de ler
de forma sapiencial a realidade e responder aos seus desafios, não
tanto com teorias, mas com gestos concretos. Também eles souberam
ler os acontecimentos de seu tempo à luz de Deus.
Nas muitas “noites” de hoje, nossas comunidades são convidadas a
testemunhar sempre de novo que nossa Pátria é o céu, que de lá
esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo,2
Luz que incide sobre nosso mundo em todas as suas faces. Bento,
Teresa de Ávila, Beatriz da Silva, e muitos outros, levados por essa
consciência de viverem os desafios dos tempos, sinalizaram novas
perspectivas pelo ser e agir.
Eles, não apenas olharam para o céu, mas captaram o dinamismo de
Deus, que acompanha as mudanças de sua Criação e construíram
nesta terra formas de vida que desejam garantir o foco na direção
certa: a volta à Pátria de origem.
São muitas as vozes que se levantam e pedem fidelidade ao carisma de
uma vida monacal sem ritualismo, formalismo ou modismo, diante de
desafios vindos da sociedade, como são a crescente violência, a
desumanização, uma fraca e ilusória qualidade de vida familiar, a
corrupção e a desestruturação das pessoas. Outros graves desafios
confrontam de dentro a própria Igreja, como as tendências de um
espiritualismo desencarnado, de um conservadorismo que busca a falsa
segurança, de uma veia autoritária capaz de torná-la conservadora,
autoritária, menos ecumênica e missionária.
A FECUNDIDADE E A ALEGRIA DA BUSCA DE DEUS- UMA IDENTIDADE CLARA
A
primeira contemplação dos sinais dos tempos, hoje, leva à
constatação de que o Espírito de Deus move pessoas em todos os
continentes e culturas a seguir o Senhor na vida monástica e
contemplativa, seja em suas mais antigas tradições, seja em formas
novas.
O documentário feito pela televisão católica em comemoração ao
jubileu de ouro da AIM, Aliança Inter Monástica, em novembro de
2011 mostra quatro comunidades ao redor do mundo. Segundo seu
presidente, Padre Martin Neyt OSB, há cinquenta anos, o mundo
monástico que segue a Regra de S. Bento, contava com uma quinzena de
mosteiros nos continentes africano e asiático. Hoje, contam-se mais
de 450 novas comunidades ao redor do mundo. Outras famílias
religiosas poderão dizer o mesmo. Há novos mosteiros em todos os
continentes, inclusive na própria Europa.3
Sem alarde, mesmo em meio a tantos desafios, a busca de Deus como
aquele absoluto pessoal, continua viva no coração da humanidade
e nada consegue abafá-la.
Na
África, na Guinè Konakri, o Mosteiro focalizado, nas palavras de
seu prior, apresenta a comunidade contemplativa como conforto para o
povo sofrido e pobre. Oferece-lhe a esperança de uma Presença
Salvadora, na sua própria presença, na simplicidade da abordagem
religiosa, na liturgia, em sinais simples, mas alentadores, no canto
expressivo. Também ensinam como fazer o solo produzir, como proceder
à partilha da água e dos produtos da terra.
Outra
comunidade vive o diálogo inter-religioso no Vietnam, pelo respeito
mútuo entre cristãos e budistas, em uma sociedade comunista.
Impressionante aí o número de vocações.
Na
Índia, a comunidade assume o rosto local, seja na celebração da
Liturgia siro-malabar, seja nas vestes, refeição, forma de vida que
o mestre chama de abraçar a natureza, valor maior de sua cultura,
abraçando igualmente as riquezas da fé do oriente e ocidente.
Grandes sinais!
Uma exigência moral de dedicação absoluta, gera os seguidores de
Deus. Para estes, “A maior alegria, a luz,
é, O SER CONSAGRADO, e ter RESPONDIDO, com o
auxílio da graça, à vocação tão especial”.
Os testemunhos se multiplicam e se elevam da boca de jovens e idosos,
do fervor noviço à fidelidade provada. Eles falam de
“sempre encontrar novas formas de alegrar o coração no serviço
do Senhor”; falam da “liberdade de viver os acontecimentos
de cada dia com confiança, abandono e ação de graças”;
revelam que não há “nada melhor do que saber-se “guardado”
em nome do próprio Deus”; falam da alegria de estar “na
Casa de Deus, no seu regaço. Isso não impede luzes e sombras, mas,
diz a voz: “Ele está comigo, ao meu lado”; outra diz da
“alegria no exercício da maternidade espiritual”.
No entanto os desafios estão presentes. Há quem pense que nossos
mosteiros perdem o foco, a mística, o carisma, a
identidade e o diálogo com a época em que vivemos é alvo de
preocupação contínua. Outra preocupação é considerar se vivemos
a dimensão profética que anuncia e denuncia pela própria vida. Por
que um ideal tão belo conta hoje com
menos adesões? É fato de que,
apesar do aumento de comunidades, “a
diminuição das vocações é sentida,
bem como a perseverança”.
Como conciliar as coisas boas que o mundo oferece (damos como
exemplo a facilidade dos meios de comunicação) com uma vida de
"afastamento" do mundo?
Padre Márcio Fabri observa em análise a uma sondagem semelhante à
nossa, feita em preparação ao Seminário de Superiores Maiores em
fevereiro deste ano em Itaici, o perigo de uma leitura negativa da
cultura atual. Tal leitura acentua influxos contrários à vida
consagrada e fecha possibilidades abertas pelos benefícios e
recursos que essa cultura traz e incide sobre o modo de avaliar e
acolher as novas vocações. Sem desconhecer as presentes condições
culturais que pedem respostas criativas, Márcio Fabri proclama um
futuro para a vida religiosa consagrada. Trata-se de um ato de fé no
Espírito de Deus que não será derrotado pelos novos tempos. Na
verdade, o Espírito de Deus agiu em todos os tempos, ele próprio é
o agente renovador. O Ano da Fé anunciado pelo Santo Padre
convida-nos a “repassar a história de nossa fé, ver o mistério
insondável da santidade entrelaçada com o pecado, a grande
contribuição de homens e mulheres para o crescimento e o progresso
da comunidade humana.”4
Nossa época pede ou mesmo exige que olhemos as mudanças sob a ótica
de novas oportunidades, como um “convite... que permite perceber
com um olhar sempre novo, as maravilhas que Deus realiza por nós.”
5
O GRANDE SINAL DA LITURGIA E A VIDA DE ORAÇÃO
O Louvor Divino continua a ser um grande sinal. É uma missão
recebida, e renovada com fé, especialmente ao encontrarmo-nos no
mais das vezes sós. Não é todos o dias que há pessoas na igreja
monástica. No entanto, sua presença em nossas igrejas é um forte
incentivo a perseverar no Louvor Divino, onde todos os sentimentos
humanos ressoam. Espelho da experiência do próprio orante e de toda
humanidade contida no EU dos salmos, voz do Cristo total. No
exercício do Louvor, as intenções do mundo sobem a Deus, expressam
as inquietações e toda espécie de intenções que o mundo entrega
confiante às comunidades orantes. Trata-se de poder servir a Igreja
de Deus pela vida de renúncia e oração, no mundo, pelo mundo. O
louvor cotidiano marca o ritmo da comunidade e, por vezes, também o
do seu entorno, nem que seja apenas pelo toque dos sinos.
A comunidade monástica e contemplativa celebra sua fé e assim a
alimenta e a testemunha. Liturgia e Lectio Divina constituem o
alimento forte. “A grande alegria é participar ativamente da
liturgia como "voz da Igreja", cumprindo o que nos
foi pedido no dia de nossa consagração: "Intercede pela
salvação do mundo", diz uma monja. “Como Maria
Madalena, busca-se ter uma experiência com o Ressuscitado no
jardim da liturgia celebrada sete vezes ao dia e na Lectio Divina.”
No fervor que continua a viver do alto dos seus
93 anos, resume outra monja: “Poder
louvar a Deus juntas na simplicidade do cotidiano e do ordinário”
ou na alegria compartilhada na “Importância das festas, grandes ou
comuns, celebradas e vividas juntas.”
Neste processo, a salmodia diurna pede disciplina, ascese, que
fortalecem a conversão, isto é, “o desejo de obter um coração
puro e unificado, para crescer no conhecimento de Jesus Cristo e ser
um com Ele.” A Liturgia das Horas, ou Ofício Divino continua a ser
o grande campo do trabalho da Palavra de Deus mais afiada que uma
espada, que noite e dia age no coração dos que oram.
Um questionamento feito, alerta para o perigo das
Liturgias-show ao invés da celebração em que todos são
protagonistas. Ainda que o silêncio seja uma importante forma de
entrar em comunhão, a hospitalidade litúrgica pede atenção das
comunidades, seja pela disposição do espaço sagrado, seja no
proporcionar a participação ativa dos fiéis presentes.
O GRANDE SINAL DA VIDA COMUNITÁRIA
A Igreja em Aparecida, no V CELAM, proclama que a vida consagrada é
chamada a ser especialista em comunhão, no interior tanto da Igreja
quanto da sociedade.(...) 6.
Nos depoimentos recolhidos é clara a importância da vida
comunitária, da comunhão. Há um forte vocabulário de
pertença. Por um lado, a comunidade aparece como garantia, guarda da
vida diária que compõe o tecido de uma comunidade contemplativa.
Importante a capacidade de reconhecer os dons que temos para
responder a novas situações, como na história da Salvação, onde
a certeza de que Deus está conosco em todas as situações que se
sucedam, permite caminhar de claridade em claridade.
Alguns depoimentos: “... estar aqui agora e pertencer a esta
comunidade.”; “Viver com pessoas que tem o mesmo ideal é
gratificante, apesar das diferenças.”; “partilhar nossas vidas,
angústias, alegrias preocupações e esperanças uns com os outros.”
Unanimidade em considerar a
vida fraterna fonte de grande alegria, lugar de aprendizado, (...)
tendo por centro o próprio Cristo.
Notam ainda o “testemunho das mais
anciãs na vida monástica.” Ao
mesmo tempo, sente-se o desafio de “Como
viver bem e na verdade da caridade a vida fraterna?”;
“vejo minha comunidade como as paredes de uma casa, uma muralha
protetora ao meu redor (...) a experiência do amor e do perdão
praticado setenta vezes sete vezes ao dia.”. No
entanto, nem tudo são flores... e os conflitos de gerações e falta
de diálogo, são também mencionados: “Que
o jovem saiba acolher o tesouro da tradição monástica, vivida e
transmitida pelos mais velhos, mas que se sintam amados e que possam
também contribuir com a “boa novidade” que trazem consigo“.
O Abade Primaz da Ordem de S. Bento, ao dirigir-se no ano passado
à Congregação Beneditina do Brasil, pelo centenário da chegada
das monjas ao país aponta que: ‘Viver em verdadeira comunhão
dentro da comunidade será a meta, pois é possível viver
lado a lado, mas não unidos. Nós podemos viver como colegas, mas
isto não nos faz, irmãos e irmãs.” 7.
A Igreja Latino-Americana aqui reunida em 2007, falou desta mesma
realidade. Lembremos: “Num continente onde se manifestam sérias
tendências de secularização, também na vida consagrada, os
religiosos são chamados a dar testemunho da absoluta primazia de
Deus e de seu Reino, em uma vida discipular, apaixonada por
Jesus-caminho ao Pai misericordioso, e por isso, de caráter
profundamente místico e comunitário, (...) radicalmente profética,
capaz de mostrar à luz de Cristo as sombras do mundo atual e os
caminhos de uma vida nova”.8
Seu papel hoje é mais exigente, aponta um monge, diante do
fenômeno de pentecostalismo na Igreja Católica,
ressaltando algumas características a seu ver, que nos desafiam:
novo elitismo, subjetivismo, busca de milagres, consolo, ao invés de
compromisso. Comunidades da vida por vezes mais apoiadas pelos
bispos do que as formas históricas da Vida Religiosa Consagrada.
AS UNIÕES DAS FAMILIAS MONÁSTICAS E CONTEMPLATIVAS.
Outra constatação saborosa é ver-nos reunidos com a Virgem
Aparecida como pólo centralizador. Dar continuidade aos primeiros
movimentos de congregar as famílias contemplativas e monásticas do
Brasil na Abadia de N. Sra. das Graças em Belo Horizonte nos anos
60. Temos entre nós testemunhas destes tempos. Naquela época
tratava-se de aproximar as comunidades e responder aos apelos do
pós-Concílio, com especial atenção à formação. Os primeiros
passos foram vistos com grande desconfiança por parte da Santa Sé.
Lembro-me bem de dois momentos, durante os encontros nacionais em
Belo Horizonte, da visita de dois enviados pelo Vaticano para ver o
que se passava com aquela centena de contemplativas reunidas. O medo
da contaminação, da perda da identidade própria lançava sérias
dúvidas da validade da iniciativa corajosa da Madre Luzia Ribeiro de
Oliveira OSB, responsável por estes encontros, em colaboração com
a CRB Nacional. Muito caminho foi percorrido desde então. O
documento Verbi Sponsa encoraja ajuda mútua das famílias
contemplativas e monásticas9.
Embora o documento mencione encontros dentro das mesmas famílias
religiosas, este encontro inter-congregacional acontece com o total
apoio da Santa Sé, como fica evidente pela presença do Prefeito da
Sagrada Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as
Sociedades de Vida Apostólica, o apoio dado por esta Congregação,
bem como por nossa Conferência Episcopal.
Hoje as famílias religiosas encontram-se organizadas em federações
ou em outras formas, como também a nível inter-congregacional e é
notável o progresso quanto à formação, sendo o PROFOCO uma
importante ferramenta. Seu novo perfil é objeto de interesse de
todos nós. Uma preocupação expressa “é
a formação para a vida monástica, considerando as fragilidades da
juventude de hoje e de um mundo que sempre nos questiona.” Tal
formação apresenta uma dupla necessidade: ser uma formação
aprimorada, para dialogar com o mundo contemporâneo e quanto ao
trabalho, ter uma formação de qualidade profissional, diante da
necessidade de boa organização e métodos adequados, segundo o já
citado Padre Martin Neyt.10.
Aqui neste encontro contemplamos coisas novas. Além das novas
comunidades presentes pela primeira vez, estamos juntos, comunidades
contemplativas, femininas e masculinas. Há a presença de alguns
leigos, representantes dos muitos outros que vivem o espírito de
famílias religiosas monásticas e contemplativas dentro de sua
realidade secular. Este grupo presente entre nós sinaliza que nossa
missão não depende tanto do número de membros de nossas
comunidades, mas de sua forma de ser e estar no mundo. A presença de
leigos expande para além de nossas clausuras o testemunho da busca
de Deus, cria uma complementação a diversos níveis, dá-nos uma
dimensão nova e revela a fecundidade espiritual de nossos carismas
diversos na construção de uma sociedade permeada pelos valores
evangélicos. Damos e recebemos. Estaremos abertos a esta nova forma
de existir? Permitimos que a comunidade circundante complemente-nos,
inspire-nos e nos provoque? Trata-se de entrar em uma dinâmica de
partilha, na consciência de que nada é dado só para nós, mas,
sim, para colocar a serviço do Reino. Maria, na Visitação, é
eloqüente! Dá de sua pobreza, desloca-se, corre a servir.
Necessário se faz desenvolver uma teologia do serviço, tanto dentro
das comunidades como entre as comunidades e entre a comunidade
ampliada que nos circunda e que hoje pode ser muito ampla.11
Certamente podemos citar muitos exemplos que animam e edificam nesta
direção.
A abertura para a acolhida dos hóspedes é
vista como parte integrante desta vida, como forma de
evangelização, que leva a um encontro
consigo mesmo, com os outros e com Deus. No entanto
para muitas comunidades, em especial, as masculinas, é grande o
desafio da integração das atividades pastorais intra e
extra-claustro. A vida pastoral consume o tempo e energias em
detrimento da vida interna.
O Abade Primaz Notker Wolf apontou ainda alguns aspectos essenciais
para uma continuidade manter fecunda nossa tradição secular: “Aonde
o Evangelho não é vivido, a vida monástica é superficial.
Segurança, serenidade e um estilo de vida fácil com pouca
atividade, não podem ser identificados com Vida Contemplativa. O
Evangelho nunca prometeu conforto ou privilégios.” Mostrou
ainda a urgência de viver o Evangelho com simplicidade e
humildade, no nosso cotidiano, em todo o nosso comportamento.
Preguiça, um estilo de vida fácil e confortável, não são parte
da vivência monástica. Gratidão, responsabilidade, zelo recíproco
um pelo outro, o são”. 12
Aqui temos um vocabulário denso de espiritualidade, busca que
desafia o contexto de nossa sociedade consumista e pragmática, que,
no entanto, não consegue sufocar a busca de Deus que atravessa todos
os tempos, inclusive o nosso. Poderia se questionar esta busca,
quanto a um conteúdo de proteção, abrigo aos desafios do mundo
moderno. Cabe a cada qual averiguar a nota mais ou menos positiva do
que se chama a “fuga mundi”, que tanto já tem sido discutida. No
entanto, ela é inerente à vocação monástica e contemplativa:
“fazer-se alheio ás coisas do mundo”, não só mundo oposto aos
planos de Deus, mas também mundo enquanto o contexto normal da vida
humana. O cristão tocado por Deus com a vocação monástica
contemplativa, opta por um contexto diferente da vida normal,
secular. Mas toda vocação traz algo parecido. Pense-se nos
sacrifícios de uma vocação à medicina, a tantas profissões que
envolvem abraçar contextos. Os chamados ossos do ofício. Nós temos
os nossos. Algumas das pessoas desta enquete mencionam, como
desafios, exatamente o assumir este contexto próprio.
Todos sabemos que para nossos pais na vida monástica, a Regra era o
Evangelho. Bento, no Prólogo da Regra, pede que a fé nos “cinja e
que guiados pelo Evangelho trilhemos os seus caminhos.”13
Este desejo continua sendo expresso, por jovens: Os monges e
monjas de nosso tempo, de nosso país, precisam retornar às fontes
da Tradição, aos exemplos dos Pais, e, sobretudo, ao Evangelho.
Enquanto uns apontam a falta de vocações, outros se alegram com a
chegada de novos membros. De um modo ou de outro, há dificuldade na
estruturação de uma Pastoral Vocacional para atingir as novas
gerações que batem ou não a nossas portas. Falta incentivo e apoio
à vida consagrada, especialmente aos candidatos à vida
contemplativa, seja por parte das famílias, hoje muito
desestruturadas, seja até por parte dos agentes de pastoral.
Necessidade também de atenção às “novas portas” freqüentadas
pelos jovens, perceber os avanços da informática e suas
possibilidades.. No entanto, o Documento de Aparecida afirma que os
religiosos “colaboram com a gestação de uma nova geração de
cristãos discípulos e missionários e de uma sociedade onde se
respeite a justiça e a dignidade da pessoa humana”, e fazem
menção explícita à vida contemplativa enquanto “testemunha
de que somente Deus basta para preencher a vida de sentido e de
alegria” e que “infundam com sua oração um novo sopro de
vida...”14
..
Necessário
desenvolver programas formativos eficazes e adequados ao ritmo da
vida claustral, partindo do discernimento vocacional, atenção a
todos as etapas da formação inclusive a permanente e a formação
de novas lideranças. Desafio pode ser “uma escolaridade muitas
vezes deficiente, pouco interesse pela leitura, pelo estudo e pela
arte”, obstáculos enfrentados, na voz de uma relatora, com a
consequente competição.
TRABALHO
Os
entrevistados apontam igualmente a inadequação de muitos de nossos
trabalhos rentáveis. Embora alguns falem de conquistas neste campo,
continua viva a preocupação com o sustento e a subsistência do
Mosteiro, e, mais uma vez, a capacitação para enfrentar o mercado
de trabalho. Há grande tensão devida ao esforço para atingir esta
meta sem cair no ativismo que põe em risco o ritmo próprio do
claustro.
Refletindo sobre os diversos testemunhos, pode-se observar que uma
mesma realidade é objeto de alegria e de desafio. De modo especial
ressaltam os aspectos místicos, o conteúdo da vocação com forte
acento espiritual, a vida comunitária, a forma de comunicação com
o mundo, a chegada ou a falta de novos membros e o desafio de sua
formação, perseverança e desenvolvimento. Creio poder afirmar que
para nosso estilo de vida, a identidade não constitui tanto uma
preocupação. Ela é clara. O modo de vivê-la e adequá-la ao tempo
e lugar, sim, constituem o desafio. As comunidades monásticas e
contemplativas continuam a atravessar os tempo. São sinais
silenciosos, não fazem em geral grande alarde, mas estão aí.
Gostaria de voltar ao testemunho da comunidade trapista do Atlas, na
Argélia, que contou com sete monges mártires em 1996, colocado em
foco universal pelo filme premiado no festival de Cannes em 2010, “De
Homens e Deuses”. Com grande arte, focalizaram-se os valores
monásticos, a vivência fiel da oração coral e pessoal, da vida
comunitária, em especial a relação de profundo respeito e comunhão
dos monges entre si e com os vizinhos, a busca em comum e pessoal da
vontade de Deus em circunstâncias dramáticas, o trabalho, seja
intelectual, manual ou de assistência aos mais necessitados. Este
conjunto faz desta comunidade um sinal dos mais eloqüentes dos
nossos tempos, selado com a entrega até o martírio. Viveram o
desejo expresso por outro de nossos interlocutores: “ser útil às
pessoas permitindo-lhes viver melhor a vida humana e cristã,
proporcionar o encontrar-se com o Cristo, contribuir da melhor
maneira na realização do plano de Deus”, no caso, dentro do
espírito do diálogo inter-religioso.
Mais uma vez citamos o documento do V CELAM: “Os povos latinos ...
esperam muito da vida consagrada, especialmente do testemunho e
contribuição das religiosas contemplativas (... ) que mostram o
rosto materno da Igreja. (...) seu testemunho dos valores
alternativos do Reino, mostram que uma nova sociedade (...) fundada
em Cristo, é possível.”- 15
Sem pretensões, dentro da Igreja e da sociedade, no dizer de um
jovem entusiasmado com sua vocação: “Pelo nosso modo de viver
a vida cristã, somos responsáveis por manter sempre acesa a lâmpada
da nossa vida escondida com Jesus Cristo em Deus, para que brilhe
como profecia de novos céus e uma nova terra, e dizer a todos “o
meu Senhor está vivo”.
Vera
Lúcia Parreiras Horta OSB
Mosteiro
do Salvador – Salvador- Bahia
1
GREGÓRIO MAGNO, Livro dos Diálogos II, Ed. Lumen Christi,
RJ, 1996, pág. 90-93.
2
cf. Fl. 3, 20-21.
3
cf. NEYT, MARTIN, in “Si Loin, si Proche”, documentário da
KTOTV: http://www.ktotv.com/videos-
chretiennes/emissions/nouveautes/documentaire-si-loin,-si-proche.../00055496
4
cf. BENTO XVI, Porta Fidei, Ed, Paulinas, SP, 2011, pág. 18.
5
idem, pág. 23.
6
cf. DA 218.
7
WOLF, NOTKER, Conferência pelo Centenário da chegada das Monjas
da Congregação Beneditina do Brasil, pro manuscrito,
SP, 2011.
8
cf. DA 219-220.
9
cf. VS, 19.
10
ibidem.
11
Muitas destas reflexões derivam dos encontros do GRAM, Grupo de
Reflexão de Administração Monástica, no âmbito da CIMBRA,
Conferência de Intercâmbio Monástico do Brasil, criado há dois
anos e de seus assessores, inclusive leigos.
12
ibidem.
13
RB Pról. 21.
14
DA 217,221.
15
DA 224.
Missão da Vida Religiosa Monástica e Contemplativa
Frei Josaphat
A missão da vida
consagrada, em seu elã contemplativo e sua radicalidade monástica é
afirmar, manter e difundir o essencial do Evangelho, acolher a
plenitude do plano divino, fazendo-a presente, ativa e fecunda no
hoje da Igreja e do mundo. Na pregação de Jesus, preparada pelos
Profetas e prolongada pelos Apóstolos, há uma primeira insistência
sobre essa plenitude do dom da revelação e da graça como sendo a
realização acabada do amor perfeito de Deus. Deus é definido como
o Amor, e a epifania do Amor é o dom que ele faz de si mesmo, para
suscitar uma torrente de doações de um puro amor gratuito.
Assim, a Nova
Aliança é o dom pleno e total do amor infinito e universal de Deus.
Mas, o amor tem sua pedagogia para se fazer acolher como merece.
Jesus começa pregando o Evangelho, a alegre notícia de que o Reino
de Deus chegou e pede a conversão total, a vida completamente mudada
e doada de todo coração. Ela se torna contemplação assumindo toda
a capacidade e toda a perfeição do conhecer, culminando em um amor
que envolve tudo, todo o ser e todo o agir, fazendo da vida uma
“chama viva”, sem deixar nada fora do incêndio que vai do tempo
à eternidade. A vida cristã, a vida em Cristo, a vida iluminada e
animada pelo Espírito de amor e comunhão, essa vida evangélica
tende a realizar-se como uma incandescência mística, como uma união
direta, imediata, com Deus. Está aí o mistério altíssimo e suave
que a vida consagrada, contemplativa, monástica tem a missão de
viver e fazer resplandecer por seu testemunho de ternura e de
ruptura. Pois, a intimidade do amor exige o desapego total.
Em uma simples
meditação vamos evocar como essa mensagem é o essencial do
Evangelho. Foi renovada e atualizada com insistência por Vaticano
II, e emerge qual grande desafio da Igreja diante e dentro do mundo
atual. Mas antes, em pequeno prólogo que visa concretizar uma
linguagem por vezes um tanto abstrata, vou dar-lhes uma amostra
singela de como em minha juventude fui envolvido pelo encanto da vida
contemplativa do Monte Carmelo, o que, no entanto, me levou, a ser
apenas um simples frade pregador dominicano.
O que
significou uma comunidade de contemplativas na vizinhança do
seminário de formação clerical.
A minha adolescência
foi marcada por uma crise. De uma hora para outra, a Igreja me
pareceu medíocre de mais e para meu idealismo renitente não
mereceria ser tida e chamada Igreja de Cristo. Depois de uns meses de
decepções, meus formadores achando sempre minhas dúvidas um feixe
de baboseiras, enfim optei por ser padre e trabalhar pela renovação
da Igreja, para que ela seja uma esposa bonita, sem ruga e sem
mancha, em sua união matrimonial com o Verbo encarnado. Faço o
noviciado e começo os estudos superiores com os padres lazaristas.
E então um grupo de
seminaristas descobriu um Carmelo do outro lado da rua, da Avenida
Rio Branco da cidade de Petrópolis. E soubemos que naquele Carmelo
havia um capelão, o Padre João Gualberto do Amaral, que era um
grande sábio, que havia refutado o positivismo agressivo de Ferri e
pregava debulhando João da Cruz para as irmãs e uns poucos ouvintes
do povo. Todo domingo lá estávamos, uma meia dúzia de
seminaristas, escutando o capelão e depois indo ao parlatório para
ouvir explicações de uma irmã invisível, mas que era uma
maravilha. Era Irmã Maria Amada. Ela trocava em miúdos para nós as
veredas da Subida do Monte Carmelo, as belezas e as exigências da
Viva Chama, para nós simples títulos de dois livros que nós
tínhamos em casa e líamos com muito trabalho.
E um belo dia
descobri o trilho que procurei seguir pela vida afora e de que lhes
tento fazer uma pequena síntese. Para fazer algo pela Igreja temos
que começar por optar pela contemplação que purifique e transforme
a vida em uma concha que seja de puro amor; Neste momento em que
estou confiando esses dados ao computador tenho diante de mim a
imagem de João da Cruz e o poema Noche
Oscura,
a Noite Escura, que jamais me abandona.
O Evangelho,
primeiro manual da contemplação mística.
Em um só versículo,
o Evangelho de João condensa a verdade divina e a verdade humana que
a Nova Aliança realiza em plenitude. Jesus declara que com sua
pregação e sua presença se cumpre a promessa de “todos os
profetas”. Eles predisseram que na época da benção definitiva
“todos serão teodidatas” (Jo 6, 45). Nos últimos tempos, na
Nova e Eterna Aliança, todos serão discípulos imediatos e
exclusivos de Deus, E tudo está na docilidade pronta e total, à
luz, à presença e à ação íntima de Deus no intimo de cada um.
Todo ensino
evangélico dado em palavras, imagens e experiências bem humanas,
será útil realizando a pedagogia do Mestre, mas precisamente na
medida em que encaminhar e dispuser à escuta direta de Deus. E em
todo esse longo debate, que vem a ser Jo 5-12, Jesus insiste em uma
ladainha exigente e compassiva: Vocês não podem me escutar e
acolher minhas palavras porque vocês não são de Deus, não tem
afinidade com a verdade e a santidade de Deus. Alargando esse dado
fundamental do IV Evangelho, reconhecemos que João nos abre a porta
para penetrar a realidade, para nos confrontar com a finalidade
última e perfeita a que nos conduz a Nova Aliança.
Quando cada um de
nós se pergunta em que consiste finalmente o Reino de Deus,
inaugurado pela pregação de nosso Mestre divino, obtém as resposta
nos grandes e derradeiros escritos do NT Eles são frutos e
testemunhos dessa Pregação de Jesus e da contemplação do Mistério
da Verdade total a que o Espírito de Amor conduziu a comunidade
apostólica. Então o Reino dos céus culmina e se realiza completa e
plenamente no dom e na acolhida da Comunhão Trinitária. Essa
Comunhão de vida e de amor se inaugura quando o Espírito do Pai e
do Filho vem posar sobre cada um dos fiéis em comunhão, em comunhão
de intimidades. E o Espírito passa a habitar, a permanecer,
transformando em templo vivo e divino cada um e toda a comunidade dos
fiéis.
A comunidade e cada
um de seus membros, por palavra e mais ainda pela vida, darão o
testemunho de Deus Amor, falando do que eles são, do que vivem, e em
que convivem, pois são filhos e filhas adotados por amor e gerados
pela graça transformadora do Deus Amor, de Deus amoroso e amado. A
comunhão dos santos se constitui então à imagem e por participação
da Comunhão da Trindade Divina; É a dimensão íntima da aliança.
Para além do aspecto institucional, que perdura na Igreja enquanto
sociedade, ela resplandece como a noite da união conjugal e
transformadora. É a noite cantada por S. João da Cruz (a qual era
explicada com muito gosto por Irmã Maria Amada):
Ó noite que
guiaste,
Ó noite mais
amável que a alvorada.
Ó Noite que
juntaste
Amado com Amada,
A amada no amado
transformada.
Um simples reparo no
que há de profundo nessa mensagem bíblica fundamental de que vive a
Igreja e muito especialmente constitui a opção prioritária das
pessoas e comunidades consagradas. No alto da Montanha, no pico
supremo de perfeição a que conduz o Evangelho, essa Noite escura e
venturosa introduz os contemplativos e as contemplativas em duas
vertentes, abrindo-lhes os olhos da inteligência e do coração a
duas verdades estreitamente conexas. A primeira, absolutamente
primeira, é a Comunhão de vida, de conhecimento e amor, que vem a
ser o abraço eterno do Pai, do Filho e do Espírito na intimidade e
no esplendor da glória. E a segunda verdade que decorre da primeira,
qual dom da graça, que é a glória acolhida e vivida dentro da
noite, essa segunda verdade é a participação que nos é dada da
Comunhão trinitária em uma comunhão amorosa e contemplativa da Fé,
da Esperança e da Caridade.
Aqui emerge e se
define a originalidade da missão da vida consagrada, em sua
densidade contemplativa e em sua exclusividade monástica. Ela
consistirá precisamente nesse elã abrasador sempre crescente e no
projeto de vivência e convivência para que este essencial do
Evangelho, a comunhão do Pai, do Filho e do Espírito refulja como
um incêndio que se acende e cresce pela fé, a esperança e a
caridade. Como se insiste na necessidade de bem respirar, insistamos:
nossa união
à Trindade,
ao Pai pelo Filho no Espírito Santo, acolhida, contemplada, amada na
trilogia da atividade teologal, da Fé, Esperança e Caridade, eis o
que constitui o centro e a fonte da vida autêntica para toda a
Igreja. A missão da vida consagrada, contemplativa e monástica
consiste em manter presente e atuante esse núcleo fundador ou essa
fonte de vida no coração da Igreja, destinada a jorrar para o
mundo. A prioridade dada, efetiva e constantemente, a este elemento
primordial do Evangelho é, portanto, a característica dessa vida
consagrada. É a originalidade singular que a inspira e guia na sua
organização, em seu estilo concreto de vida, em sintonia com o
momento histórico vivido pelo povo de Deus;
Vaticano II. A
Igreja se vê e define como a comunidade mística de santos e santos.
Vaticano II é um
concílio eclesiológico, não eclesiocêntrico, mas verdadeiramente
teocêntrico, a começar por sua compreensão da Igreja. É o que se
manifesta em suas opções de base, marca seus documentos mais
típicos, inspira e orienta suas grandes teses, e, sobretudo, o que
anima o desenrolar de seu projeto histórico e da sua busca de um
paradigma eclesial, o mais evangélico e o mais humano e atual.
Vaticano II surge e caminha como um carisma envolvendo toda a Igreja,
brotando de um feixe de carismas pessoais e comunitários.
É dessa docilidade
crescente ao Espírito Santo que surge e toma consistência o
paradigma da Igreja, inspirado pela opção de Deus Amor universal.
Vaticano II guarda e acentua uma fidelidade aos concílios
anteriores, à grande tradição da Igreja. Mas ele emerge como
singularmente original porque não visa expor doutrinas ou menos
ainda condenar erros, mas tem uma orientação que se qualifica de
pastoral, mas é na verdade teologal. É uma atitude espiritual
abrindo-se à mística. Ela dá gosto e ativa a preocupação de
contemplar Deus se dando e se revelando na Igreja, a mediadora
escolhida para confidenciar ao mundo que Deus lhe tem um amor
infinito. E, então, também a Igreja vai sendo contemplada e amada
em sua vida interna e sua relação com o mundo, com a humanidade,
considerada em sua vocação e sua situação de acolher Deus, mas
com o risco de o relegar no bulício das religiões e das
superstições...
Para um primeiro
contato com esse caráter teocêntrico do Concílio, convém lançar
um simples olhar sobre a Constituição de base, Lumen
Gentium,
Sobre a Igreja. O texto pouco trata da Igreja como instituição,
como poder, como hierarquia. E o faz apenas em um capítulo (o
capítulo III), Sobre a Constituição Hierárquica, especialmente o
Episcopado, com a intenção de apontar para a necessária
colegialidade.
Do conjunto dos oito
capítulos, sete dão relevo à Igreja comunhão que integra e supera
a dimensão da Igreja sociedade a ser bem administrada, mas sempre
subordinada ao centro do plano de Deus. Que é a comunhão no amor,
no dom, no serviço. Assim, após se elucidar a visão da Igreja como
comunidade, vindo da Santíssima Trindade e a ela levando, de maneira
concreta se mostra que ela é o povo de Deus, destacando-se a forte
realidade dessa noção bíblica, Ela designa então o Reino de Deus
em marcha, e a esse povo peregrino é confiada a qualidade e a
responsabilidade dessa marcha, que designa concretamente um processo
constante de santificação universal.
O Papa Bento XVI
oferece uma ilustração graciosa dessa visão do Concílio, a qual
se poderia dizer mística. Ao comemorar os quarenta anos do
encerramento de Vaticano II, em sua homilia de 8 de dezembro de 2005,
o Soberano Pontífice começa por declarar que o Concílio se
apresentou mais como marial do que petrino, pois se consagrou com
prioridade á santidade e ao amor da Igreja comunhão, e não aos
aspectos institucionais e administrativos da Igreja como sociedade.
A missão da
vida consagrada no centro ou no coração da Igreja.
Duas opões
fundamentais e conexas da Constituição de base, Lumen
gentium
interessam diretamente nosso intento de elucidar a missão da vida
consagrada, contemplativa e monástica.
A primeira é o
amplo e profundo desenvolvimento da mencionada definição da Igreja
como povo de Deus, no qual todos os membros são chamados à
santidade e já se acham engajados nesse processo de dom de si e de
comunhão com Deus, fonte de amor e de santidade. E essa vocação à
santidade, de maneira muito coerente, é ligada à missão de
irradiar a santidade. Anteriormente a qualquer mandato ou ministério
confiados pelos Pastores, todos e todas na Igreja já estão
incumbidos de anunciar e testemunhar o Evangelho. É uma missão
enraizada no ser e na vida dos membros de Cristo e da Igreja. Um
cristão medíocre, alheio ao chamado á santidade e à sua vocação
missionária, é uma anormalidade segundo o Evangelho, cuja mensagem
é relembrada por Vaticano II. Aqui e no conjunto de seus textos, o
Concílio se mostra mais atento a renovar e reativar a Igreja,
limpando-a dessas falhas internas, bem mais do que a exorcizar seus
adversários externos.
A segunda opção é
uma outra singularidade do Concílio. Ele destaca como elemento
constitutivo da Igreja a vida consagrada. O que jamais tinha sido
feito por qualquer concílio. Mas é o que está muito na coerência
com a visão teológica global e com o paradigma eclesiológico de
Vaticano II. Ele dá esse relevo aos religiosos e religiosas, não em
concorrência com o conjunto dos fiéis. É sob a mesma inspiração
do amor universal que a vida consagrada é valorizada, para poder vir
em ajuda a toda a Igreja, para realizar de maneira eminente a vocação
universal à santidade e estar a serviço dessa vocação, de maneira
constante e eficaz.
Juntando essas duas
opções de base, a vocação de todos os fiéis à santidade em
sintonia com a exaltação da missão da vida consagrada, fica
evidente que o maior empenho, a preocupação primordial e urgente do
Concílio é despertar a Igreja á sua realidade, ao projeto fundador
do Evangelho que estabelece a Igreja como o sacramento salvador e
santificador, a que devem colaborar a diversidade e a harmonia dos
ministérios.
Bem se entende por
que o Concilio resiste a certas tendências que se batiam pela
renovação e intensificação das condenações dos adversários
externos da Igreja. Vaticano II se concentra no essencial, que
constitui a força invencível da Igreja. A tradição mais autêntica
sempre ensinou a professar na própria confissão de fé: creio não
na Igreja poderosa, mas sim creio na Igreja santa. Creio na santidade
de Deus presente e atuante nesta comunidade, que é o povo de Deus,
consagrado inteiramente a Deus, comunhão eterna de Amor. Esta
comunhão se efetua na Igreja pelas virtudes teologais e
divinizantes, da Fé, Esperança e Caridade. E, então, relembrando a
dimensão hierárquica da Igreja, o Concílio afirma essa propriedade
evangélica da autoridade apostólica, sobretudo, como uma comunhão
na partilha, no serviço e na colegialidade.
Assim, a identidade,
o carisma e muito especialmente a missão da vida consagrada, em seu
conteúdo, em sua forma e seus traços mais típicos, em sua
expressão mais forte, a vida contemplativa e monástica, aparece,
resplandece na maior afinidade com a identidade, o carisma
comunitário e a missão primordial da própria Igreja fundada para
cumprir o intento salvador e santificador de Cristo. Ela é enviada
para abraçar o mundo, e tudo fazer para que ele abra e purifique os
olhos da inteligência e do coração na acolhida de Deus Amor
universal. Por sua essência e seu dinamismo, a vida consagrada é a
realização, a proclamação e o incentivo constante dessa missão
primordial da Igreja.
Convém concretizar
nossa abordagem do Concílio e melhor realçar a visão teologal que
ele nos propõe da Igreja e do mundo, no seu intento de oferecer uma
base autêntica da existência cristã, especialmente em sua opção
radical, que é a vida consagrada. Para assegurar essa leitura fiel
de Vaticano II, um método bem singelo, mas eficaz será destacar as
quatro Constituições, bem como os documentos que apresentam os
dados e as orientações do caráter inovador do Concílio.
Simplificando mais ainda, em um primeiro momento, se procurará dar
toda a atenção aos prólogos, aos primeiros capítulos desses
documentos, em que se condensam e se explicam os princípios
fundadores, as opções determinantes dessa espécie de revolução
de Deus, que, ainda uma vez, é a sua presença bem acolhida como
Amor transformador e universal.
Uma primeira
indicação a partir da Constituição sobre a liturgia. Felizmente
um movimento litúrgico pré-conciliar tinha permitido a Vaticano II
começar pelo que é o princípio mesmo e a fonte da vida da Igreja.
Nessa primeira Constituição Sacrosanctum
Concilium,
logo de entrada se evocam as maravilhas do Amor de Deus, se condensa
essa exposição contemplativa nesta simples sentença que contém
todo o programa renovador da liturgia “a Obra da salvação
continuada pela Igreja se realiza na liturgia” (Constituição
citada, n.5). A valorização e renovação adaptada da liturgia tem
como ponto de partida, como fonte primeira, o mistério divino que a
liturgia contém e irradia, estabelecendo a famosa ponte, o vaivém
de amor entre o céu e a terra.
A Constituição
Lumen
gentium,
começa por definir a Igreja como o “sacramento” global da total
reconciliação de Deus Amor com a humanidade, e ergue a noção da
Igreja como a comunhão de graça, de fé, esperança e caridade. Ela
é o projeto do Pai, revelado e realizado pelo Filho e animado como
por uma nova alma infundida pelo Espírito Santo. Toda a nossa
meditação aqui se enraíza nessa nova visão da Igreja, nova porque
radicalmente evangélica.
Mas convém pôr bem
em relevo a harmonia dessa visão central da Igreja com os dois polos
dentro dos quais ela estende a sua missão, primeiro contemplativa,
de ouvir e transmitir a Palavra da Revelação. O que se contém na
Constituição Dei
Verbum.
O segundo polo é a missão de presença, de evangelização e
promoção da humanidade, o que exige o contato com o mundo,
reconhecido e acolhido em suas condições atuais, o que é o tema
amplamente desenvolvido na Constituição pastoral
Gaudium et spes.
Em síntese, pode-se
destacar: as orientações de Vaticano II, destinadas a ativar e a
priorizar a vida consagrada, não se contam apenas como uma das
dimensões importantes do projeto conciliar, mas como o elemento
essencial e a inspiração primordial para a vida dos fiéis, das
comunidades e de toda a Igreja. Note-se que nesta definição de um
paradigma fundador de compreensão não se trata primeiramente de
destacar afirmações ou negações, mas prioridades na visão
ordenada da revelação e da sua presença na Igreja.
Em exposições
deste nosso encontro ficou bem clara a visão de Vaticano II sobre a
identidade e o carisma da vida consagrada em sua dimensão
contemplativa e monástica. Do Decreto conciliar Sobre a Renovação
e a Adaptação da vida religiosa, Perfectae
caritatis, destaco
apenas duas passagens em que se concentra o essencial da visão
conciliar que estamos meditando. Primeiro, em seu Prólogo, o Decreto
nos envia à compreensão já estabelecida pela Lumen
gentium sobre
a vida consagrada, “cuja fonte, modelo e inspiração é a vida do
próprio Senhor Jesus”. E a segunda sentença do Decreto contém a
apresentação e exaltação da vida consagrada contemplativa e
monástica. “Ela tem um lugar de destaque no corpo místico,
oferece a Deus um sacrifício eminente de louvor, ajuda o povo de
Deus por uma secreta fecundidade apostólica, refulgindo como a
glória da Igreja e uma fonte de graças celestes” (Cf. Decreto
citado, n.7).
Urgência e
grandes exigências da missão da vida consagrada no passado, no
presente e para o futuro da Igreja e da humanidade.
Voltamos à
inspiração evangélica tal como foi atualizada pelo Espírito Santo
mediante a atitude fundamental e as grandes atitudes e posições do
Concílio Vaticano II.
- A fonte primeira e
fundadora de sentido e compreensão é a opção teocêntrica do
Concílio, o primado de Deus, o apelo a Deus Amor perfeito, infinito
e universal, como princípio de todo ser e de todo conhecer, a
finalidade última que dá razão a tudo o que existe.
- O Concílio
atribui um sentido efetivo, operacional à doutrina tradicional de
Deus Criador, Deus salvador e santificador, senhor e condutor da
história. Essa visão teológica se mostra coerente em si mesma, na
correlação desses atributos divinos, mas aqui resplandece a
originalidade de Vaticano II: esse olhar sobre o amor ativo universal
de Deus vem sempre colocado em referência com a marcha do universo,
em que se reconhece a consistência das criaturas, e em referência
mais profunda com a história vivida da humanidade. Assim, se põe em
destaque a ação constante de Deus, em correlação com a
responsabilidade pessoal e social do ser humano. A santidade de Deus
se traduz então em uma oferta de graça, acompanhada de uma
exigência de responsabilidade, de justiça e de solidariedade.
À luz dessa
teologia abrangente, a ordem natural, leiga, profana das coisas, bem
como das relações e organizações e estruturas sociais vem
afirmada em toda a sua consistência; elas são reconhecidas em suas
autonomias, nas diferentes formas de racionalidade, técnica,
artística, política, econômica, cultural, mas sempre em correlação
com uma racionalidade superior, ética que assume a realidade das
coisas e das sociedades apreciadas no plano dos valores e direitos
humanos. Tal é o paradigma analítico, espiritual, ético, que
transparece nos diferentes domínios abordados pelos documentos
conciliares; esse paradigma se encontra bem elaborado na Constituição
pastoral Gaudium
et spes.
Não há uma simples
justaposição. Há uma simbiose e uma sinergia assumindo a vocação
eterna do ser humano, elevado pela revelação e pela graça, ligando
essa vocação transcendente com a busca de uma civilização de
amor, que é o campo concreto e temporal em que se realiza o designo
eterno de Deus. Esta é a visão global, o paradigma teológico de
Vaticano II em toda a sua abrangência, em seu empenho de bem
distinguir para unir de maneira harmoniosa todas as realidades. da
história da salvação e da história profana e da experiência
comum, incluindo os progressos e desafios da modernidade
tecnocientífica.
Surge então a
questão ampla e delicada>Como a vida consagrada: poderá assumir
esse paradigma teológico do Concílio e torna-lo operacional e
eficaz, respondendo aos desafios do mundo da tecnologia globalizada,
sem deixar de atender à sede de contemplação divina que ele
manifesta, embora de formas por vezes surpreendentes senão
desconcertantes?
Ainda aqui, nosso
ponto de partida e referência constante será a descrição e a
compreensão do mundo moderno, bem esboçada por Vaticano II e
confirmada pelos avanços do que se chama a pós-modernidade; O texto
mais direto do Concílio vem a ser a Constituição pastoral da GS,
em sua I Parte.
Nela, Vaticano II
leva a acabo a difícil e delicada atitude inaugurada por Leão XIII,
continuada por Pio XI e Pio XII, no sentido de discernir os valores e
direitos humanos e mesmo as chamadas liberdades modernas e
dissociá-los dos seus protagonistas anticlericais, e assim iniciar o
processo do que será um humanismo integral, justo e solidário. Esta
visão humanista começa a ser vista então em sintonia com os
valores evangélicos, de que seriam até as felizes repercussões no
plano da secularidade e da laicidade.
O importante para
nossa reflexão é a decisão serena de Vaticano II de ver e analisar
a humanidade atual como ela é, reconhecendo que muitos dos valores,
das liberdades e das reivindicações que a modernidade e a
pós-modernidade proclamam podem e devem ser confrontadas com o
Evangelho, Nesse confronto, uma afinidade pode ser discernida na
medida em que a moderna busca de emancipação e autonomia, não
deslize no egocentrismo utilitarista, mas se deixe julgar e
retificar, e passe a assumir a defesa e a promoção da dignidade da
pessoa humana e a priorizar o bem público que a sociedade visa ou
deve visar.
Tal é o processo
intentado pelo Concílio, e tal a atitude consequente que ele propõe
a ser vivida e difundida pela Igreja. Mas, sobretudo, está aí a
inspiração teológica, digamos mesmo teologal, que lhe serve de
critério decisivo, a saber, a visão profunda e abrangente de Deus
Amor universal, Criador, Salvador e Senhor da história e da
socie4dade.
Vaticano II nos
convida e mesmo nos impele a uma espiritualidade radical e
englobante. Nada de concessões que viessem atenuar ou reduzir a
visão teocêntrica, e nenhuma hesitação quanto ao Deus Pai,
revelado em Cristo e por ele dado á humanidade O Concílio chega a
declarar que Cristo “de certo modo, está unido a todo ser humano”
(GS 22, 2) e que o Espírito de Cristo age no coração dos que
professam uma religião não cristã (AG 2, 13), que ele está
presente e age na história (GS 10, 2), para o cumprimento do plano
amoroso de Deus.
Sem desenvolver
esses temas que ocuparão as nossas atenções nestes quatro anos de
comemoração do cinquentenário de Vaticano II, destacamos as teses
seguintes propostas na perspectiva deste nosso e encontro;
- Na inspiração do
seu próprio projeto e na proposição que faz de um paradigma
renovador e mesmo inovador para a Igreja, o Concilio, antes de tudo e
sempre, dá prioridade ao teocentrismo evangélico, tudo vê, tudo
julga ensina e propõe á luz e em referência ao Deus Amor
universal. Na perspectiva dessa teologia, rigorosamente fiel à
Revelação em sua expressão bíblica e na Tradição da Igreja,
Vaticano II inicia o confronto desse paradigma teológico com uma
ética mundial e com o projeto de uma “civilização do amor,” na
expressão difundida por João Paulo II.
Merece menção
especial uma dupla exposição da GS que encerra o Concílio. A
primeira dessas exposições vem a ser o esboço de uma antropologia,
atenta à realidade humana concreta, progressiva e transcendente, que
culmina em uma cristologia e uma escatologia, o que constitui a mais
segura e ousada atualização da teologia da Encarnação Redentora,
da salvação eterna e da promoção humana. (I Parte da GS).
Finalmente, elabora
uma visão e mesmo um projeto ético e histórico de uma nova ordem
política, jurídica, econômica, como alternativa válida e urgente
para os sistemas nacionais, regionais e internacionais e para o
grande sistema constituído pela rede dos setores e sistemas atuais.
(Cf. II P. da GS).
supremo
desafio: decifrar e enfrentar as místicas dissimuladas nas
ideologias da pós-modernidade.
A
missão
da vida consagrada identifica-se com a missão da Igreja no que ela
tem e é de mais profundo, de essencial, de dom divino de que a
humanidade tem a maior necessidade, a que ela aspira mesmo sem saber
qual a mensagem e a fonte dessa aspiração. A Igreja deve ir ao
encontro do mundo, levando-lhe o que ela tem de melhor, de
propriamente divino. Simplificando, se poderia dizer que o diálogo
ecumênico inter-cristão e inter-religioso deve começar,
enraizar-se, prolongar-se e fortalecer-se, sobretudo como intercâmbio
de experiências espirituais. A mística evangélica é chamada a
abrir da parte cristã o contato com as diferentes formas de mística
do Ocidente e particularmente do Oriente. Este será um dos aspectos
essenciais da missão da vida consagrada, em sua expressão
contemplativa e monástica.
Semelhante missão
deverá estender-se a outra tarefa mais delicada e mais difícil,
pedindo imenso grau de discernimento e mesmo de sabedoria criativa.
Trata-se do encontro e do diálogo com as modalidades de contemplação
em seu feitio religioso ou profano, tais como são praticados,
ostentados ou exibidos, como é do estilo publicitário ou
propagandista da modernidade.
O absoluto imutável
é o utilitarismo econômico, levando à busca de bom lugar e de
algum conforto no reino do mercado. Mas essa espécie de dança do
vale tudo e da incansável mudança de parceiros, perdura e cresce
porque obedece a alguns valores que mudam de máscaras, mas não de
realidade profunda. A sabedoria evangélica, o discernimento
propriamente místico é mais do que necessário para guiar a Igreja
e a vida consagrada, em sua fidelidade aos verdadeiros valores e na
pedagogia para apresentá-los ao mundo, cada vez mais seduzido e
manipulado pela civilização da falsa trindade pagã: Mercúrio, o
deus do mercado, dos negócios e dos ladrões, de Vênus, a deusa dos
amores e dos prazeres, e de Apolo, o deus da forma, da beleza e das
beldades.
Mas essa idolatria,
essa mística idolátrica é bem humana, bem enraizada em certo
humanismo, que se apoderou da modernidade desde a Renascença, e se
vai estendendo às vagas de pós-modernidade com o predomínio do
individualismo egocêntrico.
A modernidade
buscava uma emancipação egocêntrica, dos indivíduos, dos grupos,
das castas e de toda a sociedade, apelando para a Razão, dita em
toda a verdade no século XVIII, a deusa Razão. A pós-modernidade
prolonga o apego á razão como instrumento de libertação de toda
autoridade externa ou superior ao indivíduo, quer sempre
identificar-se com a luz, em oposição às trevas do passado, das
velhas famílias e das religiões rançosas. Mas o supremo valor
típico da pós-modernidade é a experiência, a experiência de cada
um. É a experiência de felicidade neste momento de egocentrismo
individual ou partilhado na quadrilha dos que acertaram ao menos por
um momento com a doçura do prazer. E, mais ainda, exalta-se a
experiência da ventura do ter cada vez mais e de se impor pela posse
do poder ou de seduzir uma galera pelos encantos da beleza.
Muitas vezes se
condena o relativismo do mundo de hoje. Na realidade, o que o
caracteriza mesmo é o absolutismo do individualismo isolado ou dos
individualismos em quadrilhas. O absolutismo permanece a fonte
constante de uma variedade de opções relativas, porque buscam o
absoluto da felicidade nas ofertas sempre crescentes de toda espécie
de consumismo.
Convém, portanto,
começar pelo Absoluto, pelo “Único necessário” do Evangelho,
assumido pela vida consagrada e confrontá-lo com o absoluto
proliferando em todos os santuários e todas as idolatrias do
consumismo, do erotismo e do imperialismo pós-moderno. As religiões
e até suas expressões místicas, em um primeiro momento, parecem
assumir o caminho da facilidade. Uma primeira atitude religiosa
corrente é exorcizar este mundo, esconjurando todas as suas formas
satânicas. Mas, semelhante opção de descartar o mundo moderno vem
parasitada por uma escolha que coincide com a aceitação do mesmo
egoísmo sob disfarce religioso. As religiões se tornam outras
tantas capelanias do consumismo, propondo o deus ou os deuses da
prosperidade, Vão até ao encontro dos marginalizados e excluídos,
impedindo que suas reivindicações estraguem as festas dos ricos e
privilegiados. Entram no jogo da concorrência, fazendo a oferta da
religião da terapia, da resignação, de busca confiante de
milagres.
Note-se que este
mundo não está lá longe. Ele viola todas as privacidades, ele
penetra todas as famílias, criando-as a sua imagem e a seu serviço,
o que acontece até com as famílias religiosas. Surgem e se
multiplicam certas formas bem lindamente embaladas de orações, de
meditações, de contemplações, em geral importadas, com mais ou
menos fidelidade tomadas às veneráveis religiões da oração
contemplativa e mesmo monástica.
Conclusões e
sugestões:
A vida consagrada tem por missão ser a força graciosa e
transformadora de Deus Amor, assumindo e elevando a vida humana nas
condições atuais da vida virtual, informatizada, que caracteriza o
mundo tecnológico e globalizado.
Todas as pessoas e
as comunidades consagradas realizam e são chamadas a realizar de
forma eminente e exemplar aquela missão que Vaticano II atribui a
toda a comunidade dos fiéis. É a missão evangelizadora,
santificadora e retificadora do mundo, em virtude da participação
batismal no sacerdócio, no profetismo e da autoridade divina de
Cristo, o Verbo encarnado e redentor. A vida consagrada tem essa
missão de ajudar a humanidade a encontrar sua vocação de
eternidade e, ao mesmo tempo, de colaborar com o mundo profano para
que a sociedade se realize na justiça, na fraternidade e na paz.
Para bem situar essa
missão em sua condição cada vez mais eficiente e exigente no mundo
da tecnologia globalizada, convém reconhecer e analisar três
paradigmas de vida, de existência pessoal e social, correspondendo a
três patamares de realização humana, que brotam do que a
humanidade pós-moderna encerra de mais típico.
Distingue-se,
primeiro, o tipo de vivência e de convivência, de existir como
pessoa, parceiro da comunidade familiar, das relações comunitárias
e sociais realizando-se de maneira natural, com os recursos e os
limites de cada ser humano, com uma ajuda técnica que venha apenas
amparar e prolongar as relações diretas e imediatas entre as
pessoas.
O segundo paradigma
de vida, de existência ou de coexistência é caracterizado pela
predominância da técnica, que vem progredindo desde os últimos
séculos até engendrar uma humanidade informática, dotada de uma
qualidade e sendo mesmo uma existência virtual. A tecnologia por sua
ação profunda e continuada criou um mundo imaginário e afetivo, em
simbiose com o mundo simplesmente humano, mas tendendo a penetrar e a
manipular mais e mais esse mundo simples e ingenuamente humano.
Podemos discernir então os valores humanos, a dignidade da pessoa,
da mulher, do jovem e os encantos da criação, em oposição aos
valores enaltecidos, idolatrados do ter, do poder, do parecer e do
aparecer, de dominar e de seduzir. Exaltam-se a forma, a personagem
informática, em contraste com a personalidade, e parasitando-a e
corroendo-a sempre mais e mais, em uma sociedade que, em tudo, tende
a virar teatro e espetáculo, em que todos são espectadores e atores
simultaneamente. Diríamos que todos e todas tentam desfilar na
passarela que lhes é accessível, mesmo custosa e menos rendosa.
O terceiro paradigma
de existência é a vida espiritual, evangélica, de que a vida
consagrada é o modelo eminente, em que a vida humana é chamada a
culminar, na intimidade e na transcendência, vivendo como ser no
mundo e como criatura e filha de Deus. Para tender a esse projeto
divino e humano será preciso utilizar, com a máxima sabedoria e
firmeza, os recursos convenientes da informática, servindo-se de
suas obras e de suas redes, dos maravilhosos instrumentos da
tecnologia. Mas, aqui bate ponto. É imprescindível não se deixar
manipular pelo sistema da informação, dotado de sua magia
imaginária, afetiva, de uma linguagem toda envolvente insinuante e
grandemente erótica.
A existência
virtual, informática encontra sua seiva, seus interesses, suas
paixões, opções e motivações nas redes de programas, de
espetáculos, de vidas reconstruídas artificialmente e que engendram
curiosidades, sonhos, desejos de caráter artificial. Cria-se o
ciberespaço o universo e a sociedade virtuais, comportando o amor e
feixes de atividades e relações puramente virtuais, tecidas de
imaginário e de afetividade, ambos construídos pelo predomínio de
uma influência artificial vinda do sistema de comunicação, cujo
interesse primordial é econômico.
A vida consagrada
enfrenta esse desafio, próprio ao nosso tempo. Os adversários
tradicionais da espiritualidade, o mundo, a carne, o demônio, todo o
feixe dos vícios capitais, todo esse universo do Maligno persiste,
no mundo informatizado, recebendo uma fisionomia e uma força mais
aguçada e mais sedutora, pedindo um discernimento e um autodomínio
mais lúcido e mais robusto do que nos séculos passados.
Recordamos o dado
primordial que orientou nossa reflexão: a grande força da Igreja é
a vida consagrada que testemunha o Evangelho a energia mística
transformadora da humanidade.
Em termos
evangélicos: tudo está em sermos pessoas e comunidades teodidatas,
unidas e dóceis ao Deus Amor, contemplado e servido na Comunhão
Trinitária de amor que Ele é e nas redes e comunhões de amor que
com Ele e por Ele haveremos de estar tecendo dia e noite.
Concretamente hoje, temos de buscar apaixonadamente as formas
pessoais e comunitárias da experiência de sermos teodidatas.
Na perspectiva
propriamente teológica, como reconhecermos as formas de presença do
Deus Amor no bulício tecnológico, mas também nas aspirações, nas
atitudes nos valores verdadeiros ou falsificados no mundo de hoje.
E voltamos ao centro
da vida consagrada, contemplativa e monástica O amor gratuito, o
puro amor, é a força divina da graça que tem que iluminar,
incandescer e transformar um mundo do utilitarismo erigido em sistema
de vida pessoal e social. São João da Cruz proclama em uma sentença
bem condensada: “A menor parcela de puro amor, em sua aparente
inutilidade, é no entanto mais preciosa aos olhos de Deus e aos
olhos da alma, é mais proveitosa à Igreja, do que todas as outras
obras juntas” (Cântico
Espiritual,
B, Estrofe 29, 2).
Bem se entende
porque Vaticano II encerra sua magnífica constituição sobre a
Igreja (Lumen
gentium, capítulo
8) com um olhar contemplativo sobre a mulher mais humilde, mais
simples, que jamais desfilou pelas passarelas da vaidade, mas foi e é
eternamente a agraciada de Deus, a bem-amada do Pai, do Filho e do
Espírito Santo. Na terra e no céu, ela resplandece como a imagem
mais perfeita, que uma criatura possa ser, da infinita e suave
amabilidade de Deus.
BIBLIOGRAFIA
SUMÁRIA.
Obras do Autor afins
ou conexas com o tema abordado;
Contemplação e
libertação,
Ed. Ática, São Paulo, 1995.
Santas Doutoras,
espiritualidade e emancipação da mulher,
Ed. Paulinas, São Paulo, 1999.
Crer no Amor,
visão histórica, social e ecumênica do “Creio em Deus Pai”.
Ed. Loyola, São Paulo, 1999.
Falar de Deus e
com Deus, caminhos e descaminhos das religiões hoje.
Ed. Paulus, São Paulo, 2004.
Ética e Mídia,
liberdade, responsabilidade e sistema,
Ed. Paulinas, São Paulo, 2006.
Ética mundial,
esperança da humanidade globalizada.
Ed. Vozes, Petrópolis, 2010.
Paradigma
teológico de Tomás de Aquino. Ed.
Paulus e EDT – Escola Dominica de Teologia, Coleção Dialogar, São
Paulo, 2012.
O LUGAR ECLESIAL DA VIDA RELIGIOSA
MONÁSTICA E CONTEMPLATIVA
Dom Gregório Paixão, OSB1
- PROVOCAÇÕES HISTÓRICAS
1. Era uma manhã de domingo; ensolarada, como são quase todas as
manhãs em Salvador. O fluxo de jovens diante do auditório do
Colégio das Irmãs Sacramentinas era imenso. Mil novecentos e
oitenta e dois era o ano. Vivíamos agora em uma sociedade livre da
ditadura militar e reconhecíamos nossa Igreja como vitoriosa, por
ter sido protagonista, em sua missão profética, nas lutas por um
Brasil democrático.
2. A multidão dos jovens que aguardavam diante do auditório fora
convocada no intuito de animar os vocacionados da Bahia e de Sergipe,
já que experimentávamos uma visível evasão das vocações à vida
religiosa. Creio que éramos, entre candidatos, postulantes, noviços,
junioristas e religiosos consagrados, cerca de 300 pessoas. Eu ainda
era candidato à vida monástica no Mosteiro de São Bento da Bahia e
estava ali, vindo de Aracaju, especialmente para participar do
encontro, pois pretendia, no ano seguinte, ingressar na abadia
soteropolitana. Estudava na Universidade Federal de Sergipe e
precisava decidir entre as cadeiras universitárias e o Mosteiro.
3. Todos sentados, um silêncio sepulcral espalhara-se no auditório
das sacramentinas. Eu estava no meio da platéia, ao lado dos
formandos do Mosteiro, todos de roupa civil, para ouvir a
conferencista convidada, à qual cabia dirigir uma palavra de
incentivo aos vocacionados de primeira hora, motivando, ainda, os que
já estavam nas fileiras fraternas.
4. A conferência foi excepcional. Não lembro o nome da
palestrante, mas seria capaz de redesenhar sua fisionomia, com seu
cabelo curto e loiro, já marcado pelo passar dos anos. Ela conseguiu
levantar o auditório com suas afirmações categóricas, com suas
certezas acadêmicas e com sua convicção de consagrada. Entretanto,
não observando a diversidade das escolhas, jogou um balde de água
fria sobre alguns jovens que desejavam ingressar na vida monástica e
na vida contemplativa.
5. Nossa conferencista foi enfática. Afirmou, dentre outras coisas,
que a Igreja não tinha mais lugar para uma vida que não fosse
inserida. Que era inconcebível, após as opções feitas pela Igreja
do Brasil, jovens dedicarem-se a uma vida contemplativa e
desencarnada. Enfatizou, convicta, que era preciso libertar-se das
grades.
6. A indignação dos “alienados” se tornou ainda maior após a
conferência, quando alguns jovens reconhecendo-nos “monges”,
resolveram rechaçar nossa escolha, convencidos de que caminhávamos
na contra-mão da história e das opções da Igreja.
7. Mesmo não entendendo a postura apresentada pela conferencista,
resolvi desconsiderar uma pequena parte do seu ensinamento – aquela
que menosprezava a minha escolha – certo de que “a loucura que
Deus escolheu para confundir o mundo”2
nunca será entendida por aqueles que só entendem do mundo. Assim,
arrisquei... segui meu caminho... e agora, trinta anos depois, posso
dizer com convicção: aquela senhora estava errada.
8. O relato histórico e pessoal não é, de modo
algum, uma crítica atemporal. Visa tão somente enfatizar um olhar
unilateral e negativista que pode contaminar todos os que escolheram
para a si a ditadura do pensamento
único, tornando-se algozes dos que
ousam pensar diferente. Creio, também, que a religiosa em
questão apresentava idéias que eram suas e que, de modo algum,
comungavam com o pensamento da Igreja no Brasil e com os ensinamentos
do decreto Perfectae Caritatis do Concílio Vaticano II.3
9. Na verdade, vida ativa e vida contemplativa dividem adequadamente
a vida humana.4
O valor de uma não pode diminuir o valor da outra. A ação se nutre
da contemplação, pois sem contemplação nossas atividades
periféricas nos arrastam para a superfície. A contemplação nos
ajuda a ver o rosto do Senhor naqueles que sofrem. Nisso comungam a
vida religiosa ativa, a vida monástica e a vida contemplativa.
II. HISTÓRICAS PROVOCAÇÕES
10. A vida monástica e a vida contemplativa encontram-se inseridas
no contexto eclesial da pós-modernidade. Sofrem as mesmas alegrias e
dores de todas as ordens e congregações, e deseja participar desse
momento histórico, que reconhece também como seu, podendo
contribuir eficazmente na busca das alternativas desejadas por todos.
Ela toma para si a responsabilidade dos quase 1800 anos de
experiências vividas, entre quedas e reerguimentos. Sua origem se dá
no tempo dos mártires, expande-se após o Edito de Milão,
ultrapassa as três fases da Idade Média, sobrevive na Modernidade e
refunda-se no Mundo Contemporâneo. Não será diferente na
Pós-Modernidade.
11. O monaquismo do século III foi um movimento de retorno às
origens, resgatando o fervor noviço encontrado nas nascentes do
cristianismo. Ele surgiu espontâneo, como expressão do ser humano
que busca, com o olhar voltado para os mistérios divinos, decifrar
os enigmas da terra, desejando realizar o eterno no tempo.
12. Os primeiros monges cristãos construíram sobre a Sagrada
Escritura o alicerce da vida que empreenderam, baseando-se nos
exemplos de personagens bíblicos que viveram incondicionalmente para
Deus, como o Profeta Elias e São João Batista. Entretanto, foi na
pessoa de Jesus Cristo que os monges e contemplativos do século III
enxergaram o fundador da vida consagrada.
13. Advindo de uma família pobre de Nazaré, Ele empreende sua obra
salvífica sem endereço fixo, sem acumular bens, escolhendo a vida
celibatária, convidando todos a construírem um mundo divinamente
humanizado, alertando-os para a fluidez das coisas terrenas e
apontando a perpetuidade das eternas. Seu convite a um seguimento
despojado o faz declarar a seus discípulos: “qualquer de vós
que não renunciar a tudo o que possui, não pode ser meu
discípulo”.5
Tendo, assim, como modelo inspirador o próprio Jesus, casto, humilde
e totalmente devotado à obra do Pai, surgiram múltiplas vocações
ascéticas, que contribuíram, embora não o soubessem, para o
nascimento da vida religiosa tal como a concebemos em nossos dias.
14. Na complexidade e riqueza do seguimento, a vida monástica e a
vida contemplativa continuam sendo presença viva na Igreja. Dados
oficiais do Vaticano, afirmam que o número de monges católicos no
mundo totaliza-se em 12.768, residentes em 905 mosteiros. As monjas e
contemplativas, por sua vez, chegam ao impressionante número de
48.493, residentes em 3.520 mosteiros.
15. A apresentação dos números acima é suficiente para dizer que
não pode passar despercebida a vida e a atuação das comunidades
monásticas e contemplativas espalhadas pelo mundo.
III. O LUGAR ECLESIAL DA VIDA
RELIGIOSA MONÁSTICA E CONTEMPLATIVA
16. Os novos ideais da contemporaneidade tornaram a sociedade sedenta
de espaço. A Terra ficou pequena para nós e a Lua já não nos
basta; queremos ir a Marte. Se possível, ao Sol. O desejo de invadir
o orbe terrestre gerou o fenômeno da globalização. A sede não é
só de espaço, mas de ocupação de espaço, expansão de novas
idéias, pelo simples desejo de gerar em toda a sociedade o sentido
de pertença universalizante.
17. A Igreja, filha do seu tempo e inserida no mundo, sofre, também
ela, por meio de seus membros, as influências positivas e negativas
da sociedade pós-moderna, e luta, sem cessar, para dar respostas
profundas em meio ao caos da superficialidade percebida. É no
borbulhar desse mundo sedento de respostas – porque imaginou ter
encontrado todas – que a vida religiosa monástica e contemplativa
desenvolve seu carisma, assumindo seu lugar eclesial e sua missão.
18. Mas como encontrar o próprio lugar se o vemos invadido por tudo
e por todos? Quando nos encontramos perdidos, no meio de um oceano
avassalador, de nada adiantará confiarmos nos mapas. É fundamental
consultar um GPS6
para sabermos onde estamos. E o GPS da vida contemplativa nos
confirma que estamos no mundo onde “Deus viu que tudo era muito
bom”;7
Ele que “amou tanto o mundo, que deu seu Filho unigênito, para
que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna”.8
Nós, monjas, monges, contemplativas e contemplativos fomos educados
a não amar o que é mundano, mas não podemos fugir da missão de
amar o que Deus amou e buscar salvar tudo o que Deus criou.
19. Nossos pais do deserto nos ensinaram que a “fuga mundi”
é conseguir nortear a nossa vida no Deus das coisas, e não nas
coisas de Deus. Desse modo, estamos continuamente desenvolvendo nosso
carisma no lugar onde estamos inseridos, defendendo nossos valores
basilares, influenciando positivamente o núcleo onde habitamos,
lutando para não sermos sugados pelo secularismo, pelo ativismo e
pelo individualismo. Onde se encontra, o contemplativo deve assumir
uma existência contestatória, que suscita novidade e provocação.
Assim, caracteriza-se antes por propor perguntas que dar respostas.
20. O Concílio Vaticano II nos chamou a viver o núcleo originário
da nossa vocação. Não podemos buscar respostas fáceis para os
problemas atuais que encontramos na vida monástica, pendendo para a
vida clerical, ou para a vida religiosa ativa, ou para a vida dos
leigos. Cada seguimento religioso deve reconhecer o seu núcleo
originário. Não devemos imaginar, tão pouco, que as outras
experiências de vida cristã terá êxito se pender para o modo de
vida que levamos.
21. Assim, cabe-nos reafirmar valores fundamentais que não podemos
abandonar, como a centralidade da pessoa de Jesus, a espiritualidade
trinitária, o amor incondicional à Sagrada Escritura e o apelo à
vida comunitária. Entretanto, existem estruturas ultrapassadas que
precisam ser transformadas, já que não correspondem mais às
exigências atuais da vida que levamos. Cabe a cada comunidade
superar essas estruturas, jamais se encaminhando para os modismos,
que são sempre superficiais e reducionistas.
22. Percebemos, assim, três atitudes diferentes de algumas
comunidades monásticas e contemplativas: as que, observando o cair
das folhas da árvore, por medo do tempo presente, resolveram colar
essas mesmas folhas nos galhos secos, uma a uma, com durex. Outras
comunidades, seduzidas pela secularização, resolveram arrancar a
árvore pela raiz, imaginando-se modernas. Outras, porém,
aproveitaram as folhas caídas para fazer adubo e, com ele, alimentar
a árvore que fenecia. Estas últimas continuam fazendo o
agiornamento pedido pelo Concílio e, certamente, sobreviverão
às intempéries.
23. Não podemos, de modo algum, nos afastar do carisma dos nossos
fundadores. As adaptações são mais que necessárias, mas o
espírito do carisma deve permanecer sempre. Porém, nosso modo de
entender nossos carismas precisa ser rejuvenescido continuamente.
Disso depende a vitalidade de nossas comunidades.
24. Ser contemplativo, em qualquer tempo e lugar, é tornar-se humano
– defrontar-se com a própria existência e empreender a busca de
dar-lhe um sentido mais pleno e totalizante. Não é coisa fácil nem
banal, tornar-se humano; isto é sempre desafiador! Ao contrário, é
antes com a desumanização que nos deparamos: o desemprego, a
pobreza, a fome e a violência, frutos de nossa indiferença diante
do mal e da injustiça. Ao apresentarmos ao mundo nossa humanidade –
renascida em Cristo – assumimos o compromisso de amar o Deus dos
homens e os homens de Deus. Nisso consiste o primeiro e o segundo
mandamentos da vida das contemplativas e dos contemplativos.9
25. O que fazer, então, diante de tantos desafios, para encontrarmos
o nosso lugar no coração da Igreja? Basta ser, coerentemente, o que
somos: monjas e monges, contemplativas e contemplativos. Nosso
carisma é universal. Nossa liturgia deve refletir o que cremos,
fazendo com que nossa mente concorde com nossa voz. Nossa oração
coral não nos coloca apenas em contato com Deus, mas nos torna
orantes universais, à medida que nossa oração, fugindo de todo
individualismo, centra-se nas necessidades de todos os homens e
mulheres que se encontram no orbe terrestre, embora estes não saibam
que todas as comunidades monásticas e contemplativas oram pelos que
não oram. Desse modo tornamo-nos cidadãos do mundo, por mais que os
cidadãos do mundo não compreendam nossa vocação.
26. Assim pensando, nossos mosteiro e conventos devem exercer, na
sociedade contemporânea, uma ética da estabilidade e do trabalho,
denunciando a cultura do materialismo competitivo, que destrói a
cultura da paz, que marginaliza os pobres e é fator preponderante
para a destruição da natureza e do individualismo galopante, que
fulmina as relações sociais. Nosso louvor a Deus deve se dar
mediante a liturgia assídua e diligente; o trabalho manual,
intelectual e artístico, fielmente realizado no silêncio exterior e
interior; a caridade recíproca, e em especial com os que sofrem e os
mais pobres, na obediência e na humildade.
27. Nossa adesão a Jesus pela vida monástica ou contemplativa não
nos dá o direito de nos sentirmos menos comprometidos com a vida
apostólica. Devemos ser suplementos de alma, orando pelos que não
oram. Nossos conventos devem sempre ter as portas abertas aos mais
pobres e aos aflitos de todas as classes sociais, que nunca faltam à
portaria de nossas casas, acolhendo neles o Cristo que vem. Nossos
parlatórios e hospedarias devem sempre estar abertos aos irmãos,
num trabalho de pregação contínua da Palavra que acolhe e edifica.
Não podemos estar à parte da vida eclesial, mas nos fazer
conhecedores da vida da Igreja, unidos ao Santo Padre, aos bispos,
sacerdotes e diáconos e a todos os cristãos, numa luta constante
pela implementação do Reino.
28. Se nossas comunidades forem sinal de comunhão neste mundo, as
pessoas verão que poderão experimentar em suas vidas a
misericórdia, o perdão e a reconciliação que tanto necessitam.
Esse testemunho deve estar na nossa maneira de conviver e orar.
29. Os conventos e mosteiros contemplativos têm vocação nata para
uma espiritualidade de comunhão e de acolhimento. Essa comunhão é
universal, no sentido de uma ecologia humana e espiritual,
respeitando as diferença, num diálogo profícuo com as culturas.
Neste sentido, nossas casas podem ser lugares onde se desenvolve um
ecumenismo sadio, uma cultura de paz e de defesa dos direitos
fundamentais de todas as criaturas.
30. Precisamos ter pleno conhecimento das decisões tomadas pelo
episcopado brasileiro, que sempre nos dirige uma palavra carinhosa
nos documentos oficiais. A eles nos uniremos pela oração e pelo
desejo de colaborar na evangelização, dentro do nosso carisma
específico. Devemos, ainda, trabalhar em parceria com os consagrados
da Vida Religiosa Ativa e dos Institutos, pois os seus braços são
capazes de alcançar o que os nossos não atingem. Santa Terezinha
ensinou-nos a estar ao lado de cada missionário presente ao redor do
mundo, por meio de nossa oração, apoio e carinho fraterno.
31. Muitos mosteiros contribuem para a evangelização pela pastoral
da hospitalidade, abrindo seus espaços externos para o acolhimento
de hóspedes e grupos de reflexão. Outros prepararam seus religiosos
e religiosas para escrever, ensinar, traduzir, pregar, além de
inúmeros ofícios que fazem para o sustento de suas casas e a
evangelização dos povos. Podemos, assim, contribuir na “pastoral
de fronteira”, por meio da Internet e dos mass media, sem
perder o justo equilíbrio de nossas atividades. Os sites
monásticos, com especialização em fotos e textos espirituais,
estão entre os mais visitados do mundo, mostrando que nossa vida
continua encantando os próximos e os distantes.
32. Lembremo-nos, ainda, da contribuição à educação dada pelos
inúmeros colégios espalhados pelo Brasil sob a direção de monges,
além dos trabalhos sociais desenvolvidos por nossos mosteiros e
comunidades contemplativas, muitos deles inseridos em bairros
periféricos, colaborando para o sustento dos pobres mais pobres.
33. O equilíbrio religioso e psíquico das comunidades deve ser um
testemunho para a sociedade onde nós vivemos. Cabe-nos enfrentar,
sem medo, por meio de contínuo diálogo e revisões comunitárias, o
procedimento desequilibrado de alguns membros de nossas comunidades,
descobrindo as causas de certos comportamentos, que nascem por
doenças pré-existentes, por escolhas erráticas ou por influência
de “comunidades doentes”. Não podemos perder nosso tempo com
pseudos-problemas, gastando nossas energias em situações que em
nada contribuirão para o crescimento individual e coletivo de nossas
comunidades. Não existem soluções mágicas para os problemas que
enfrentamos, mas, se forem encarados com caridade e racionalidade,
chegaremos a bom termo. É por meio de um ambiente sadio e fraterno
que as vocações monásticas e contemplativas encontraram o que
buscam, porque nunca faltam verdadeiras vocações que batem nas
portas de nossas comunidades. Precisamos estar sempre atentos aos que
chegam psicologicamente comprometidos.
34. O que podemos ensinar ao homem de hoje, como fermento de nossa
participação na evangelização dos povos? A nada anteporem ao amor
de Cristo; a serem verdadeiros homens e mulheres e não
estereótipos de ideologias; oferecer um espaço de silêncio aos
enlouquecidos pelo ruído do ativismo, das ideologias e da
multiplicação de palavras. Nesse campo, a vida contemplativa deve
ser uma porção da Igreja solidária, para se viver a fraternidade
dos livres em Cristo. Devemos fazer um convite ao homem dividido,
egoísta, aborrecido pela sociedade da turba multa, para que
encontre um autêntico nível de relação na profundidade da pessoa,
onde não se admite aparências nem máscaras de engano.
35. Assim, a contemplativa cumpre em sumo grau o primeiro mandamento
do Senhor: “Amarás ao Senhor teu Deus, com todo o teu coração,
com toda a tua alma, com todas as tuas forças”,10
fazendo d´Ele o sentido pleno da sua vida e amando em Deus todos os
irmãos e irmãs. Ela busca a perfeição da caridade, escolhendo
Deus como “o único necessário”11,
amando-o exclusivamente como o Tudo de todas as coisas, cumprindo com
amor incondicional por Ele, e no espírito de renúncia proposto pelo
Evangelho.12
IV. COM A PALAVRA, A IGREJA
36. A partir do Concílio Ecumênico Vaticano II, vários documentos
do Magistério aprofundaram o significado e o valor da vida monástica
e da vida contemplativa. Destacam-se o Decreto Conciliar Perfectæ
caritatis13,
sobre a conveniente renovação da vida religiosa, a Instrução
Venite seorsum, assim como o Documento de Aparecida.
37. Com seu olhar desbravador e profético o Concílio
Vaticano II, por meio do decreto Perfectae Caritatis, afirmou,
em 1968, que “os institutos que se dedicam exclusivamente à
contemplação, conservam sempre a parte mais excelente dentro do
Corpo Místico de Cristo, em que “nem todos os membros têm a mesma
função”.14
Na verdade, oferecem a Deus um exímio sacrifício de louvor,
enriquecem com abundantes frutos de santidade o povo de Deus, movem
com o seu exemplo e fecundidade apostólica.15
Do mesmo modo “os institutos de vida monástica conserve-se
fielmente e brilhe, cada vez mais, a venerável instituição da vida
monástica, que tantos méritos alcançou no decorrer dos séculos na
Igreja e na sociedade humana. O principal dever dos monges é servir
de modo humilde e nobre, a divina majestade dentro das paredes do seu
mosteiro, quer se entreguem totalmente ao culto divino na vida
contemplativa, quer tenham assumido legitimamente algumas obras de
apostolado ou caridade cristã. Mantida, pois, a índole própria da
instituição, renovem as suas antigas e beneméritas tradições e
acomodem-nas às necessidades atuais das almas, de tal forma que os
mosteiros sejam como que os viveiros de edificação do povo
cristão.16
- Na mesma linha, ensina-nos o Documento de Aparecida: “A Igreja estimula com esperança o incremento de vocações para a vida contemplativa masculina e feminina.17 A vida consagrada é um dom do pai, por meio do Espírito, à sua Igreja, e constitui um elemento decisivo para sua missão. Expressa-se na vida monástica, contemplativa e ativa, nos institutos seculares, naqueles que se inserem nas sociedades de vida apostólica e outras novas formas.18 De maneira especial, a América Latina e o Caribe necessitam da vida contemplativa, testemunha de que só Deus basta para preencher a vida de sentido e de alegria. Em um mundo que continua perdendo o sentido do divino, diante da supervalorização do material, vocês queridas religiosas, comprometidas desde seus claustros a serem testemunhas dos valores pelos quais vivem, sejam testemunhas do Senhor para o mundo de hoje, infundam com sua oração um novo sopro de vida na Igreja e no homem atual”.19 Os povos latino-americanos e caribenhos esperam muito da vida consagrada, especialmente do testemunho e contribuição das religiosas contemplativas e de vida apostólica que, junto aos demais irmãos religiosos, membros de Institutos Seculares e Sociedades de Vida Apostólica, mostram o rosto materno da Igreja. Seu desejo de escuta, acolhida e serviço, e seu testemunho dos valores alternativos do Reino, mostram que uma nova sociedade latino-americana e caribenha, fundada em Cristo, é possível.20
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REFLETINDO
1. Como fazer um novo aggiornamento, como nos pede o Concílio,
conservando os valores basilares de nossas comunidades, superando as
dificuldades que impedem um novo vigor a muitas comunidades?
2. Como ajudar os membros de nossas comunidades a perceberem que os
problemas que nos atingem são mais de ordem espiritual do que de
administração?
3. Quais são os valores que não podem ser esquecidos pelas
comunidades, tendo como base seu núcleo identitário? Quais os novos
valores que podem ser agregados?
4. Como podemos colaborar eficazmente para que nossas comunidades
sejam evangelizadoras, sem perder as características fundamentais da
nossa vocação monástica e contemplativa?
1
Dom Gregório Paixão, OSB é monge beneditino do Mosteiro de São
Bento da Bahia e Bispo Auxiliar de São Salvador da Bahia.
2
Cf. 1Cor 1,27
3
PC 7-10
4
Cf. S.Th. II-II q. 179
5
Lc 14,33
6
GPS, ou Global Positioning System, é um Sistema de
Posicionamento Global, que tem como função básica identificar a
localização de um receptor que capte os sinais emitidos por seus
satélites na superfície terrestre, seja mar, terra ou ar.
7
Cf. Gn 1,10.12.18s
8
Jo 3,16
9
Mc 12,29-30
10
Lc 10,27
11
Cf. Lc 10,42
12
Cf. Mt 13,45; Lc 9,23
13
PC 7-16
14
Rm 12,4
15
PC 7-8
16
PC 9-10
17
DA 99c
18
DA 216
19
DA 221
20
DA 224
IDENTIDADE
MÍSTICA E MISSÃO
Falar
de mística é algo muito complexo, se quisermos abordar sua
história, suas dimensões e os vários sentidos nos quais essa
palavra foi assumida no decorrer dos tempos, em contextos profanos
como na perspectiva da espiritualidade cristã que nos interessa.
Procurada
na revelação bíblica, constatamos que a Sagrada Escritura ignora
este vocábulo, mas a segunda constatação é a de que essa
realidade ali existe profusamente. Então, refletir sobre “mística”
exige, antes de tudo, o esclarecimento do sentido que a palavra
“mística” possui e que desconhecida da Escritura, foi
introduzida na literatura cristã pelos Padres da Igreja de
Alexandria, que a tomaram do platonismo do século III.
O
Catecismo da Igreja Católica (n.2014) diz que a mística cristã
consiste no progresso espiritual que tende a uma união sempre mais
íntima com Cristo, através dos “santos mistérios” de Cristo e,
n’Ele, da Santíssima Trindade. E que Deus nos chama a todos a esta
íntima união com Ele, mesmo que graças especiais ou sinais
extraordinários desta vida somente a alguns sejam concedidos. E o
Vaticano II o confirma dizendo que “o aspecto mais sublime da
dignidade humana consiste na sua vocação para a comunhão com Deus”
(GS 19).
Falar
de mística nos leva, pois, à palavra “MISTÉRIO”, que é a
tradução das palavras gregas e latinas equivalentes a “Mysterion”
e “Mysterium”, diante do qual o homem se prostra em admiração
sagrada, emudece. Daí provém o vocábulo MÍSTICA, que mesmo no
sentido cristão, no decorrer dos tempos, passou por vários
significados.
São
Paulo usa a palavra mistério vinte vezes, referindo-se a “Cristo,
morto e ressuscitado”. Ao terminar a carta aos Romanos, fala do
mistério da salvação, “encoberto desde os tempos eternos, mas
agora manifestado pelos escritos dos profetas, por disposição do
Deus eterno, dado a conhecer a todas as nações, para que elas
obedeçam à fé”.
No
sec.III, segundo Clemente e Orígenes, “mystikos” designou o
sentido profundo das Escrituras, accessível somente à fé.
Outro
sentido dado a essa palavra é a profunda realidade dos Sacramentos,
que é ao mesmo tempo velada e revelada. Os Santos Padres chamaram os
Sacramentos de “mistérios”. Daí passarmos a falar em Mistérios
Litúrgicos.
“Ao
comunicar seu Espírito, Jesus fez de Seus irmãos, chamados de todos
os povos, misticamente os componentes de seu próprio Corpo, que é a
Igreja” (LG,7) o “Corpo Místico de Cristo”, simultaneamente
visível e espiritual.
No
século IV, São Gregório de Nissa dirá que mística é a plena
e pessoal apreensão, pelo cristão, consciente da gratuidade de Deus
quanto ao que é anunciado pela Palavra Divina e dado pelos
Sacramentos. Mística passa a ser considerada como a plenitude do
“homem novo”, da vida nova, vida divina comunicada em Cristo
morto e ressuscitado. Enfim, trata-se de um único Mistério, de
Cristo, presente nas Escrituras, celebrado nos Sacramentos da Igreja
e manifesto na vida de cada cristão.
Falamos de “Vida Mística
Cristã”, uma vez que a experiência mística está presente também
nas religiões pré-cristãs, e mais perto de nós, no Judaísmo: na
Lei, nos Profetas e nos Salmos. Lembro-me da bela expressão de São
Jerônimo: “O Antigo Testamento está grávido de Cristo”. Ouso
dizer que a mística judaica está também grávida da mística
cristã.
É
vida de santidade, a respeito da qual Dom Jean Leclercq, em seu livro
“São Bernardo místico”, esclarece um ponto importante ao nosso
tema: “Os santos são inumeráveis, e diversos: Deus vive em todos,
mas cada um não pode manifestar, para nós, todos os aspectos do
mistério divino no homem. Considerar um santo como tipo exclusivo da
santidade católica seria demonstrar que não se compreendeu as
dimensões da caridade de Cristo.Há santos que se revelam como tais
nas condições ordinárias da vida humana: eles possuem graças
invisíveis e dons espirituais extremamente elevados, mas não
constituem exceção quanto às leis que regem a natureza. Há
outros, ao contrário, aos quais o Senhor se compraz em gratificar
com dons extraordinários, com carismas maravilhosos: eles predizem o
futuro, lêem os corações, dominam os elementos, curam doentes,
fazem toda sorte de milagres”.
Podemos
perguntar, como se desenvolveu esta experiência mística,
experiência de fé, no cristianismo? Foi a partir de Pentecostes,
uma vez que Jesus Cristo não mais se fazia presente em sua natureza
humana, quando enviou o Espírito Santo prometido. ”... rogarei ao
Pai e ele vos dará outro Paráclito, para que convosco permaneça
sempre, o Espírito da Verdade, que o mundo não pode acolher, porque
não o vê, nem o conhece. Vós o conheceis, porque permanece
convosco e está em vós” (Jo 14,15-17).
Toda
vida da Igreja é uma “vida mística”, pois ela não só vive do
Mistério de Cristo, mas sob a ação do Espírito Santo o torna
presente em sua Liturgia, na oração particular de cada fiel e mesmo
nas diversas “devoções”, ao Santíssimo Sacramento, à Paixão
do Senhor, ao Divino Espírito Santo, a Nossa Senhora e aos Santos.
Nesta
Igreja, CORPO MÍSTICO DE CRISTO, somos inseridos desde o nosso
batismo. Ao longo de sua história, esta “vida escondida em
Cristo” se manifestou no testemunho dos Apóstolos, dos Mártires,
dos Confessores da fé, das Virgens, nos desertos, nas cidades, na
vida de cidadãos comuns, na vida monástica em suas origens e em sua
ulterior evolução, nas diversas formas de Vida Consagrada.
Realidade que encontramos nas Escrituras, nos escritos dos Padres da
Igreja, nos apoftegmas dos santos Anciãos, nas vidas dos Santos, nas
diversas Regras desta Vida Religiosa, também como objeto da
teologia. Sem dúvida, foi o Monaquismo, primeira forma de vida
cenobítica, que assegurou a objetividade da mística cristã na Vida
Religiosa em sua experiência ulterior, por nunca ter se afastado da
celebração litúrgica dos mistérios cristãos e da meditação das
Escrituras como base de sua espiritualidade; certamente guardando o
silêncio e a solidão reconhecidos, mesmo fora do cristianismo, como
meios essenciais à experiência de Deus. E esta experiência de
Deus, antes de ser conhecimento de uma doutrina, antes de ser empenho
moral, é uma história que se realiza, ao longo dos tempos, na vida
pessoal e na vida da comunidade eclesial.
Por
que essa união tão profunda com Deus é possível ao ser humano?
Foi a mística do Oriente cristão que procurou suas raízes
diretamente na antropologia bíblica, e mais precisamente nos
versículos da Sagrada Escritura, referentes à criação do homem,
feito “à imagem e semelhança de Deus”. Deus assim o criou
intimamente cristoforme, a fim de estabelecer com ele um laço
ontológico estreito, mediante a figura de Cristo, único rosto
visível do Pai: “quem me vê, vê aquele que me enviou” (Jo
12,45).
Comenta
São Gregório de Nissa, considerado o “pai da mística”: “Era
necessário que uma afinidade com o divino estivesse inscrita na
natureza humana, para que, mediante essa correspondência, o homem
tivesse em si o que o movesse para o que lhe é mais afim, o gozo dos
bens divinos. Devia, pois, ter alguma afinidade com o Ser do qual
participava, que tivesse em si, e para si, o princípio da eternidade
e, em razão dessa força inata que lhe fora dada, pudesse conhecer o
transcendente, desejando a eternidade divina” (O Homem,56).
O
pecado original de Adão e Eva tornou essa possibilidade como que
coberta com o limo das paixões humanas. Apesar de terem eles se
escondido, despidos da glória que lhes fora dada, o homem e a mulher
jamais perderam a tensão escatológica própria de sua natureza.
Jesus Cristo, a partir de sua encarnação, morte e ressurreição,
restaurou no coração do homem a imagem divina deturpada pelo
pecado, motivo porque todo cristão, a partir de seu batismo, assume
a face de Cristo, torna-se teofania , ou seja, ícone da divindade,
capaz de uma vida mística, de santidade.
Na
sua essência, o estado místico consiste em uma vibração
espiritual que transcendendo o meramente conceitual leva à
experiência do divino pelo conhecimento do amor; assim, o divino
penetra no íntimo da alma, transforma a personalidade em seus modos
de pensar, de agir, de sentir. Mas, para chegar à união
transformante, de conversão em conversão, o místico deve enfrentar
a via da ascese, combate por vezes rude, só possível com a graça
de Deus e séria vida de oração
Aliás,
os Pais do Deserto, seguindo Plotino, já viam esta conversão
interior em três etapas: a purificação, a iluminação, a união.
O ponto de partida é sempre a FÈ, virtude prática através da qual
o cristão conscientiza-se de que “nada deve antepor ao Cristo”
(RB,72,11) e, com Ele e n’Ele, chegar à plenitude de sua vocação.
A fé, de fato, dá a certeza da salvação e da parusía, mantendo
viva a tensão escatológica para o Reino de Deus.
Voltemos
à “Vida Consagrada”. Se a experiência mística não é
privilégio de nossa vida, podemos dizer que , mais do que qualquer
cristão, somos positivamente orientados para essa experiência de
Deus. Somos chamados a excluir, por nossos votos, fins intermediários
comuns a todos os homens, como o da “vontade própria” e da
castidade, a fim de tendermos só para Ele. Isto implica uma
perspectiva eclesial, MISSÃO para a salvação do mundo, pois não é
uma simples renúncia a uma tarefa ou a determinados bens em vista
apenas de nossa própria santificação.
È
Missão que abraça a responsabilidade do pecado universal, que faz
seu o “lamento de Adão”, como escreveu Silvano do Monte Athos em
seu poema. Não que nos separe das pessoas, mas fazendo-nos descer
também às profundezas de nosso nada, leva-nos a nos sentir,
realmente, como pecadores.
A
mística é una ou é múltipla? Não há unidade de experiência
mística, é algo muito pessoal, pois cada homem se realiza
pessoalmente em relação a Deus. “Como a luz passando por um
prisma de cristal se divide nas várias cores do arco-iris, assim
também a graça divina, comunicando-se às pessoas de diversas
camadas culturais, de diversos temperamentos e contextos, se divide
em uma experiência múltipla”.
Estamos
aqui entre pessoas “consagradas”. Uma única e múltipla
experiência de busca de Deus, a partir do batismo e também dos
diversos carismas particulares, pois “a cada um é dada a
manifestação do Espírito em vista do bem comum” (1Cor l2,7).
Seguindo os passos de Cristo, tendo como Mestres nossos fundadores e
como guias nossos Superiores, nossa tradição tem sido guardada e
atualizada especialmente a partir do Vaticano II. Constitui para nós
um desafio testemunhar em nossa época, “moderna”ou
“post-moderna, sem a perda de nosso carisma fundacional.
Aqui
encontramo-nos, carmelitas,franciscanos,clarissas,visitandinas,
concepcionistas, redentoristinas, sacramentinas, passionistas, Irmãs
de Sion, beneditinas e beneditinos, calmadulenses, trapistas,
cistercienses, premonstratenses, precedidos, desde os inícios da
Igreja, pelos Santos, Antão, Pacômio, Basílio, Agostinho, Bento de
Núrsia, Norberto Gennep, Romualdo de Camaldoli, Abades Clunyasenses,
Bernardo de Claraval, Francisco e Clara de Assis, Domingos de Gusmão,
Tomás de Aquino, Beato Eymar, Teresa de Àvila, João da Cruz,
Beatriz da Silva, Afonso.Lugório, Francisco de Sales e Joana de
Chantal, Paulo da Cruz e Theodoro Ratsbonne, o grande convertido do
judaísmo. E porque não lembrar outras mulheres, como Escolástica,
Mectildes, Gertrudes, Hildegardes, Catarina de Sena, Margarida
Alaquoque, Teresa de Lisieux, e mais perto de nós, Edith Stein?
Como
peregrinos, na amplidão deste mundo como nunca conhecido, cabe-nos
dar testemunho da vida a qual fomos chamados (as), separados (as)
para uma missão, a começar de uma vivência pessoal de busca de
santidade em uma comunidade concreta, celebrando os mistérios
divinos na Eucaristia diária e nas diversas Horas canônicas.
Comunidade, como “Sponsa
Christi”, na celebração dos santos mistérios , buscando na
leitura orante da léctio-divina ou diante do Santíssimo Sacramento,
o próprio Deus como princípio e norma de vida, com a graça do
Espírito Santo.
Comunidade
que amamos, mas nada romântica, lugar da “conversatio” em nosso
dia–a-dia. Um antigo abade chegou a dizer: “vita communis máxima
poenitentia est”, o que me assustou, quando noviça. Mas o tempo
foi me mostrando o outro lado da moeda: “Vede como é bom e suave
viverem juntos os irmãos” (Sl 132,1).
Em
nossas comunidades, como nos disse Tomás Merton, referindo-se aos
mosteiros, encontramos Marta, Maria e Lázaro. Podemos dizer, cada um
contemplativo a seu modo: Marta, servindo; Maria, aos pés de Jesus;
Lázaro sofredor, aguardando o dia do grande Encontro.
A
“vida mística”, por ser uma atitude existencial, uma certa
maneira de ser e viver em profundidade, supõe a contemplação e a
missão. Carregando as angústias de nosso tempo, cujas
características são muito próprias, angústias que nos afligem e a
tantos de nossos irmãos, para não dizer a toda humanidade,
coloquemo-nos a serviço deste “mistério de salvação” sempre
operante, por uma vida de oração suplicante, de “misteriosa
fecundidade”.
Se
somos segregados (as), separados (as) para uma missão, o somos
“para” a salvação do mundo pelo qual o Pai entregou seu Filho
muito amado. Este mundo, mesmo que o negue, tem “sede do Deus
vivo”, o único a dar uma resposta em face das calamidades de todos
os tempos.
Que
lhe poderemos oferecer em nossa vida monástica e “contemplativa”?
Em primeiro lugar, um “testemunho” de pessoas que tudo deixaram
pelo Reino de Deus, certas de que nossa cidadania está nos céus.
Este testemunho admirado por muitos, a muitos outros incomoda,
interroga, mesmo que não o digam. Em segundo lugar, aos que batem à
nossa porta, cabe-nos dar aos mais pobres a ajuda de que necessitam.
E a todos um ambiente de silêncio, de paz, de oração, de
hospitalidade. Também uma palavra de vida, de consolo, de
orientação, pois nosso tempo levanta problemas que não eram comuns
no passado. Pede-nos, dentro de nossas possibilidades, atualização
quanto ao conhecimento da realidade, mas também uma visão eclesial,
bíblica e teológica.
O
mundo precisa de apóstolos, missionários, santos, mas se não
houver quem peça ao Senhor da messe, quem os descobrirá? A monja
que se entrega à oração é como a chuva que rega a seara do
Senhor.
Unidos
na contemplação das realidades eternas e da beleza do mundo por
Deus criado, celebrando a liturgia que tem a arte de reunir textos
dispersos ao longo da Bíblia, permitindo-nos saborear o mistério de
Cristo no decorrer do ano litúrgico, apontemos a todos, o Caminho, a
Verdade e a Vida.
Que nossos Santos e especialmente nossa Mãe Aparecida, a mística por excelência cujas festas celebramos com devoção, nos ajudem em nossa missão e caminhada para o Pai. Amem!
BIBLIOGRAFIA
DE APOIO
Mosteiro
Mãe de Cristo – Reflexões sobre Mística Cristã
Leclercq
Jean – “Bernardo Místico”
Barsotti
Divo – “Monaquismo e Mística” – Ed. Subiaco –Juiz de Fora
L’Hermitte
Jean- “Mystiques et faux mystiques” – Blond & Gay
Bento
XVI – Jesus de Nazaré, volI – “Consagra-os na verdade”
Catecismo
da Igreja Católica – Gráfica Coimbra
Dicionário
de Mística – Ed. Loyola
Ir.
Mectildes Vilaça Castro, OSB-
Mosteiro de
Nossa Senhora das Graças- Belo Horizonte
-
CRB – APARECIDA- São Paulo- 16-19 junho de
2012.
Mística na Vida Monástica e Contemplativa
Mística na Vida Monástica e Contemplativa
A
programação do nosso encontro previu para o dia de hoje um estudo
ou, talvez melhor, uma meditação sobre “identidade, mística e
missão da vida monástica e contemplativa”. São três dimensões
que se completam e compenetram mutuamente, tanto assim que faltando
uma das três a vida monástica e contemplativa se tornaria uma
interrogação sem resposta. Convidado a refletir sobre a dimensão
mística da vida monástica, lembrei-me de uma advertência de Hans
Urs Von Balthasar: quem se ocupa do tema da mística entra num
labirinto, pisa num campo minado. Também Simone Weil adverte os
estudiosos da mística, embora em termos menos dramáticos: quem se
dedica ao estudo da questão da mística deverá observar uma
exatidão maior do que na matemática.
De
fato, os estudos sobre a essência da mística são numerosos e
divergentes. Já no século passado a interpretação do fenômeno
da mística passou por uma evolução muito grande que ainda
continua. Na primeira metade do século XX os estudiosos, talvez a
maioria deles, pensavam poder descrever o fenômeno da mística quase
exclusivamente a partir das várias disciplinas teológicas. No
entanto, mais nas últimas décadas do século a literatura em torno
da mística cresceu consideravelmente devido ao aumento do número
dos filósofos e cultores de outras ciências que se debruçam sobre
a questão da mística. Da fenomenologia da religião passou-se à
fenomenologia da mística. Afinal, o fenômeno místico não escapa
de considerações antropológicas que por sua vez invocam o serviço
de tantas outras ciências. Neste sentido torna-se compreensível a
visão que Dorothee Sölle tem da mística: união mística com
Deus consiste principalmente “num exercitar-se na maneira de ver
como Deus vê”, tornar-se livre para um outro modo de viver: “veja
o que Deus vê. Ouça o que Deus ouve. Ria onde Deus ri. Chore onde
Deus chora”. Nesta perspectiva torna-se compreensível que a visão
mística de Dorothee Sölle não é alheia às situações, mesmo
sociais e políticas, existentes no mundo. Assim ela publicou um
livro sobre uma teologia da criação, livro que em numa tradução
recebeu o título: Deus precisa de homens.
‘Se quisermos dar uma outra resposta à criação, no sentido de
uma ternura para com tudo o que vive na nossa terra, e se quisermos
tornar-nos co-criadores como foi planejado: criados à imagem de
Deus, então deverá ficar claro que a criação nunca aponta apenas
para a nossa origem, mas também diz respeito ao o nosso futuro. A
criação que começou com a primeira criação ainda não chegou ao
fim.1
A
visão que Sölle tem da mística aparece também nos textos de
grandes místicos que ela cita. Assim ela cita um texto de Mechtilde
de Hackenborn, monja cisterciense do mosteiro de Hefta:
‘Uma vez ela pediu ao Senhor que Ele lhe desse algo que a faria
lembrar-se constantemente dele. Ela recebeu do Senhor esta resposta:
“Vê, Eu te dou os meus olhos para que tu com eles vejas todas as
coisas, e os meus ouvidos para que tu com eles ouças todas as
coisas; também te dou a minha boca para que através dela passe tudo
o que tu, falando, orando ou cantando, tens a dizer. Dou a ti meu
coração para que por ele passe tudo o que pensas e amas a mim e,
por causa de mim, a todas as coisas”. Nesta palavra a alma se
interiorizou totalmente em si, de modo que parecia como se ela visse
com os olhos de Deus e ouvisse com seus ouvidos, e falasse com a sua
boca, e não sentisse outro coração que o coração de Deus. Também
depois disso foi-lhe dada frequentemente essa experiência’.2
A
visão que Sölle tem da mística aparece claramente na terceira
parte do seu livro Mística e resistência –
Tu grito silencioso. O texto bíblico que lhe
serve de fundamento trata da vocação de Moisés: ‘Eu vi a
opressão de meu povo no Egito, ouvi o grito de aflição diante dos
opressores e tomei conhecimento de seus sofrimentos’ (Ex 3,7). Sem
presença viva do Senhor, descoberta na sarça ardente, uma teologia
torna-se facilmente ideologia. Mas quando o próprio Mistério funda
o saber teológico, este mantém-se palpitante, pensa muito próximo
da vida e não abdica na dor, ajudando os sonhos e as utopias que
abrem perspectivas para a Gloria Dei homo
vivens como se expressava santo Irineu.3
A teologia cristã não mereceria seu nome se não brotasse da fé
viva. Isto supõe inclusive que a teologia se vincula ao contexto
histórico com todos os elementos permanentes que brotam de mensagem
da cristã que a ela tem a função de evidenciar numa nova luz.4
Não
há dúvida de que a mística, sendo experiência de Deus, se orienta
para Deus. Mas esta orientação não implica num afastar-se da
realidade da existência humana. Neste sentido é muito
significativo que o Concílio Vaticano II foi convocado por João
XXIII para seguir a recomendação de Jesus quando nos exorta a
distinguir claramente os sinais dos tempos (Mt 16, 3). Paulo VI
retomou a expressão aggiornamento
do seu predecessor, confirmando-o como critério diretivo do Concílio
Ecumênico ... como um estímulo para a sempre renascente vitalidade
da Igreja, para sua sempre vigilante capacidade de estudar os sinais
dos tempos e para sua sempre jovem agilidade de ‘examinar tudo e
guardar o que for bom’; e isto sempre e em todas as partes”
(Ecclesiam Suam 19).
A Constituição Pastoral Gaudium et Spes,
dará séquito a essas diretivas de João XXIII e Paulo VI:
‘Para desempenhar tal missão, a Igreja a todo momento, tem o dever
de perscrutar os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do
Evangelho, de tal modo que possa responder, de maneira adaptada a
cada geração, às interrogações eternas sobre o significado da
vida presente e futura e de suas relações mútuas’ .5
Dizer
Deus ...
Cada
um de nós aprendeu a dizer Deus
à sua maneira. É uma questão de espiritualidade. A aprendizagem
normalmente começa na família em que aprendi dizer Deus: Deus de
minha mãe, Deus de meu pai. Depois o Deus da minha vida, o Deus que
é meu auxílio... Neste sentido a Sagrada Escritura nos oferece
numerosas perspectivas.6
1.
O Deus da minha mãe
No livro
de Gênesis: Eva ficou grávida e deu à luz um filho e disse: ‘Com
a ajuda de Deus, o Senhor, tive um filho homem” ( 4, 1). Depois
‘Deus me deu outro filho para ficar no lugar de Abel, que foi morto
por Caim’ ( 4,25). O anjo do Senhor disse a Agar: ‘Você está
grávida, e terá um filho, e porá nele o nome de Ismael’ (16,11).
Abrão tinha cem anos quando seu filho Isaac nasceu: ‘O Senhor me
fez dançar: os que souberem disso dançarão comigo’ (21,6). Aos
filhos que nascem recebem da mãe no próprio nome a referência a
Deus para levá-los a partir da sua origem em contacto com o Poderoso
que traz a vida deles. Quando Raquel percebeu que não podia ter
filhos disse ao marido: ‘Dê-me filhos, se não, eu morro. Jacó
ficou zangado e disse: Você está pensando que eu sou Deus?’
(30,1-2). O Poderoso abre o seio materno (29,31; 30,22) mas também
pode fechá-lo (16,2). A sucessão de gerações é no livro de
Gênesis vista como uma revelação de Deus. O que faz com que os
acontecimentos e as relações familiares estão fundados na obra de
Deus à qual devem sua existência.
2. O
Deus do meu pai
Também o pai consagra
seu filho na relação com Deus. Assim lemos no Canto de Moisés:
‘O Senhor é o meu forte defensor;
foi ele que me salvou.
Ele é o meu Deus, eu o louvarei.
Ele é o Deus do meu pai,
e eu
cantarei a sua grandeza.
‘Meu
forte defensor’ é neste verso paralelo ao ‘Deus do meu pai’.
Isto quer dizer: meu pai me iniciou tanto na relação com seu Deus
que este se tornou o meu Deus.
3. O
Deus da minha vida
Meu
Deus está tão intimamente relacionado com o crescimento da minha
pessoa que até a minha relação com Ele está expressa no meu nome
(Eliezer, Elishua, Abida, Abitov, Achisamek). O Poderoso está
intimamente ligado à minha formação e minha existência. Ele é
meu Poderoso. Como uma parteira me fez sair do ventre materno para
dentro do mundo desprotegido. De agora em diante Ele mesmo é como um
seio materno que me envolve. Os salmos possuem uma profunda
ressonância mística. O mistério do homem chama-se Deus, e o
mistério de Deus não tem outro nome que o nome que o homem para
isso encontrou: amor.
‘Foste tu quem me tirou do ventre,
tu me tinhas confiado
aos peitos de minha mãe;
desde o seio me lançaram a ti,
desde o ventre materno tu é o meu Deus’ (22,10-11).
( 22,10-11)
4. Meu auxilio
Meu Deus é à força
da minha vida. Por isso eu lhe peço socorro quando as forças
diminuem e abalam minha vida, quando meus inimigos acabam com minha
resistência, quando as forças vitais escorrem de mim.
Ajuda-me ó Senhor, meu Deus!
Salva-me por causa do amor que
tens por mim (109,26).
O Senhor meu Deus,
olha para mim e responde-me!
Dá-me forças novamente
Para que eu não morra (13,4).
Ó meu Deus, livra-me dos meus inimigos! (59,2).
Levanta-te, Senhor!
Salva-me, meu Deus! (3,8)
No meu desespero,eu clamei ao Senhor
E pedi
que ele me ajudasse (18,7).
Meu Deus é a
resistência da minha vida, minha força, igualmente próximo de mim
como a batida de meu coração, minha respiração. Meu Deus se torna
a fonte da minha vida no momento que eu me confio a Ele. Quando me
proteje o Poderoso, ele se torna meu Poderoso. É por isso que em
muitos salmos essa confiança é verbalizada.
Guarda minha vida, pois sou fiel a ti,
Salva o teu servo que em ti confia (86, 2).
Assim minha alma te canta sem calar-me,
Senhor meu Deus, eu sempre te darei graças (30,13).
Eu me aproximarei do altar de Deus,
Ao Deus de meu prazer e alegria.
Eu te darei graças ao som da cítara,
Deus, Deus meu (43,4).
Tu és meu Deus, eu te dou graças,
Deus meu, eu te exalto (118,28).
A
linguagem da vida monástica e contemplativa
Talvez
seja oportuno esclarecer os termos que constituem o título das
reflexões que vamos iniciar, apesar de eles serem comuns e nada
extraordinários.7
Linguagem
Em
primeiro lugar a palavra linguagem.
A linguagem que a pessoa utiliza traduz a consciência que ela tem
daquilo que ela intenciona dizer ou comunicar. A consciência
intencional pode ter três modalidades: a inteligência normal de
acordo com as condições que uma pessoa tem, a ciência à qual se
dedica, e o símbolo.
Diariamente temos inúmeras impressões, experiências
suscitadas pela realidade que nos cerca. Acontece frequentemente que
a consciência humana não consegue absorver ao mesmo tempo todo esse
fluxo de experiências. Conscientemente ou inconscientemente nós
fazemos uma seleção. Cada um se abre espontaneamente a determinadas
facetas da realidade. Essa abertura seletiva chama-se “consciência
intencional’. É uma consciência que se prende com atenção a um
significado que pescamos da riqueza confusa das nossas experiências.
A
primeira modalidade da nossa consciência intencional é a da nossa
inteligência normal da vida cotidiana, das nossas relações
humanas. Por exemplo, uma irmã da comunidade fez um curso, ou
precisou ir ao médico. Voltando para o mosteiro, pede a benção à
abadessa que pergunta como que foi o curso, ou o que o médico achou.
Estabelece-se um diálogo em que a abadessa ou priora se desliga, por
assim dizer, de todas as suas preocupações, para dedicar a sua
atenção para a irmã que está voltando em casa. A comunicação
entre as duas se situa no campo da inteligência humana normal sem
perspectivas científicas ou simbólicas. Trata-se do senso comum que
possibilita as conversas, troca de impressões das coisas da vida.
Pode acontecer que as evidências da vida de cada dia são diferentes
quando os interlocutores pertencem a culturas diferentes das quais
cada uma tem as próprias evidências. Neste caso podem surgir
incompreensões que dificultam o diálogo.
É
claro que todos os seres humanos, mesmo filósofos e cientistas,
tanto como pessoas comuns se movem no campo da consciência
intencional de cada dia.
A
segunda modalidade da consciência intencional é a da ciência. Um
cientista dirige sua atenção a um aspecto bem especifico das
coisas que o rodeiam. O cientista dirige sua atenção para as causas
dos acontecimentos, do desenvolvimento, dos fenômenos. Ele procura
descobrir as leis que regem a vida humana, o mundo, etc. Para isto
ele formula hipóteses e teorias. São dois mundos irredutíveis
embora aos poucos também a linguagem das ciências vai entrando na
vida de cada dia. No fundo o cientista não quer isolar-se do mundo
comum.
A
terceira modalidade da consciência intencional é a do símbolo.
Esta modalidade tem o papel principal quando se trata de mística. Há
gestos rituais carregados de simbolismo. Os muçulmanos que na
mesquita se prostram de joelhos tocando o chão com a cabeça
interpretam essa posição do seu corpo como um gesto simbólico. O
gesto de versar água sobre a cabeça de uma pessoa, criança ou
adulto, o ritual do batismo cristão supõe uma consciência
intencional simbólica. A atenção se dirige para algo na realidade
que, ao mesmo tempo, não pode e ao mesmo tempo pode ser captado
pelos sentidos. Trata-se de uma realidade que, sem poder ser
imaginada, se apresenta à consciência intencional através de um
gesto que é visível aos nossos sentidos.
Assim
há poesias que ativam a consciência simbólica de leitores. Assim é
a recente poesia de Márcia D’Angelo.8
Uma busca inacessível do transcendente
Emoliente de um emocional à procura do racional
Dois pedaços de mim entregues ao Mistério
Outro pedaço no encalço, descalço, percalço
A me desesperar, sem hesitar
Jéssica,
a menina do sorriso triste,
A grande experiência mística
Catalisadora de todas as demandas
Expectativas perenes, solenes
Transformou os problemas em questões menores
Refletiu todos os temores
Manifestou, provocou emoções maiores
Pontuadas de ternura e muita compaixão
Se
as considerações sobre a consciência simbólica dizem algo de
essencial sobre o caráter da experiência mística na sua múltipla
aparição podemos concluir que mística jamais é uma tentativa de
fugir da realidade, isto é, do aqui e agora da história. Sabemos
que durante um período do século XIX a mística era considerada
como um fenômeno obviamente estranho à realidade do mundo. Talvez
porque existisse a idéia de que a mística era uma fuga. Esta
interpretação já é desmentida na história onde apareceram
místicos que também foram fundadores reformadores de ordens
religiosas em benefício da humanidade nos seus contextos históricos.
E mesmo em relação a uma vida de silêncio e solidão nos mosteiros
e conventos de vida contemplativa podemos dizer que no mundo inquieto
de hoje ninguém que crê na oração vai dizer que se trata de uma
fuga. É mais um participar nos altos e baixos da sociedade humana. A
experiência de Deus aponta para Deus e quem aponta para Deus não
rompe com a realidade concreta pelo contrário, aponta para o
essencial, para a realidade que sustenta as coisas ao redor. A
verdadeira oração mesmo fraca, apagada, árida nos confere uma
verdadeira liberdade interior e nos abre aos horizontes da humanidade
e da criação ‘que aguarda ansiosamente a manifestação dos
filhos de Deus’. A verdadeira oração não termina em nós.9
Karl Rahner certamente não falava especificamente da vida monástica
e contemplativa quando escrevia: ‘O homem espiritual de amanhã
será um místico ou não será mais’.10
São palavras que dizem o mundo foi criado em função da aliança de
Deus com o homem. Desde o princípio Deus tem um plano em relação
com a história do mundo e tudo existe orientado para a realização
desse plano. O que dá sentido à linguagem da vida monástica e
contemplativa.
Mística
monástica
Um dos melhores
conhecedores contemporâneos da vida monástica, Bernard McGinn,
indica como características essenciais da mística dessa vida a
solidão (solitudo)
que aspira ao silêncio (silentium),
a lectio divina como um manter-se meditativamente orante em textos
espirituais, e oração e contemplação que, como frutos, brotam
disso. Quem vê a mística só como fenômeno e experiência
extraordinários não deixará de encontrá-la na história da vida
monástica. Mas não é nisso que o movimento monástico define a sua
identidade. A vida monástica se define em vista da necessidade de
permanecer em Deus por Cristo como os ramos enxertados na videira. É
o que define a vida cristã. Nesta perspectiva o Papa citou um texto
num dos seus costumeiros encontros dominicais com os fieis na praça
de São Pedro:
Numa
carta escrita a João, o Profeta, que viveu no deserto de Gaza no
século V, um fiel formula a seguinte pergunta: como é possível
manter unidos a liberdade do homem e o fato de nada podemos fazer sem
Deus? E o monge responde: se o homem inclina seu coração para o
bem, e pede ajuda a Deus, recebe a força necessária para realizar a
própria obra. Por isso, a liberdade do homem e o poder de Deus
procedem juntos. Isto é possível, porque o bem procede do Senhor,
mas ele é levado a cabo graças aos seus fiéis. O verdadeiro
‘permanecer’ em Cristo garante a eficácia da oração, como diz
o beato cisterciense Guerrico d’Igny: “Ó Senhor Jesus ... sem ti
nada podemos fazer. Com efeito,Tu és o verdadeiro jardineiro,
criador, cultivador e guardião do seu jardim, que plantas com a tua
palavra, irrigas com o teu espírito e fazes crescer com o teu
poder”.11
Não há dúvida que o
monasticismo do Ocidente na sua origem é tributário do Oriente
cristão.12
Basta lembrar Antônio, Santo’Antão, o eremita do deserto do
Egito. Sua biografia escrita por Atanásio de Alexandria será mais
tarde uma contribuição para a conversão de Agostinho e fez São
Jerônimo formar comunidades femininas em Belém. É provável que a
mesma Vida de Antão tenha influenciado a espiritualidade de Martinho
de Tours, o pai do movimento monástico na Gallia. Nascido em
Panônia, na atual Hungria, seguiu seu pai na carreira militar. Ainda
catecúmeno é conhecido o seu gesto de dividir o próprio manto
militar com um mendigo junto às muralhas de Amiens: em sonho Cristo
lhe apareceu vestido desse manto. Dois anos depois Martinho foi
batizado. Durante algum tempo viveu como eremita para depois
tornar-se discípulo de Hilário, bispo de Poitiers. Fundou em Ligugé
o mosteiro mais antigo da Europa. A pressão do povo o fez bispo de
Tours e tomou a iniciativa de fundar uma comunidade monacal em
Marmoutiers. Outro vínculo, talvez o mais importante, entre o
monacato oriental e o Ocidente foi João Cassiano.13
Nascido na região fronteiriço entre Romania e Bulgária perto do
Mar Negro , teve sua formação monástica em Belém. Da Terra Santa
ele partiu com seu amigo Germano para o Egito onde durante mais de
dez anos fez visitas a eremitas e mosteiros. Partiu para
Constantinopla onde foi ordenado diácono por João Crisóstomo.
Recebeu em Roma a ordenação sacerdotal. Estabeleceu-se em Marselha
onde fundou mosteiros masculinos e femininos. Seus escritos oferecem
uma síntese da doutrina de Origenes e Evágrio que tiveram profunda
influência na ascese e mística no Ocidente. Um cardeal chamou
Cassiano de ‘mestre perfeitíssimo da perfeição monástica’.
Para Cassiano a oração do Pai Nosso contém toda a perfeição.
‘Ela eleva aqueles que com confiança de filhos a recitam para um
plano superior desta oração flamejante de que poucos têm
conhecimento e experiência porque é inefável. Isto vai além dos
sentimentos humanos; não se distingue mais nenhum som de voz ou
movimento da língua ou expressão de palavras. Desta experiência
também Nosso Senhor ofereceu uma imagem semelhante na oração que
ele realizou, solitário e retirado na montanha, ou no silêncio, ou
também quando rezou na sua agonia, enquanto Ele – exemplo
inimitável de intensidade – suava sangue’.14
Pelo
ano de 400 surgiu mais um centro de espiritualidade monástica na
ilha de Lérins sob a direção de Honorato (ca.375-430) que para
seus contemporâneos era como a caridade encarnada visivelmente e que
estava tão plenificado por Cristo que seu nome lhe vinha aos lábios
até enquanto dormia. A pequena igreja de Lérins é o primeiro
santuário conhecido que foi dedicado à santíssima Trindade. Lérins
tornou-se um centro de formação de bispos e que irradiava santidade
e cultura. Foi em aí que São Patrício, missionário da Irlanda,
recebeu a sua formação.
Santo
Agostinho
Aurélio
Agostinho (354-430) foi batizado por Ambrosio em 387. Depois ele
iniciou espontaneamente com amigos uma vida de monge. Ordenado
sacerdote em 391 fundou um segundo convento onde escreveu a regra
monástica mais antiga do Ocidente. Mesmo como bispo vivia em
comunidade junto com seus presbíteros e diáconos. É de
fundamental importância para conhecer a sua espiritualidade a
narração da sua conversão (Confessiones).
Neste livro aparece a antiga convicção de que a felicidade é o fim
é o objetivo mais elevado da vida humana. Agostinho vê a vida
humana como um itinerário em direção à sabedoria e ao
conhecimento da Verdade não passageira. A partir da sua conversão
Jesus Cristo está no centro das suas experiências e reflexões. Com
S. Paulo ele o coloca no quadro da Igreja que como comunidade de
todos os fiéis forma o Corpo de Cristo. Esquematicamente podemos
seguir sua visão da vida mística.15
Oração
é um elevar-se para Deus. Nela Agostinho se deixa conduzir pelas
faculdades da alma, o conhecimento, o querer e os afetos. Os degraus
ele identifica com virtude, repouso, entrada na luz e permanência na
luz.. Às vezes ele enumera sete degraus: os sete dons do Espírito e
as sete (mais uma) bem-aventuranças: eles conduzem à contemplação
que abre para a ação ao serviço da comunidade humana. A oração
constante é o ponto de partida e o motor da
ascensão para Deus. Para Agostinho a oração não é um momento
extraordinário, mas o desejo constante da intimidade com Deus. Esta
intimidade com Deus se expressa também em boas obras a favor dos
homens. A oração é uma elevação afetiva do coração para Deus.
Elevar-se significa que o homem deve ir além de si mesmo para
encontrar-se com Deus.
Meditação
é a atividade de pensar e refletir à qual
alguém que ama se entrega. No tempo de Agostinho consistia em
recitar ou cantar os salmos durante o trabalho, na leitura da Sagrada
Escritura e em ruminar os mandamentos de Deus. Na medida do possível
Agostinho preferia escrever suas meditações para não
esquecê-las.
Contemplação
é manter o olhar para Deus com admiração e deferência.
Contemplação dá uma experiência da presença de Deus. É uma
relação íntima com Deus: viver de, com e em Deus. Esta intimidade
é um dom que o homem não pode apropriar-se.
Não
é possível tocar em Deus com a nossa razão, mas sim com o nosso
espírito, com o olho purificado do nosso coração. O nosso olho é
purificado pelo amor ao próximo, pela fé, pelo repouso e silêncio.
É uma preparação para ver o invisível. Pessoas agitadas fazem bem
procurar repouso junto a contemplativos.
Embora
nesta terra a contemplação seja imperfeita, não há um rompimento
entre a contemplação terrestre e celeste. A contemplação consiste
na procura e na descoberta da Verdade, de Deus como Ele é, o próprio
Amor. A contemplação de Deus é a virtude mais alta.
‘Ao procurar meu Deus entre as coisas visíveis e corporais, sem
encontrá-lo; ao buscar sua substância em mim mesmo, como se fosse
semelhante a mim, sem igualmente o achar, percebo que meu Deus é
alguma coisa acima de minha alma. Portanto, para atingi-lo “meditei
essas coisas, e minha alma se expandiu acima de si mesma”. Quando
minha alma poderia atingir acima de si mesma? Se permanecesse em si,
nada veria a não ser a si mesma; e por se ver, nem por isso veria
seu Deus. Digam os que me insultam: “Onde está o teu Deus?”
digam-no. ... A casa de meu Deus está acima de minha alma; ali ele
habita, de lá me olha, de lá me criou, me governa,cuida de mim, me
incita, chama, dirige, conduz e guia’ 16
Êxtase
é outro ponto sobre o qual Santo Agostino
fala baseando-se nas suas próprias experiências. Em todos os seus
escritos o mistério inefável de Deus volta regularmente.
Conhecimento de Deus é agora ver como enigmas num espelho (1 Cr
13,12). Agostinho cita esse texto noventa vezes. De acordo com sua
visão só Moisés e S. Paulo viram a Deus a durante vida deles no
mundo. ( Num 12, 6-8 e 2 Cr 12, 1-4). Viram Deus num êxtase.
Agostinho admite a possibilidade de que também outras pessoas
espirituais tenham tido uma visão imediata de Deus. Deviam ter um
olhar espiritual mais forte do que ele mesmo para poder estabelecer a
contemplação do seu coração no que Deus em si mesmo é. Mesmo
assim haveria uma diferença em ver e compreender. Ver é ver algo
de Deus. Compreender a Deus é impossível. Como criaturas temos
condições de ter contacto com Deus sempre por iniciativa dele. Mas
não conseguiremos manter esse contacto por muito tempo.Temos que
voltar para o ser humano e seu mundo, pois ninguém pode ver a Deus e
continuar vivendo (Ex 33, 20).17
O
êxtase religioso não deve ser confundido com o arrebatamento por
causas naturais que pode acontecer como consequência de um pânico
ou angústia. Quando acontece, seus frutos podem manifestar-se em
aumento de energia espiritual, alegria, paz, reconciliação,
confiança e esperança que é feita também de consciência e
projetividade em termos do reinado de Deus.
União
com Deus nunca é total já pelo fato de que
Deus nunca pode ser um objeto
de uma experiência humana.18
Pela mesma razão a experiência de Deus não é uma experiência
especial e, menos ainda, especializada. Ninguém pode ser
especialista em experiência de Deus. Seria uma idolatria porque se
colocaria a si mesmo como fundamento do próprio Deus atingindo-o de
maneira estritamente racional. O próprio êxtase é descoberta de
uma douta ignorância que
supõe um ardor e uma pureza interior.19
Faz lembrar as palavras de São Paulo: ‘Eu vivo, mas não eu: é
Cristo que vive em mim’ (Gl 2,20). A experiência de Deus coincide
paradoxalmente com a experiência da própria contingência: cum
tangere, ‘tocar a tangente’, tocar os
próprios limites o que faz abrir a consciência e faz perceber um
‘além disso’ que transcende toda limitação. Reconhecer esta
condição humana, precária e ao mesmo tempo gloriosa, provoca uma
reviravolta em todos os nossos valores. É uma experiência própria
identidade. Poderá haver algo de mais libertador que fazer a
experiência do último fundamento do que ele é? É neste ponto que
alguém descobre a sua solidão – a beata
solitudo – que é o contrário do
isolamento porque faz descobrir a solidariedade. É aceitar a
condição humana, a própria e a dos outros, porque ‘Deus se fez
homem e habitou entre nós’. Na medida em que sou verdadeiramente
só, encontro Deus não como objeto mas no, dizer de santo Agostinho,
como intimior intimo meo,
o mais intimo de mim mesmo.
O
futuro da vida contemplativa
Contemplar
significa olhar longamente com admiração. Na filosofia grega, antes
do neoplatonismo, é sinônimo de intuição racional. A partir dos
autores neoplatônicos como Plotino, e também no cristianismo, o
termo refere-se à reflexão da alma sobre si mesma e à sua gradual
purificação para aproximar-se de Deus. Neste sentido a palavra vai
aos poucos apontar para duas perspectivas: na corrente tomista que
considera a contemplação como uma ação do intelecto que gera o
amor, a outra na corrente voluntarista representada por S. Boaventura
e Duns Scoto (+ 1308) que considera a contemplação como amor e
fruto de amor. Depois a contemplação é interpretada como uma forma
superior de conhecimento que se caracteriza pela simplicidade do ato:
intuição da verdade ou repouso tranquilo no objeto conhecido.20
Principalmente este último sentido podemos reconhecer numa página
do Diário pessoal de Dag Hammarskjöld, (1905-1961), quando era
secretário geral da ONU.
Em 4 de agosto de 1959,
na solidão do seu apartamento em Nova York, ele escreve no seu
diário pessoal:
‘A simplicidade consiste em conhecer a realidade não em relação
a nós mesmos, mas na sua independência sagrada. Simplicidade é
ver, julgar e agir a partir do centro de nós mesmos. Quantas coisas
então vão cair fora! E como não vai cair todo o resto em seu
lugar!
Repousando no centro do nosso ser, encontramos um mundo em que tudo,
da mesma maneira repousa em si mesmo. Daí a arvore torna-se um
mistério, a nuvem uma revelação, o ser humano um cosmos - cuja
riqueza enxergamos só de vez em quando, num relâmpago. Para o
simples a vida é simples, mas abre para ele um livro em que nunca
passaremos além da primeira sílaba’.21
Uma
vida contemplativa é, portanto, uma vida marcada pela contemplação.
A expressão vai estendendo o seu sentido ao conjunto de pessoas cuja
vida é uma procura de contempla-ção.22
Thomas
Merton (1915-1968), um dos mais marcados escritores místicos do
século passado. Convertido ao catolicismo entrou em 1941 na abadia
dos trapistas. Em 1948 ganhou fama com seu bestseller The
Seven Storey Mountain (
A Montanha dos Sete Patamares), que é uma
autobiografia em que ele descreve os anos da sua juventude, sua
conversão e os primeiros anos da sua vida como monge trapista. Um
tema preferido das suas publicações é a contemplação. Já em
1948 aparece uma primeira publicação sobre esse assunto: ‘What
is Contemplation?’ Mas o livro é pouco
original. O tema teve uma atenção melhor em Seeds
of Contemplation (Sementes
de contemplação), mas que alguns anos
depois mereceu uma publicação de New Seeds
of Contemplation (Novas
sementes de contemplação).
Mas
o primeiro livro sobre contemplação merecia uma revisão e
aprofundamento. O próprio Thomas Merton escreve no seu Diário
pessoal (12.07.1959), referendo-se à edição de 1948:
‘Como
me enganava ao considerar a contemplação só como parte da vida do
homem. Para um contemplativo a vida toda é contemplação’. Depois
de ter trabalhado em 1959, o manuscrito ficou sem ser publicado até
uns últimos remanejamentos feitos pelo autor em 1968. Merton não
chegou a ver a publicação do seu último livro ao qual deu o titulo
de ‘A experiência interior’. O subtítulo ‘Notas sobre a
Contemplação’ adverte o leitor que não deve pensar que o livro é
um tratado completo e definitivo sobre a contemplação, pois este
nunca será publicado. No que diz respeito a mística e contemplação,
a palavra e o silêncio estarão sempre um oposição, mas também se
fecundam mutuamente. Tendo entregado o texto para ser publicado,
Thomas Merton viajou para a Índia afim de participar de um encontro
com monges budistas, durante o qual morreu. Apresentaremos alguns
tópicos de Merton sobre mística e contemplação como um estímulo
a um aprofundamento pessoal e comunitário dos contemplativos (as)
aqui presentes.23
Não podemos dizer que
o nosso mundo passa por um período de paz e sossego. Basta dirigir
a nossa atenção aos continentes ocidentais. No segredo do nosso
interior a paz que desejamos, é ameaçada mesmo quando nos é
oferecida uma solução dos problemas correntes. Fenômeno estranho
nesta era que atravessamos. Basta limitar-nos ao nosso Brasil com os
avanços que foram feitos no terreno público que, porém, de outro
lado tornam mais visíveis e prementes os problemas que continuam
atingindo o nosso povo. Tem-se às vezes a impressão de que os
avanços da civilização do mundo secularizado fazem aumentar os
problemas nas diversas dimensões da vida pública e que não deixam
de repercutir nas diversas manifestações do fenômeno religioso. É
Interessante observar que a própria interpretação secularizante da
realidade recorre a uma linguagem religiosa para apresentar
perspectivas de um mundo melhor. Lembro-me de ter lido expressões
como a mística do PT, a mística da psicoanálise. A história nos
oferece numerosos testemunhos que viveram a esperança cristã nos
infernos escuros e terrificantes da existência humana. Neste sentido
lembro-me de um confrade, carmelita, frei Tito Brandsma, professor de
filosofia e mística na universidade católica da Holanda que morreu
no campo de concentração de Dachau, em 1942, vítima do sistema
nazista sobre o qual ele se tinha pronunciado numa palestra em 1939:
‘Vivemos num mundo em que até se chega a condenar o amor, dizendo
que é uma fragilidade que deve ser superada. Nada de amor, mas
desenvolvimento da própria força. ... Embora o neopaganismo não
queira mais amor, mesmo assim nós venceremos este paganismo com o
amor’.24
Preso para ser julgado, escreveu na cela da prisão uma poesia.
‘Quando
te contemplo, ó Jesus / sinto de novo que eu te amo / e que também
teu coração me ama, / como sendo o teu amigo predileto. / Sem
dúvida, isso exige maior coragem para sofrer/ mas para mim todo
sofrimento é bom/ pois assim eu me pareço mais contigo/ e é o
caminho que me conduz ao teu Reino. / Sinto-me feliz no meu
sofrimento/ porque já não o vejo como sofrimento / mas como uma
graça toda especial, que me une contigo, ó meu Deus. / Ó deixa-me
aqui quieto e sozinho / neste cantinho tão frio e gelado / e não
permita que alguém me visite, / pois estar a sós não me cansa. / É
que tu, ó Jesus estás comigo / nunca senti a tua presença tão
real como agora/ Fica comigo, fica comigo, ó doce Jesus / a tua
presença afasta de mim todo mal’.
Estamos
um tanto esquecidos de que a esperança nasce da cruz de Cristo. Para
isto será necessário que haja minorias criativas. Mas para serem
criativas é necessário que haja um espaço, é o espaço da Igreja
e além da Igreja também no espaço da sociedade. É preciso
descobrir o alcance teologal da fé, da esperança e da caridade no
contexto histórico fora do qual não existe uma vocação cristã,
contemplativa e monástica. É claro que não existe uma técnica
para descobrir e acordar o próprio interior a partir do qual essa
dimensão teologal se irradia. Não haveria o eu interior se não
fosse antes de tudo uma espontaneidade que só pode ser livre. O eu
interior não é uma parte do nosso ser, como é um motor de um
carro. É a nossa própria realidade substancial na sua inteireza ao
seu nível mais alto, mais pessoal e mais existencial. Diria é a
nossa vida espiritual quando está no máximo de vitalidade. O eu
interior é um segredo que nenhuma ciência ou conceito pode atingir
porque não é uma coisa, um objeto. O que podemos eventualmente
fazer é levar uma vida de silêncio, de solidão - não de
isolamento e de introversão, a fim de descobrir o silêncio do eu
interior. Penso que a vida monástica, - na medida em que todos seus
membros formam uma única “pessoa mística” que é ‘Cristo’
que ama a si mesmo - pode oferecer um ambiente receptivo para uma
tímida e imprevisível manifestação da sua presença. Sem uma
descoberta do eu interior não há consciência de Deus nem
descoberta de que o homem é imagem de Deus. O eu interior é uma
espécie de espelho em que Deus não somente vê a si mesmo, mas se
revela enquanto se reflete no espelho. Metaforicamente podemos dizer
que através do escuro, transparente mistério do nosso interior
podemos ver a Deus através de um vidro. É o que vimos na visão que
santo Agostinho tinha da vida contemplativa.
Para quem vive a partir
do seu eu interior não há mais uma divisão entre o que é natural
e o que é sobrenatural na sua vida. Por que Atanásio de Alexandria
defendeu contra os arianos a doutrina da divindade de Jesus, o Filho
do Pai que se fez homem e habitou entre nós? É um dogma da fé da
Igreja católica. Até pode ser que não afeta a muita gente que se
dizem cristãos. O que não deixa de refletir negativamente na vida
espiritual. Como podemos nos salvar por Cristo, homem que não é
Filho de Deus Pai? Como trabalhar por mundo melhor se este mundo,
como humanidade, não for objeto do amor do Pai em seu Filho no qual
não há nenhuma divisão entre a sua natureza divina e sua natureza
humana? Insisto neste ponto para que pelo menos vislumbremos que a
nossa vida monástica e contemplativa tem tudo a ver com a
humanidade, com a sociedade de que somos membros. É impossível
dividir o sagrado e o secular em dois compartimentos incomunicáveis.
O que significaria neste caso a misericórdia de Deus? A opção
preferencial pelos pobres, sempre presente no objetivo geral da
pastoral da Igreja no Brasil, não deixa de ter suas tangentes
políticas, sociais e econômicas. Penso que o contemplativo não
foge dessa realidade. É claro que nesta altura entramos no capítulo
sobre os vários tipos de contemplação. Penso inclusive que seria
em detrimento da própria Igreja se a contemplação se reduzisse
a uma só forma. Como diz Thomas Merton; ‘O espírito contemplativo
não, de fato, normalmente ultraconservador, mas nem é
necessariamente radical. Ele transcende a ambos esses extremos para
conservar um contacto vivo com aquilo que é genuinamente verdadeiro
em cada movimento tradicional’.25
O
que dizer dos vários graus da contemplação: ordinária,
extraordinária ou infusa, etc. Com Merton podemos dizer que a partir
da expressão divina patitur, isto
é ‘a experiência da realidade divina não é experimentada, mas
vem experimentada,
para sublinhar a passividade, é ‘acolhida da divina luz-nas-trevas
como dom supremo misterioso e inexplicável do amor de Deus’. Assim
podemos resumir os elementos essenciais da contemplação mística26:
1) Uma intuição que no seu nível inferior transcende os sentidos e
no seu nível mais alto transcende o próprio intelecto. 2) Por isso
se caracteriza por uma qualidade de luz na treva, de conhecimento no
desconhecimento Encontra-se além das sensações e também além dos
conceitos. 3) Neste contacto com Deus, na escuridão, deve haver uma
certa atividade de amor de ambas as partes. 4) A contemplação é
obra do amor e o contemplativo dá prova do seu amor deixando todos
as coisas, mesmo as coisas mais espirituais a Deus na nulidade, no
desapego e na noite. Mas o ponto decisivo na contemplação é sempre
a ação livre e imprevisível de Deus. 5) Este conhecimento no
desconhecimento não é intelectual, nem em sentido preciso afetivo.
Não diz respeito a uma faculdade especifica que une a alma com um
objeto que está fora dela. É um trabalho de união interior e de
identificação na caridade divina. 6) A contemplação é
sobrenatural e um amor sobrenatural e um conhecimento sobrenatural,
simples e obscuro, infuso por Deus no ponto mais alto da alma, e que
transmite um contacto direto e experimental com ele. Afinal ele foi o
primeiro a nos amar. 7) São Bernardo diz: ‘Amo porque amo, amo
para que ame’. Isto significa que a amor basta a si mesmo, é sua
própria finalidade, seu próprio merecimento, seu próprio prêmio.
8) A experiência da oração contemplativa e os sucessivos estados
de contemplação por quais se passa, são todos modificados pelo
fato de que a alma é passiva,ou parcialmente passiva, sob a direção
de Deus. Mas nesta sucessão de graus há também uma angústia
especial na percepção aguda da própria fraqueza e do próprio
abandono, vista a incapacidade de fazer algo por si mesmo. Isto
acontece porque as faculdades humanas já não nos podem servir no
seu modo ordinário; o que dá uma estranha incapacidade, amargura e
também um aparente desespero. É que o amor de Deus não faz
perguntas. 9) A contemplação é a luz de Deus que age diretamente
na alma. Mas cada alma é enfraquecida por estar presa e obcecada
pelo apego às coisas criadas, como consequência do pecado original.
O Amor de Deus é, por assim, dizer demasiadamente puro. 10) Tudo
isso faz supor que mais cedo ou mais tarde a contemplação infusa
comporta uma terrível revolução interior. Quando a doçura da
contemplação acaba, a meditação se torna impossível, até
odiosa. As funções litúrgicas parecem um fardo insuportável. A
mente está confusa e não sabe pensar. A vontade parece incapaz de
amar. São períodos de escuridão, de aridez e de sofrimento. Há
possibilidade de desistências da contemplação, mas há também
perseverança. Continuamos assim no mistério de Deus e do homem. 11)
Esta provação do indivíduo pode ser agravada por circunstâncias
institucionais. A fidelidade da pessoa colocada à dura prova pode
causar desavenças em relação a estruturas institucionais, porque
quando é chamada a entrar na escuridão da contemplação a pessoa é
convidada a deixar modelos de pensamento e de ação que antes
interpretados como familiares e convencionais e a julgar com
critérios completamente novos e escondidos: com a luz do Espírito
Santo. Aí a situação se torna crítica. Como saber se a pessoa é
conduzida pelo Espírito ou pelo demônio? Onde está o limite entre
graça e ilusão? Essa situação não significa que as inspirações
do Espírito Santo estão completamente em desacordo com as sábias
normas tradicionais das sociedades religiosas. De outro lado não
podemos negar que na história da Igreja houve casos em que pessoas
guiadas por Deus foram tratadas e julgadas por homens
profissionalmente santos. Pensemos em Joana D’Arc, e quem sabe, em
outras pessoas que terminaram a vida delas nas fogueiras. Em todo
caso não vamos negar que esses conflitos dolorosos não foram
consequência de instituições que se tornaram rígidas e
estereotipadas. A vida contemplativa pode ser danificada por certas
definições regimentais. De outro lado, a situação torna-se
particularmente difícil no caso de falsos místicos que estão
sempre inclinados a reclamar a isenção de normas sociais,
baseando-se em inspirações particulares. Não podemos negar que ao
longo dos séculos houve um endurecimento das instituições
monásticas que certamente não havia quando nasceram na Igreja.
Regras são necessárias, mas de outra parte não podemos negar que
existem casos em que os superiores podem dispensar determinados
súditos das observâncias de certas regras. O que é evidente em
casos individuais de enfermidade, de atividades, de problemas
inerentes à velhice, etc. Não podemos, porém, excluir a
priori a situação provocada pela vida
interior da pessoa. Hoje sabemos que a membros de uma comunidade
monástica se permite, depois de anos de vida comunitária, levar uma
vida de eremita ou de recluso, porque desejam consagrar-se
inteiramente à contemplação e à solidão.
Não
nos foi possível considerar a “crise” da vida religiosa, e, em
particular, da vida monástica, que no Brasil não atingiu ainda o
mesmo grau de países do “primeiro mundo”. Mesmo assim o assunto
mereceria uma atenção séria e mais prolongada. Percebe-se que hoje
é difícil encontrar candidatos para as nossas comunidades
religiosas e monásticas cujas estruturas institucionais têm um
‘vocabulário’ bem diferente da maioria de eventuais
‘vocacionados’. Querer cortar todo contacto deles com o ‘mundo’
e suas dependências seculares não deixará de provocar conflitos e
frustrações. Não é de uma só vez que se descobre a gratuidade da
própria existência que nos impele a colocar-nos ao serviço do amor
de Deus e do próximo. Daí a necessidade de encontrar outras
maneiras também comunitárias de vida contemplativa. O que não nos
dispensará da escolha de habitar nos confins.
O chamado de Deus só pode ser no sentido de seguir um caminho de
libertação; o que implicará uma renúncia a todas as dominações
mundanas e às devastações do mal. Do contrário dificilmente
haverá minorias criativas: “homens e mulheres que, no encontro com
Cristo, tenham encontrado uma pérola preciosa” como escrevia Bento
XVI pouco tempo antes de ser eleito papa.27
Que os contemplativos seja onde estiverem, deem voz à sua e nossa
esperança por uma vida de oração, oração que é uma experiência
entre abraço e silêncio de Deus.
Dom
frei Vital Wilderink, o.carm.
1
Sölle, Dorothee, Lieben und arbeiten
–Eine Theologie der Schöpfung,Hoffmann
und Campe, Hamburg 1999. O texto citado é da tradução do livro em
neerlandês, God heeft mensen nodig,
een theologie van de schepping, Uitgeverij
Ten Have, Kampen, 2000, p.236.
2
Joris Baers, Evoluerend westers denken
over mystiek in de twintigste eeuw, em
Encyclopedie van de mystiek, Uitgeverij Kok-Kampen, 2003, p. 208.
3
Ver Luiz Carlos Susin (organizador) Sarça ardente,Teologia na
América Latina: Prospectivas, São Paulo, Paulinas, 2000.
4
Gustavo Gutiérrez, Situação e tarefas da teologia da libertação,
ibidem, pp. 49-77.
5
A convocação do Vaticano II era um eco de gritos que já havia
mais tempo ressoavam de diversas maneiras em muitos lugares. Isto
pode explicar o interesse por certos livros de autores que visavam
algo mais do que apontar para distorcidas situações políticas,
sociais e econômicas Diário de Dag Hammarskjöld
(1905-1961), Le milieu divin de Pierre Teilhard de Chardin
(1881-1955), La pesanteur et la Grace e Attente de
Dieu de Simone Weil (1909-1943) Widerstand und Ergebung
(Resistência e Perdão) de Dietrich Bonhoeffer (1906-1945). O que
dizer de Thomas Merton, monge trapista e ativista, um dos mais
importantes autores místicos do século XX.
6
Sobre a Bíblia como fonte da espiritualidade ver Kees Waaiman,
Spiritualiteit, Kok - Kampen e Uitgeverij Carmelitana – Gent,
2000, pp.33-35 e Mystiek in de psalmen, uitgeverijen Ten Have e
Carmelitana, 2006 (segunda edição).
7
Ver Joris Baers, o.c., pp.215-223.
8
Trata-se de um testemunho de uma mãe que estava com seus filhos
enfermos no hospital. A poesia foi publicada no Informativo do
Instituto Camiliano de Pastoral da Saúde e bioética, maio 2012.
Transcrevemos dois versos da poesia que tem como título A
experiência mística. Há autores que admitem uma mística
sem Deus, explicando-a como uma forma de consciência
simbólica.
Não
é provado que a aproximação simbólica do fenômeno místico vale
para todas as formas de mística.
9
Ver as reflexões de Bento XVI na audiência geral de 16 de maio de
2012 cujo tema era A oração liberta, publicadas no
L’Osservatore Romano em português de 19.05.2012 p. 3.
10
Karl Rahner, Frömmigkeit früher und heute, em Schriften zur
Theologie VII, Einsiedeln-Zürich, 1966, p. 22.
11
Recitação do Regina Caeli na praça de São Pedro, em
L’Osservatore Romano de 12 de maio de 2012, p.7.
12
Ver Gerard Mathijsen, Monastieke
Mystiek tot circa 1300, em
Encyclopedie van de mystiek,
pp. 585-596.
13
Dizionario di Mistica, Libreria Editrice Vaticana, 00120
Città del Vaticano, verbete Cassiano Giovanni (O. Pasquato)
14
Gerard Mathijsen, Monastieke Mystiek, o.c. p.587.
15
Seguimos a visão da mística na ordem dos augustinianos até o
século XVII, de Martijn Schrama, em Encyclopedie van de mystiek,,
pp. 603-621.
16
Santo Aostinho, Comentário aos Salmos, (Tradução das Enarrationes
in psalmos, Monjas beneditinas do Mosteiro de Caxambu-MG,, São
Paulo: Paulus, 1997, Salmo 41, 8.
17
De acordo com a opinião de certos autores as experiências
religiosas de Agostinho não foram ‘místicas’ no sentido que se
reserva a uma ‘contemplação infusa’. Isto faz descobrir a
variedade que existe em relação à interpretação da expressão
‘experiência mística’.
18
Ver Raimon Panikkar, L’expérience
de Dieu, Icônes
du Mystère, Éditions Albin Michel,
Paris, 2002, pp.59-73.
19
De docta ignorantia é o título de um dos escritos
teológicos do cardeal Nicolau Cusano (1401-1464).
20
Dizionario de Mística, verbete contemplazione, da autoria de
M.Herraiz.
21
Dag Hammarskjöld, Merkstenen, Kok-Kampen, 2000, p.139.
22
A palavra contemplação aparece em vários estudos sobre o tema em
composição com diversos adjetivos: Contemplação ordinária e
extraordinária, ou adquirida e infusa, natural e sobrenatural,
e‘contemplata aliis tradere’.
23
Só temos à nossa disposição o texto da The Inner Experience.
Notes on Contemplation na tradução italiana: Thomas Merton,
L’esperienza interiore, Note sulla contemplazione, Ed. San
Paolo, Torino, 2005.
24
Egidio Palumbo, Sperare negli inferi della storia, Padre Tito
Brandsma, em Horeb, Tracce di spiritualità, n. 1/2012, p. 51
25
L’Esperienza interiore, p. 109.
26
A partir dos textos enumerados de 1 a 11, reproduzimos
resumidamente as páginas do capítulo 6 do livro de Thomas Merton;
capítulo que trata da contemplação infusa., pp.129-141.
27
J.Ratzinger, L’Europa nella crisi
delle culture, Subiaco, 1 abril 2005.
A VIDA CONTEMPLATIVA E
MONÁSTICA:
ASPECTOS CANÔNICOS
Partimos da base do Concílio Vaticano II,
fundamentalmente do Decreto Perfectae
Caritatis.
Nele temos apenas dois pequenos
números sobre a matéria:
Institutos
de vida contemplativa
7.
Os Institutos que se dedicam exclusivamente à contemplação, de
tal modo que seus membros permaneçam em oração contínua e
alegre penitência, conservam sempre a parte mais excelente dentro do
Corpo Místico de Cristo, em que «nem todos os membros... têm a
mesma função» (Rom. 12,4), embora seja urgente a necessidade do
apostolado. Na verdade, oferecem a Deus um exímio sacrifício de
louvor, enriquecem com abundantes frutos de santidade o Povo de Deus,
movem com o seu exemplo e dilatam-no mercê da sua misteriosa
fecundidade apostólica. São honra da Igreja e fonte das graças
celestes. O seu modo de viver, porém, seja revisto segundo os
princípios acima expostos e os critérios duma conveniente
renovação, mantendo-se, contudo, intactos a sua separação do
mundo e os exercícios próprios da vida contemplativa.
Institutos
de vida monástica
9.
Conserve-se fielmente e brilhe cada vez mais no seu genuíno
espírito, tanto no Oriente como no Ocidente, a venerável
instituição da vida monástica, que tantos méritos alcançou no
decorrer dos séculos na Igreja e na sociedade humana. O principal
dever dos monges é servir dum modo ao mesmo tempo humilde e nobre, a
divina majestade dentro das paredes do seu mosteiro, quer se
entreguem totalmente ao culto divino na vida contemplativa, quer
tenham assumido legitimamente algumas obras de apostolado ou caridade
cristã. Mantida, pois, a índole própria da instituição, renovem
as suas antigas e beneméritas tradições e acomodem-nas às
necessidades hodiernas das almas, de tal forma que os mosteiros sejam
como que os alfobres de edificação do Povo cristão. Do mesmo modo,
as religiões que por regra ou instituto associam intimamente a vida
apostólica à vida de coro e às observâncias monásticas, adaptem
o seu gênero de vida à exigências e conveniências do apostolado,
de maneira a manter fielmente a sua forma de vida, já que esta é de
tão grande proveito para a Igreja.
É claro que, dado que
os institutos contemplativos e monásticos formam parte da chamada
vida religiosa, devemos ver, não apenas as normas particulares
referentes a eles, mas também as comuns a todos os institutos
religiosos.
Ao ser elaborada, após
o Concílio, a reforma do Código de Direito Canônico, tentou-se
traduzir, para a linguagem canonística a teologia conciliar, mas nem
sempre se conseguiu uma síntese perfeita.
I.
A posição da vida consagrada no Código de Direito Canônico
O Código de Direito Canônico de 1917
incluía no Livro II (De
personis) uma segunda parte
sobre "Os Religiosos". Mediante essa ordenação
sistemática, parecia insinuar que estes eram uma espécie de gênero
intermediário entre os clérigos e os leigos. Por outro lado, à
ma neira de apêndice, falava das "Sociedades de Vida Comum sem
votos".
O Concílio Vaticano II, no capítulo VI da
Constituição dogmática Lumen
Gentium, conservou a denominação
genérica de religiosos,
para os que fazem a profissão dos conselhos evangélicos. Afirmou,
porém, explicitamente, no n.
43 do mesmo documento, que,
"do ponto de vista da estrutura divina e hierárquica da Igreja,
tal estado não constitui um estado intermediário entre o clerical e
o laical".
Ao começar a reforma do Código, o grupo
de trabalho correspon dente à nossa matéria de estudo recebeu o
tradicional nome De religio sis.
Mas já em 1969 passou a ser denominado Dos
Institutos de per feição.
Queria-se assim indicar que a matéria a ser tratada não era apenas
a vida religiosa,
no sentido canônico estrito, mas também os Institutos Seculares, as
Sociedades de Vida Comum e outras formas de vida consagrada. Contudo,
o con ceito de perfeição
já havia tempo que vinha recebendo fortes crí ticas, como
manifestativo de uma men talidade elitista, incompatí vel com a
profissão dos conselhos evan gélicos, em cujo centro de veria estar
radicada uma profunda humil dade. Em maio de 1974, o grupo de
trabalho adotou a denominação de Os
Institutos de Vida con sagrada pela profissão dos conselhos
evangéli cos ou, mais
sinteti camente, Os Institutos de
Vida Consagrada, assim
permane cendo quase até o fim da reforma do Código. Não faltou,
po rém, um bom número das então chamadas Sociedades
de Vida Comum que acha ram
inadequada essa terminologia, que parecia ex cluí-las.
O texto definitivo do Código renunciou a
dar um nome comum a to das as instituições contempladas nesta
terceira parte do Livro II. Por isso, ela se encontra sob a rubrica:
Dos Institutos de Vida
Con sagrada e
das Sociedades de Vida Apostólica.
Constata-se, assim, para além da analogia, uma heterogeneidade
irredutível, entre Insti tutos e
Socieda des.
Também o lugar da nossa matéria dentro do
Código conheceu vaci lações e incertezas. Pela própria declaração
do Concílio, acima trans crita e em parte recolhida no cân. 207 §
2, era impos sível con tinuar a considerar o estado de vida
consagrada como um gênero in termediário entre clérigos e leigos.
Por isso, foi enqua drado dentro do fenômeno asso ciativo na Igreja.
Ainda no projeto de 1980, a terceira parte do Livro II estava
dedicada às asso ciações de fiéis, in cluindo, em primeiro
lu gar, aquelas que assu mem a prática dos conse lhos evangélicos.
No texto definitivo, po rém, a legislação sobre as associações
passou para a primeira parte do Livro II, como uma espé cie de ponte
entre o tratado so bre os fiéis -leigos ou clérigos- e o da
hierarquia. Permaneceu as sim, na terceira parte, apenas o estudo da
vida consagrada e de outras formas afins.
Essa colocação me parece altamente
discutível. Apesar de to das as declarações contrárias, dá ainda
a impressão de colocar a vida consa grada como uma espécie de
estrutura que, de algum modo, parti cipa do caráter hierárquico da
Igreja. Por que, se não, foi colocada dentro do Livro II, que trata
do Povo de Deus, no seu ser mais ín timo e na sua estrutura básica?
Por que lhe é dado um estatuto sepa rado do de outras associações
existentes na Igreja? O cân. 207 é bastante claro: O estado dos que
professam os con selhos evangélicos, embora
não faça parte da estrutura hierár quica da Igreja, pertence,
contudo, à sua vida e santidade.
A vida consagrada não é, pois, um elemento constitu tivo do ser
eclesial, mas deriva de sua vida e do exercício do seu mú nus de
santificar. É por isso que creio que o lu gar mais próprio para
tratar dela teria sido o Livro IV do atual Có digo. De fato, a vida
con sagrada pela profissão dos conselhos evan gélicos não é um
monopólio da santidade ou da perfeição, e sim um dos meios que a
Igreja usa para realizar o seu encargo peculiar de promover a
santificação dos seres humanos.
O tratado que nos ocupa divide-se, no
Código, em duas seções, de acordo com a heterogeneidade já
indicada da matéria. A primeira trata dos Institutos de Vida
Consagrada; a segunda das Sociedades de Vida Apostólica. Pretendeu,
sobretudo, inspirar-se no princípio da diversi dade dos dons. Por
isso, é relativamente breve -174 cânones, contra os 195 do Código
de 1917-, embora não tão breve quanto o pro jeto enviado aos Bispos
em 1977, que conti nha apenas 126 cânones. Conseqüentemente, deixa
uma ampla margem para a variedade dos diver sos institutos e para o
desenvolvimento de uma legislação própria de cada um. Apesar de um
título sobre as Normas comuns a
todos os Ins titutos de Vida Consa grada,
vê-se facilmente que os Institutos reli giosos continuam a ser o
para digma, pois na legislação peculiar para os Institutos
seculares e para as Sociedades de Vida Apostólica há freqüentes
referências ao que fora determinado especificamente para os
religiosos.
Apesar de uma certa resistência
manifestada por diversos organis mos, durante a reforma do Código,
este procura refletir, mais talvez aqui do que em outras partes, não
só os elementos ju rídicos, mas tam bém os mais importantes
princípios teológicos da vida consa grada na Igreja, de acordo com
os documentos do Concí lio Vaticano II.
II. Conceito de Vida
Consagrada: o sentido da Con sagração
Não obstante a variedade de motivações
que se podem consta tar na longa evolução histórica da vida
consagrada, o elemento básico aparece já insinuado em São Paulo,
no capítulo 7 da 1a Carta
aos Co ríntios: trata-se de servir a Deus com
o coração in diviso. O cân.
573 expressa essa realidade com uma radicalidade difícil de superar:
consagram-se totalmente
a Deus sumamente
amado. A vida consagrada, pois,
no seu cerne mais radical, não é nem mais nem menos do que um
aprofundamento da própria vida cristã, ou seja, a consumação no
amor de uma existên cia humana. Esse amor tende a ser total, tanto
na sua extensão -"consa gram-se
totalmente"-
quanto na sua intensidade -"a
Deus sumamente amado".
Desse modo, tudo, absolutamente tudo, é colo cado em relação
explí cita com Deus, não apenas enquanto Criador e Senhor, mas
também en quanto centro da vida afetiva, do coração
do homem. Sem dúvida, a con sagração batismal já aponta para esse
cami nho, mas nor malmente isso se realiza através da mediação do
amor hu mano. No es tado de vida
consa grada, para além do
batismo, existe um novo e
pe culiar título, o da
profissão, me diante o qual se pro cura centrali zar a existência
humana no amor de Deus, sem ter que passar pelas mediações humanas.
É verdade que, nas nossas vidas, essas me diações são
insubstituíveis; sem elas não chega ríamos à maturidade afetiva.
O amor dos pais, dos irmãos, das pessoas que nos rodeiam, nos faz
descobrir o amor de Deus. Mas, na vida
consa grada, chega um momento em
que, de modo semelhante aos sama ritanos, poderíamos dizer para
essas pessoas: "Já não é por causa do que tu fa laste que
ama mos. Nós próprios o ouvimos e o vimos, e sabemos que esse é
verda deiramente o Amor presente no mundo."(1)
O novo
e peculiar título de que
estamos falando recebe, na tra dição cristã, o nome de
consagração.
Essa palavra, no seu sen tido eti mológico, designa a ação
mediante a qual uma coisa, mas sobretudo uma pessoa, é "feita
sagrada", ou seja, é reservada para Deus. Sem dúvida, toda a
criação deveria ser considerada as sim. O ser humano, porém, sabe
que não possui a sua existência em plenitude e que, por isso, é
incapaz de expressar, constantemente e em todas as coisas, o caráter
sagrada de toda a realidade. Daí brota, quase naturalmente, o
princí pio da representação: objetos ou pessoas determinadas
passam a ser considerados numa relação especial com a Divindade,
cumprindo de algum modo o papel de re presentantes dos outros. Por
isso, esses objetos e essas pessoas recebem o nome de sagrados.
Contudo, no ba tismo, essa consagração
é algo mais do que uma simples denominação; trata-se de uma
ver dadeira incorporação a Cristo, que transforma o próprio ser
hu mano, conferindo-lhe um caráter
indelével.
Na consagração pela profissão dos
conselhos evangélicos, não se dá mais essa transformação íntima.
O que acontece, como dizíamos, é uma retomada em profundidade da
consagração batismal, atualizando-a e colocando-a em destaque. Além
disso, há nela ou tros dois elemen tos in substituíveis: a
iniciativa de Deus e o mi nistério da Igreja. A vida consagrada, no
sentido que estamos ex plicando, não acontece pela sim ples vontade
humana, nem indivi dual nem coletiva. Ela é sem pre fruto do impulso
do Espírito Santo, conforme
expressa o já ci tado cân. 573. Nessas breves pa lavras, está
contido o conceito de vocação
divina, tão enraizado na
tradição da vida religiosa. Nesse sentido, pode-se dizer que o
primeiro agente da consagração
de que estamos falando não é o ho mem mas o Espírito Santo. É Ele
quem se para alguns
para uma obra es pecial(2).
É Ele também quem dá a força para a sua realização.
Mas, na vida consagrada, há também uma
inserção especial na vida da Igreja. Trata-se de algo que pertence
à vida e santidade dela(3).
De fato, não estamos tratando de qualquer tentativa in dividual de
vi ver os conselhos evangélicos, mas de estados
canô nicos
de vida, ou seja, reconhecidos pela autoridade da Igreja. Por isso, a
profissão dos re ligiosos se faz num ato litúrgico, em sentido
es trito. A mesma coisas se diga da profissão das virgens
consagradas no mundo. Embora isso não apareça tão claro no caso
dos Institutos seculares e das So ciedades de Vida Apostólica,
trata-se também de instituições canonica mente erigi das e os seus
vínculos são regula mentados pela autoridade eclesiás tica. Por
isso, podemos dizer que a consagração de que estamos falando
acontece pelo ministério da Igreja. Com efeito, a Igreja aco lhe, em
diversos graus, o ofereci mento dos que professam a vida consa grada.
Este elemento eclesial encontra-se apenas implicitamente no cân.
573, mas tem a sua expli citação no cân. 574:
§ 1. O
estado dos que professam os conselhos evangélicos nesses institutos
pertence à vida e santidade da Igreja e, por isso, deve ser
incentivado e promovido por todos na Igreja.
§ 2. Para
esse estado, alguns fiéis são especialmente chama dos por Deus, a
fim de usufruírem de um dom particular na vida da Igreja, e, segundo
o fim e o espírito do instituto, servirem à sua missão sal vífica.
III. A finalidade da
consagração
O amor de Deus não é só a fonte donde
brota a consagração, mas também a meta para a qual ela aponta.
Como nesse amor se en contra a salvação do homem e a sua perfeição,
primeiramente o es tado reli gioso e depois os outros estados de
especial consagração receberam o nome de estados
para adquirir a perfeição ou,
sim plesmente, estados de
per feição, nome certamente
discutível, mas que poderia ser bem entendido. Na aquisição da
perfeição da cari dade, no seu sentido mais pleno, ou seja, como
amor de Deus, en contra-se a finalidade principal da vida consagrada.
Não obstante os mal-entendidos que essa expressão tem pro vocado, o
Código de 1983 ainda a conserva no cân. 573 § 1: para
alcan çarem a per feição da caridade, no serviço do Reino de
Deus. Advirta-se, po rém, que
não se trata de um perfeccio nismo individualista, mas, pelo
contrário, do esquecimento de si, mergulhando no amor total de Deus,
vivido sumamente. Por isso, o Có digo não utiliza mais a
tradi cional expressão "salvação própria", que era tão
comum nas consti tuições dos religiosos. Amar sumamente é sair de
si suma mente. A tensão na vida consagrada não pode ser colo cada
na pró pria pessoa do consagrado, mas em Deus que chama e que
consagra.
O amor de Deus concretizou-se, para nós,
em Cristo Jesus. Por isso, a consagração vai levar também a seguir
mais de perto a Cristo(4).
Esse seguimento deverá produzir uma identificação com a própria
missão de Cristo: a honra do
Pai, a construção da Igreja e a salvação do
mundo.
Essa tarefa é explicitada, com es sas palavras, pelo mesmo cân.
573.
Como dizíamos, na vida de especial
consagração, há também um ele mento eclesial. De fato, os que
professam os conselhos evangé licos, unem-se
de modo especial à Igreja e ao seu mistério
(cân. 573 § 2; cf. LG 44).
Daí deriva uma tarefa peculiar para os con sagrados: serem si nal
preclaro na Igreja e
preanunciarem a glória celeste.
Ao meu ver, estas expressões do cân. 573 § 1 se aplicam mais
direta mente aos reli giosos, pois eles, pelo seu gênero de vida,
constituem um sinal mais explícito e inteligível para o Povo de
Deus. Mas tam bém devem ser en tendidas, de algum modo, em relação
aos outros esta dos de vida consa grada. É verdade que aqui, como em
outros pontos já explicados, não se trata de uma tarefa exclusiva.
A Igreja toda tem um sentido escatoló gico (5).
Por isso, todos
os fiéis devem ser sinal e presença incoada do mundo futuro. Mas a
vida que esperamos con siste fundamentalmente na vivência plena do
amor de Deus. Por isso, os membros dos esta dos de vida consagrada,
que pretendem viver esse amor na imedia ticidade di reta de sua
entrega total, têm uma tarefa especial de preanunciar a glória
celeste.
IV. O aspecto libertador da
consagração.
O Concílio Vaticano II afirma que o fiel
que é chamado à vida consagrada, para
que possa colher frutos mais abundantes da graça ba tismal, procura
pela profissão dos conselhos evangélicos na Igreja li bertar-se
dos impedimentos que o possam afastar do fervor da cari dade e da
perfeição do culto divino(6).
De fato, num mundo onde os
apelos ao
consumismo, à sexualização total da vida e ao domínio ou
prevalên cia sobre os outros são contínuos, a vida consagrada
mostra uma exis tência possuída em plenitude, sem que a pessoa se
deixe ar rastar pelos condi cionamentos externos. Neste sentido, os
consagra dos são também "uma denúncia evangélica da queles
que servem ao di nheiro e ao poder, reser vando para si
egoisticamente os bens que Deus outorga para bene fício de toda a
comunidade"(7).
Essa denúncia se estende também a todo pro jeto histórico que,
apartando-se do plano divino, não faça crescer o homem em sua
dignidade de filho de Deus"(8).
Assim, já não se trata apenas de uma libertação para si, mas
também de um incen tivo para a libertação dos outros. De modo
es pecial, aparece isto em relação ao conselho evangélico da
castidade. "Neste mundo, onde o amor está sendo esvaziado de
sua plenitude, onde a desu nião amplia distâncias por toda a parte
e o prazer é eri gido como ídolo, os que pertencem a Deus em Cristo
pela castidade consa grada serão um testemunho da aliança
liber tadora de Deus com o homem e, no seio da própria Igreja
particular, uma presença do amor com que Cristo
amou à Igreja e se entregou a si mesmo por Ela
(Ef 5,25). Finalmente, serão todos um sinal luminoso da li bertação
esca tológica, vivida na entrega a Deus e numa solidarie dade nova e
uni versal com os homens"(9).
É por isso que a Sagrada Congregação
para os Religiosos e Insti tutos Seculares (atual Congregação para
os IVC e as SVA) afirma que "os temas de uma libertação
evangélica fundada no Reino de
Deus devem tornar-se particularmente familiares aos re ligiosos"(10).
Não se es queça, porém, que esse aspecto libertador não é algo
isolado, mas forma parte integrante da vivência dos conselhos
evangélicos. É por eles e através deles que o consa grado prestará
o seu serviço liberta dor.
V. Os elementos jurídicos
da consagração
Até agora focalizamos os elementos
teológicos da vida consa grada na Igreja. Mas o tantas vezes citado
cân. 573 § 1 contém ainda alguns elementos claramente jurídicos.
Trata-se, de fato, de uma vida consa grada
pela profissão dos conselhos evangélicos;
e é uma forma estável de viver.
Há, pois, três elementos jurídi cos básicos:
1. A
estabilidade - A
consagração, enquanto nascida do amor, não pode ter um sentido
provisório. Todo amor autêntico tende, por sua própria natureza, a
perpetuar-se. Por isso, a vida consa grada é
uma forma estável de viver.
Essa estabilidade encontra a sua ex pressão plena no compromisso
definitivo, mediante vínculos perpé tuos. Daí os questionamentos
que se têm levantado, após o Concílio Vaticano II, contra os votos
temporários
dos religiosos. A legis lação canônica atual os conservou, mas
indicando clara mente que eles somente têm sen tido na medida em que
se trata de vínculos a serem
renovados ao tér mino do prazo.
Embora esta de claração do cân. 607 § 2 se refira dire tamente
apenas aos reli giosos,
a sua doutrina parece estar implícita no conceito de forma
estável de viver, do cân. 573
§ 1. O oferecimento de si, que a pessoa faz na vida consagrada, tem
sempre uma dinâmica de perpetuidade. Em qualquer gênero de vida
con sagrada, a intenção mais profunda deveria ser a de dar sem
medida, para sempre.
2. A
profissão - A consagração
de que estamos falando se rea liza mediante um ato formal,
regulamentado pelo Direito, que se chama pro fissão.
Etimologicamente, essa palavra -derivada do latim profiteri-
significa o discurso pronunciado na frente de outros. A profissão é
uma manifestação, clara e explícita, em face da Igreja, de assumir
a vida de consagração. Como veremos, ela pode ser reali zada de
modos di versos, de acordo com a natu reza do Instituto -secu lar,
religioso- ou do estado -virgens no mundo, eremitas- em que é
emitida. Precisamente porque nas Socie dades de Vida Apostólica nem
sempre aparece tão clara mente essa declaração perante a Igreja, é
pelo que elas formam uma seção pe culiar desta parte do Código e
não entram dentro da categoria de Institutos de Vida Consagrada.
3. Os
conselhos evangélicos -
Como dizíamos, a consagração se re sume na vivência imediata e
plena do amor de Deus. Contudo, na tra dição da Igreja, essa
vivência encontrou uma formulação ju rídica nos três chamados
conselhos evangélicos.
Apesar das ob jeções levan tadas contra esta terminologia, o Código
de 1983 con servou-a, por estimar que longos séculos de tradição
indicam cla ramente o que com ela se de seja significar. Assim, o
cân. 575 afirma: Os conselhos
evangélicos, fundamentados na doutrina e nos exemplos do Cristo
Mes tre, são
um dom divino que a Igreja recebeu e que, com sua graça, conserva
sempre.
O conteúdo da profissão da vida
consagrada concretiza-se nos três conselhos evangélicos -castidade,
pobreza e obediência-, mesmo que, em algumas ordens antigas, eles
não apareçam tão cla ramente diferencia dos.
O aspecto jurídico dos conselhos
evangélicos fica suficien temente claro no cân. 575: Cabe
à competente autoridade da Igreja interpretar os conselhos
evangélicos, regular por meio de leis sua prática e, as sim,
constituir, pela aprovação canônica,
formas está veis de viver.
VI. A diversidade de formas
de vida consagrada na Igreja.
Através do panorama histórico que
traçamos no capítulo pri meiro, vimos a enorme diversidade de
formas de vida consagrada que floresce ram e florescem na Igreja.
Nunca faltaram tentativas de cer cear essa variedade. Os Concílios
Ecumênicos IV de Latrão, de Lyon e de Trento ditaram proibições
de novas fundações. Também durante a última codifi cação
surgiram, no seio da comissão de re forma, tendên cias neste
sen tido. O novo Código, porém, não aco lheu essa tendên cia,
antes louva a variedade existente, como um bem para a Igreja: Há
na Igreja numero síssimos Institutos de vida consagrada que
pos suem dons diversos se gundo a graça que lhes foi dada, pois
seguem mais de perto a Cristo que ora, que anuncia o Reino de Deus,
que faz o bem aos homens, que convive com eles no mundo, sempre,
porém, fa zendo a vontade do Pai
(cân. 577).
O Código, aliás, não se conforma apenas
com elogiar a diver sidade já existente, mas deixa também a porta
aberta para o sur gimento de no vas formas de vida consagrada. Não
obstante a re serva pontifícia para a aprovação dessas novas
formas, o cân. 605 acres centa: Os
Bispos dio cesanos...
se esforcem para discernir novos dons de vida consagrada confiados
pelo Espírito Santo à Igreja; ajudem seus promotores para que
expressem e protejam, do melhor modo possí vel, seus objetivos, com
estatutos adequados es pecialmente usando as normas gerais contidas
nesta parte. Pode mos, por isso,
dizer que, no momento atual, a Igreja adota uma atitude de
expectativa confiante na força do Espírito, sem pre tender
limitá-lo às formas já existen tes.
Mas quais são essas formas? De acordo com
a legislação canô nica atual, podemos falar de quatro formas
básicas de vida consa grada, e de outras duas que, pelo menos
parcialmente, a elas se podem assimi lar ou que lhes são próximas.
As formas que chamamos básicas se di videm em dois grandes grupos:
1. Em
Institutos canonicamente erigidos
- Trata-se de asso ciações de fiéis, com a finalidade expressa de
promover a obser vância dos con selhos evangélicos, segundo normas
próprias, dentro do quadro geral da legislação canônica. Os
Institutos são erigi dos ca nonicamente, quer dizer, recebem a sua
existência e perso nalidade jurídica mediante um ato (decreto)
da autoridade ecle siástica compe tente(11).
Por isso, seus membros unem-se de
modo especial à Igreja e a seu mistério(12).
Conseqüentemente, os Ins titutos de que tratamos gozam de
personalidade jurídica pública.
Os Institutos de vida consagrada
reconhecidos pela Igreja po dem ser de dois ti pos:
a) Institutos
religioso, que no Código de
1917 recebiam o nome genérico de religiões.
b) Institutos
seculares, denominação um
tanto ambígua, por causa do uso do adjetivo secular
também em outros contex tos diferen tes. Re gulamentados por leis
especiais, a partir de 1947, entraram no Código de 1983.
2. Fora
dos Institutos canonicamente erigidos
- Na descrição his tórica da vida consagrada, já vimos como, em
1957 e 1958, Pio XII fez alusão a novas formas de consagração. O
Código de 1983 recolhe, em parte, aquelas afirmações e nos fala de
dois tipos de consagração fora dos Institutos:
a) As
Virgens consagradas no mundo (ou
"virgens seculares") do cân. 604. Contrariamente ao que
insinuou Pio XII, aqui não se faz nenhuma alusão a um tipo
semelhante de con sagração para os homens.
b) Os
eremitas, no sentido mais
estrito da palavra, ou seja, que vivem no afastamento completo do
mundo e no silêncio da soli-dão, reproduzindo, em certo modo, o
monaquismo primitivo. Mas também aqui falta qualquer referência a
uma vida contemplativa vivida no mundo, de que Pio XII fa lava(13).
3. Novas
formas de vida consagrada - A
seu devido tempo, tratare mos em particular das quatro formas
citadas. Recentemente, porém, foi apro vada, com base no cân. 605,
uma nova forma de vida
consagrada, "na sua
singularidade, conforme as próprias insti tuições". Ainda
mais, a nota de L'Osservatore
Romano fala de Fa mília
eclesial de Vida consagrada, sem
que fique claro o signifi cado dessa expressão. Trata-se da Obra
da Igreja, "integrada por
sacerdotes e por leigos de ambos os sexos, que professam os
con selhos evangélicos com votos; por sacerdotes que, sem viver em
comunidade nas casas da Obra, estão incardinados nas próprias
Dioceses; por leigos, de qual quer idade e condição social, que
buscam a perfeição cristã no mundo, segundo o próprio estado.
To dos desen volvem em conjunto um mesmo harmônico e co-responsável
trabalho apos tólico, nas casas de apostolado e nas paróquias
con fiadas à mesma Obra"(14).
4. Formas
que se aproximam ou "acrescem" à vida consagrada
- Além das formas que acabamos de enumerar, o Código apresenta, na
seção II da III parte do Livro II, as Sociedades
de Vida Apostó lica,
anterior mente chamadas Sociedades
de Vida Comum, sem votos, que imi tam a vida religiosa
e que se aproximam da vida consagrada. A elas dedicaremos um estudo
mais completo.
Por outro lado, creio que também o estado
clerical, tal como é descrito na atual legislação canônica,
poderia ser qualificado de es tado
de vida consagrada ou, pelo
menos, de estado que se aproxima
ou acresce à
vida consagrada. Com efeito, o cân. 276 § 1, diz que os
clé rigos são obrigados, por especial razão a procu rar a
santidade, já que consagrados
a Deus por novo título
na re cepção da ordem.
Essa consa gração se reflete no fato de eles es tarem obrigados
a observar a con tinência perfeita e perpétua por causa do Reino
dos céus (cân. 277); devem
levar uma vida simples
e abster-se de tudo o que denote
vaidade, empregando os bens que
lhes sobrarem para as necessidades da Igreja e o sustento dos po bres
(cf. cân. 282 § 1), o que se apro xima bastante do conselho
evangélico da pobreza; e têm obrigação
es pecial de reve rência e obediência ao Romano Pontífice e ao
respec tivo Ordinário (cân.
273). Inclusive, existe para eles a recomen dação da vida comum
(cf. cân. 280). Tudo isso leva a concluir que a vida clerical é uma
vida de especial consagração, análoga às outras formas de vida
consa grada e que se não se fala dela na parte do Có digo que
estamos estu dando é porque a sua especificidade está no
minis tério, para o qual os clérigos são consagrados.
DEPENDÊNCIA
E AUTONOMIA
DOS
INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA
I. Vida da Igreja e
regulamentação jurídica.
Como acabamos de ver, a vida consagrada
pela profissão dos conse lhos evangélicos pertence à vida e
santidade da Igreja(1).
Mas a Igreja é, simultaneamente, "sociedade provida de órgãos
hierárquicos e Corpo místico de Cristo, assembléia visível e
co munidade espiri tual, Igreja terrestre e Igreja enriquecida de
bens celestes... Esta Igreja, constituída e organizada neste mundo
como uma sociedade, subsiste na Igreja Católica, governada pelo
sucessor de Pedro e pe los Bispos em comunhão com ele"(2).
Por causa desse aspecto social -que não é algo extrínseco,
acrescen tado, mas parte integrante do ser eclesial- cabe
à competente au toridade da Igreja interpretar os con selhos
evangélicos, regular por meio de leis sua prática e, assim,
constituir pela apro vação canônica formas estáveis de viver; a
ela cabe também, na parte que lhe compete, cuidar que os institutos
cresçam e floresçam de acordo com o espírito dos fundadores e as
sãs tradições (cân. 576).
Sem dúvida, a dupla natureza da Igreja
provoca tensões e dificul dades. E isto aparece mais claramente num
estado, como o da vida con sagrada, em que o elemento carismático é
tão forte mente co locado em destaque. Não se esqueça, porém,
que, de acordo com o ci tado n0
8 da Lumen
Gentium, o mistério da Igreja é
compa rável ao mistério do Verbo Encarnado. Por isso, a solução
do con flito apa rente não pode estar na supressão de um dos
elementos, visível e es piritual, da natureza da Igreja. Ambos se
encontram unidos "sem con fusão e sem mudança, sem di visão e
sem separação", de acordo com a conhecida fórmula de
Calcedô nia. Por isso, nem a hierarquia pode su primir o carisma,
nem o carisma pode sobrepor-se à hierarquia. Como víamos, a vida
consagrada surge sob o im pulso do Espírito Santo, mas para ser
vivida na Igreja, como parte integrante de sua caminhada à procura
da santidade para a qual é chamada.
A intervenção da autoridade eclesiástica,
em relação à vida con sagrada tem uma dupla finalidade: promover o
desenvolvimento de suas diversas formas, e dar aos fiéis uma
garantia de autenti cidade da pre sença do Espírito, em cada forma
concreta. É pela própria au toridade de Cristo, da qual o Romano
Pontífice e o Co légio Episcopal são depo sitários, que essa
garantia é possível. Sem dúvida, os abu sos podem acontecer,
porque o elemento humano, intrínseco à Igreja, é falível. Temos
conhecido épocas em que o ideal parecia ser a uni ficação de
to das as formas de vida consa grada, sem atender à diver sidade de
inspi rações. Não é essa a tendência atual; antes, seguindo o
Concílio, pro cura-se viver a riqueza da diversidade. Mas não há
dúvida que continua e conti nuará a haver tensão entre o elemento
institucional e o caris mático. Saber caminhar harmonicamente,
combi nando os dois, é o grande desafio atual da vida consagrada.
II. A Vida própria de cada
Instituto: elementos funda mentais
O dado inicial, no surgimento de um
Instituto de vida consa grada, não é a intervenção da hierarquia
eclesiástica, mas o so pro do Espí rito. Daí a necessidade de
lembrar sempre a inspiração funda cional. É o Espírito Santo quem
convoca pessoas concretas para res ponderem a uma necessidade da
Igreja; é Ele quem dá as formas para levar adiante essa tarefa. Por
isso, o Código de Direito canônico ordena: A
mente e os objetivos dos fundadores, aprovados pela compe tente
autoridade da Igreja, no que se refere à natureza, à finali dade,
ao espírito e à índole do instituto, bem como suas sãs
tra dições, tudo isso constitui o patrimônio desse instituto e
seja fielmente conservado por todos
(cân. 578). Para alguns, chamará a atenção o fato de o Código
não em pregar, nem neste nem em outros lu gares, a palavra carisma,
mas con tentar-se com uma série descritiva de elementos próprios ao
ins tituto. A rigor, a palavra carisma,
de acordo com a teologia pau lina(3),
deve aplicar-se a um dom pessoal que o Espírito Santo concede
livremente a pessoas determinadas, para utilidade de todo o Corpo de
Cristo, que é a Igreja. Nesse sentido, poderia, com toda a razão,
falar-se do ca risma dos
fundadores, mas não do ca risma
da Congregação. O Código,
pa rece que, para evitar a confusão de conceitos, prefere falar da
mente e os objetivos dos
fundado res. Ainda mais, para
sublinhar o aspecto ins titucional, acres centa a expressão
aprovados pela competente
autori dade eclesiás tica.
A partir do momento em que essa mente e
esses objetivos são apro vados, deixam de ser um dom particular do
fundador e se trans formam em missão
do Instituto. Com efeito, a Igreja, com sua autori dade de atar
e desatar, acolheu-os como algo
próprio e os devolveu ao Instituto como tarefa a ser executada. Essa
idéia de missão ecle sial aparece com freqüência nas fórmulas de
aprovação das consti tuições de um insti tuto.
O documento Mutuae
Relationes, publicado a 14 de
maio de 1978, conjuntamente pelas Congregações romanas para os
Bispos e para os Re ligiosos e Institutos Seculares, descreve, do
seguinte modo, aquilo que poderia ser entendido como carisma
dos fundado res:
"O próprio carisma dos fundadores
revela-se como uma expe riência
do Espírito, transmitida aos
próprios discípulos, a fim de ser por eles vivida, conservada e
aprofundada e constantemente desenvolvida em sintonia com o Corpo de
Cristo em perene cresci mento. É por isso que a Igreja protege e
apóia a índole própria dos diversos Institu tos Reli giosos. Essa
índole própria
comporta outrossim um estilo pe culiar de santificação e
apostolado, que estabelece uma determinada tradição própria, a tal
ponto que se podem convenientemente colher seus elemen tos objetivos"
(n. 11).
"Todo carisma autêntico traz consigo
certa dose de genuína novi dade na vida espiritual da Igreja, bem
como de particular opero sidade, que poderá talvez mostrar-se
incômoda no ambiente e também criar difi culdades, pois não é
fácil reconhecer sempre e logo sua proveniência do Espírito.
"A nota carismática própria de cada
Instituto exige, tanto nos Fundadores quanto nos seus discípulos,
contínuo exame da fide lidade ao Senhor, da docilidade ao seu
Espírito, da atenção inte ligente às cir cunstâncias e da visão
cautamente voltada para os sinais dos tem pos, da vontade de inserção
na Igreja, da consciên cia de subordi nação à Sa grada
Hierarquia, da coragem das inicia tivas, da constân cia em doar-se,
da humildade em suportar os constratempos. A relação justa entre
carisma genuíno, perspectiva de novidade e sofrimento interior
com porta uma constante histórica de conexão entre carisma e cruz,
a qual, mais do que como motivo para justificar as in compreensões,
é sumamente útil para discernir a autenticidade de uma vocação"
(n0
12).
Como dizíamos, o Código fala de mente
e objetivos dos funda dores.
Desdobra, porém, essa expressão em quatro elementos, sem con tudo
defi nir o que entende por eles. Tampouco os autores que pude
consultar in dicam claramente o seu significado. Ao meu ver, podem
ser entendidos do seguinte modo:
-natureza.-
é o tipo específico de instituo de vida consa grada: religioso ou
secular; clerical ou laical; contemplativo ou de vida ativa; etc.;
-finalidade.-
é a necessidade concreta da Igreja a que o Insti tuto pretende
responder, como o ensino, o atendimento aos doentes, etc. Dado o
caráter específico dos elementos de que es tamos tra tando, creio
que não se deveriam incluir aqui as finali dades genéri cas,
pró prias de toda vida consagrada, como o louvor de Deus, a
sal vação das almas, etc., mesmo que delas se fale, como é
natural, nos escritos dos fundadores;
-espírito
(talvez seria melhor dizer espiritualidade).-
é o modo concreto de viver a vida de relacionamento explícito com
Deus. Creio que este, mais do que os outros, é o elemento
direta mente especifi cante de um instituto. É precisamente a
atitude que se toma diante de Deus a que vai criando uma tradição e
dando uma cor pró pria à vida co munitária e às atividades do
instituto;
-índole.-
parece ser o tipo de organização e atuação: insti tuto
centralizado, capitular, etc.
Como dizíamos, esses elementos, aprovados
pela competente autori dade da Igreja e devolvidos ao Instituto como
missão, pas sam a inte grar a vida cotidiana do mesmo. Ora, a partir
dessa co tidianidade, de senvolve-se uma tradição, que não é,
pura e sim plesmente, uma repe tição do que foi recebido de épocas
passadas, mas uma tradução dos
elementos originais para as diversas cir cunstâncias históricas em
que o instituto se desenvolve. Também neste campo pode-se dizer que
o cos tume é o melhor intérprete
da lei (cân. 27). Por isso,
quando se trata de determinar quais são os elementos fun damentais
de um instituto, o Código não se con tenta com "a mente e os
objetivos do fundadores", mas acrescenta, no mesmo cân. 578, as
sãs tradições
(cf. também cân. 576). Essa expressão pode ser enten dida
-analogamente ao que se costuma fa lar a respeito da evolução
homogênea do dogma- como um
desenvol vimento harmônico que, sem negar o passado, vai
compreendendo, cada vez mais profundamente, a inspi ração inicial,
tirando dela as conseqüências para os novos contextos históricos,
interpre tando-a à luz dos novos desafios, enriquecendo-a com a
experiên cia prática.
O conjunto de ambos elementos -a inspiração
fundacional e as sãs tradições- constituem o patrimônio
espiritual de cada insti tuto.
Essa expressão, que procede do Decreto Perfectae
Caritatis (n. 2b), indica o
valor que a Igreja lhe atribui. Por isso, con clui o cân. 578, seja
fielmente conservado por todos.
III. Princípio de
autonomia dos Institutos de Vida Con sagrada
"Redunda em benefício da Igreja que
os institutos tenham ín dole e função próprias"(4).
A partir desta declaração conciliar, o Código afirma que é
reconhecida aos institutos justa autonomia de vida, prin cipalmente
de regime, pela qual possam ter disciplina própria na Igreja e
conservar o próprio patrimônio, mencionado no cân. 578
(cân. 586 § 1). A autonomia é, pois, a capacidade para desenvolver
uma vida própria, sem a intervenção constante das au toridades
exter nas. Não é, porém, o mesmo que independência. Por isso, é
compatí vel com a exis tência de um direito de inspecção e de
recurso, sobre tudo em casos de conflito. A autonomia, tal como se
deduz do Código, significa que os assuntos próprios da vida e
administração ordiná rias
do Instituto se resolvem dentro de suas próprias instâncias. O que,
porém, diz res peito à sua irradiação externa, através do
apos tolado, deve ser harmo nizado com a pasto ral de conjunto das
Igrejas particulares em que se encontra inse rido.
A autonomia implica também a capacidade de
elaboração de normas próprias. A este respeito, atenda-se à
terminologia do Có digo, em re lação à vida consagrada: Direito
comum são as dispo sições da
Igreja universal, relativas a todos os Institutos de vida consagrada
ou, pelo menos, a um gênero deles, como os reli giosos. Encontra-se,
fundamental mas não exclusivamente, contido no Código de Direito
Ca nônico; Direito próprio
(anteriormente chamado "direito particu lar"), pelo
contrário, são as normas ema nadas do próprio Instituto, seja qual
for a sua cate goria. Dentro do Direito próprio, o Código distingue
dois tipos de normas:
-as Constituições
ou "Código fundamental"(5).
A terminologia usada, a este respeito, pelos diversos Institutos, não
é comple tamente uniforme. As antigas Ordens religiosas possuem uma
Regra,
proveniente do fundador ou inspirador, a qual permanece imutável
através dos sécu los. São tradicionais as quatro Regras de São
Ba sílio, São Bento, Santo Agostinho e São Francisco; mas também
exis tem as dos Carmelitas, dos Mínimos, etc. Ao lado dessas
Re gras, há também, nessas Ordens, Constituições
ou Estatutos,
que determinam a norma aplicável na vida cotidiana. Na Companhia de
Jesus (jesuítas),
em lugar da Regra,
existe algo análogo, na cha mada Fórmula
do Insti tuto, breve descrição
da fi nalidade e estru turas da Ordem, contida nas bulas papais de
aprovação; mas também, ao lado dela, existem Cons tituições,
escritas pelo próprio Sto. Inácio. Pelo contrário, nas outras
Ordens nascidas a partir do século XVI, e em todos os outros
institutos de vida consagrada, não existe normalmente algo
seme lhante à Regra
e há, simples mente, Consti tuições,
que codificam não só os princípios inspira dores, mas também as
normas básicas sobre a espiritualidade, a estrutura e o governo do
Instituto. Em tempos re centes, em lugar de Constituições,
foram empre gados outros nomes, como Regra
de Vida, etc. Seja, porém, qual
for o nome, o Código de Direito Ca nônico exige que todos os
Institutos te nham um código fun damental aprovado
pela competente autoridade da Igreja,
no qual, além do que no cân.
578 se estabelece que se deve conservar
[o "patrimônio espiritual"] devem
constar as normas funda mentais so bre o regime do instituto e a
disciplina dos membros, sua incor poração e formação, bem como
sobre o objeto próprio dos vínculos sagrados
(cân. 587 § 1). É a este Código
fundamental que o nosso Có digo
de Direito Canônico se refere, quando fala de Consti tuições.
Ne las, de acordo com o nosso corpo legal, devem
ser de vidamente harmoni zados os elementos espirituais e jurídicos;
as normas, porém, não se mul tipliquem sem necessidade (cân.
587 § 3);
-outros Códigos.-
Também aqui a terminologia é variada: fala-se de Diretórios,
Costumeiros, Regras (no plural),
Regula mentos, etc.
Além desses dois tipos de normas, dentro
do Direito próprio, po dem
existir outras, como decisões dos capítulos, decretos do Supe rior
Geral, etc. Para estas vale também a advertência de que não se
multi pliquem sem necessidade.
A finalidade primordial da autonomia dos
Institutos de Vida Con sagrada é, conforme o Código afirma,
proteger mais fielmente a vocação
própria e a identidade de cada instituto
(cân. 587 § 1). Não se trata, pois, de condescendência com certas
tendências iso lacionistas, mas de favorecer a contribuição
específica de todos para o bem da Igreja.
A autonomia dos Institutos de Vida
Consagrada não é algo que in teresse somente a eles. A Igreja
inteira participa dessa varie dade en riquecedora. Por isso, cabe
aos Ordinários locais conser var e pro teger essa autonomia
(cân. 586 § 2)(6).
A profundidade do princípio de auto nomia chega até o ponto de ser
lembrado mesmo quando se trata da de pendência dos Institutos em
relação à Santa Sé, pois fica expressa mente salvaguardada a
prescrição do cân. 586 (cân.
593).
O princípio de autonomia é, pelo menos em
parte, uma apli cação do princípio de subsidiariedade, que foi um
dos norteadores da re forma do Código. Em virtude dele, os assuntos
que não forem necessá rios para a a unidade de disciplina da Igreja
universal devem ser deixados às le gislações particulares ou ao
poder execu tivo(7).
Dentro dos cânones ge rais relativos à vida consagrada, que estamos
comen tando, há uma dis posição bem concreta a esse respeito: Cabe
à compe tente autoridade do instituto, de acordo com as
Constituições, divi dir o instituto em par tes, quaisquer que sejam
os seus nomes, erigir novas partes, unir as erigidas ou dar-lhes
novos limites (cân. 581). Nem
sequer a primeira divisão está mais reservada à Santa Sé, como o
estava no direito ante rior ao Código de 1983. Ainda mais, a
su pressão de partes do instituto pertence à autoridade competente
do mesmo instituto (cân. 585).
Essas partes
costumam ser chamadas, nos institutos religiosos, províncias,
embora também possam receber
ou tros nomes, como re giões,
custódias, etc.
IV. Princípio de
dependência
A autonomia dos institutos de vida
consagrada não é abso luta. Ainda mais, encontra-se numa espécie
de relação dialética com a depen dência dos mesmos em relação à
autoridade eclesiás tica, que deve sal vaguardar a unidade de
disciplina da Igreja universal. Por isso, os
institutos de vida consagrada,, já que dedicados de modo especial ao
serviço de Deus e de toda a Igreja, estão sujeitos por razão
especial à sua autoridade suprema
(cân. 590 § 1). Em relação aos institutos, a diversidade de
autoridades de que dependem confi gura uma classificação em:
-institutos de direito diocesano,
erigidos canonicamente pela au toridade de um bispo diocesano, após
obter o nihil obstat
da Santa Sé, sem que tenham obtido desta o decreto de aprovação;
salvo o cân. 596, permanecem sob
o cuidado especial do Bispo dio cesano
(Cân.. 594);
-institutos de direito pontifício,
erigidos ou, pelo menos, apro vados pela Santa Sé, de acordo com o
procedimento que estuda remos mais adiante(8).
Salva a prescrição do cân. 586
[relativo ao princípio de
autonomia], os
institutos de direito pontifício,
quanto ao regime in terno e à disciplina, estão imediata e
exclu sivamente submetidos ao poder da Sé Apostólica
(cân. 593). Essa dependência, porém, tem limites bem precisos,
determi nados pelo direito. Pode-se dizer que ela é maior para os
insti tutos de di reito diocesano do que para os de direito
pontifício, pois quanto mais próxima estiver a autoridade
supervisora, tanto mais freqüente será a sua intervenção. De
fato, ao Bispo da sede principal de um instituto de direito diocesano
compete não só aprovar as consti tuições (que não devem ser
ela boradas pelo próprio Bispo), mas tam bém confirmar as mudanças
nelas legitimamente introduzidas. A razão está em que as
constituições são o instrumento jurídico que serve de elo de
união entre um instituto de vida consagrada e a estrutura
hierárquica da Igreja, que, no caso dos institutos de direito
dioce sano é precisa mente o Bispo diocesano. Como, porém, para a
ereção do instituto de direito diocesano foi ne cessária a
consulta à Santa Sé, o Bispo em questão deverá respeitar os
pon tos das constituições em que ela, como se diz tradicionalmente,
co locou a mão.
Por isso, es ses pontos só podem ser modificados com o consentimento
da própria Santa Sé.
Além do poder relativo à aprovação e
modificação das consti tuições, o Bispo da sede principal do
instituto de direito diocesano trata de todas as questões de maior
importância, referentes a todo o instituto e que superam o po der da
autoridade interna(9).
No Código de 1917, essa inter venção episcopal deveria ser
realizada, de comum acordo, por to dos os Bis pos das cir cunscrições
eclesiásticas onde a congregação de direito diocesano ti vesse
casas. Agora basta que o Bispo da sede principal consulte
os ou tros Bispos, sem que isso implique a obrigação de se guir o
parecer da maioria. Finalmente, o
Bispo diocesano(10),
em ca sos particulares [não
exatamente em "casos singulares"],
pode conce der dispensa das consti tuições
(cân. 595 § 2).
Um poder análogo ao que acabamos de
descrever corresponde, em re lação aos institutos de direito
pontifício, à Santa Sé, que o exercita normalmente através da
Congregação para os Institutos
de Vida Consa grada e as Sociedades de Vida Apostólica.
Só que, como di zíamos, fora do caso de aprovação ou reforma das
consti tuições, a sua intervenção é, normalmente, bastante
moderada.
Tanto para os institutos de direito
diocesano quanto para os de direito pontifício, há uma obrigação
de informação, sobre sua vida e atividades à Santa Sé. Por isso,
os superiores gerais estão obriga dos a enviar relatórios
periódicos à Congregação para os IVC e as SVA, no modo e tempo
por ela determinados(11).
A praxe atual é que sejam envia dos relatórios qüinqüenais, de
acordo com um questionário remetido previamente pela mesma
Congregação para os IVC e as SVA. Essa infor mação tem a
finalidade de melhor ali mentar a
comunhão dos institutos com a Sé Apostólica
(cân. 592 § 1). Com a mesma finali dade, os
moderadores de qualquer instituto
promovam o conhecimento dos documentos da Santa Sé que dizem
res peito aos membros que lhes são confiados, e cuidem que sejam
ob servados (cân. 592 § 2).
V. Agregação Fusão,
União, Federação e Confede ração de institutos
Dentro do capítulo dedicado à autonomia e
dependência dos ins titutos de vida consagrada, convém considerar
essas figuras ju rídicas de relacionamento entre os diversos
insti tutos.
Agregação
é um ato, mediante o qual, um instituto, depositá rio de uma
tradição espiritual própria, reconhece um outro como inte grante
dela e participante dos seus privilégios espirituais. A agre gação
não implica, portanto, nenhuma dependência jurídica, pois nela
fica sempre a salvo a autonomia
canônica do instituto agregado
(cân. 580). É antes uma comunhão de espírito e uma comu nicação
de graças espirituais. Atualmente, a Santa Sé não admite mais a
fundação de institutos, como as chamadas segundas
ordens dos mendicantes, com
verdadeira dependên cia jurídica da primeira
ordem. As terceiras
or dens, no sentido origi nário
do termo, podem ter essa dependência, mas não são institutos de
vida consagrada e sim associações de fiéis. Pelo contrário, o são
as chamadas ter ceiras ordens
regulares, às quais se aplica o
citado cân. 580. De acordo com ele, a agregação é
reservada à competente autori dade do instituto agregante.
Normal mente, essa autoridade competente é o Superior Geral, mas a
determi nação concreta dos trâmites a se rem se guidos corresponde
ao direito próprio de cada instituto.
Fusão é
a absorção de um instituto ou mosteiro por um outro, de tal forma
que o primeiro despareça por completo, embora alguns elemen tos de
sua tradição possam ser incorporados ao instituto ab sorvente. É
uma figura jurídica recomendada pelo Concílio Vati cano II(15),
em re lação aos institutos ou mosteiros decadentes e que não
oferecem espe rança fundada de reflorescimento.
União
é o ato de fazer com que dois institutos se integrem en tre si, de
tal modo que passem a formar um novo instituto, sob um novo tí tulo.
O Motu Próprio Ecclesiae Sanctae
(II, 39-41) deu algu mas normas sobre o modo prático de realizar as
fusões e uniões. Elas supõem uma preparação adequada,
espiritual, psicoló gica e jurídica. Deverá ser levado em conta o
bem da Igreja, atendendo tanto às ca racterísticas próprias de
cada instituto como ao bem de seus mem bros. De fato, ne nhum deles
pode ser obri gado a integrar-se no novo instituto, pois isso supõe
uma mudança substancial no contexto jurí dico de sua pro fissão.
Por isso, o citado Motu Próprio mandava que "seja ouvido
pre viamente cada um dos religiosos e tudo seja feito com caridade"(16).
Confederação
é o organismo jurídico de colaboração entre vá rios institutos
da mesma tradição -como, p.ex., as diversas Con gregações de
Irmãs de São José, das quais existem mais de 40 pro venientes de
uma única fundação-, a fim de se ajudarem mutuamente na
conservação e de senvolvimento do patrimônio espiritual comum.
Análoga a esta fi gura é a Confederação
Monástica ou associação de
várias federações de mostei ros autônomos, como as dos
benediti nos, sob um abade pri maz, que não exerce verdadeira
jurisdição sobre os mosteiros filia dos.
Federação
é a associação de vários mosteiros autônomos, sob um superior
maior comum, a fim de facilitar sua atuação em certos cam pos como,
por exemplo, no da formação, de acordo com estatutos Essa
dependência, porém, tem limites bem precisos, determi nados pelo
direito. Pode-se dizer que ela é maior para os insti tutos de
di reito diocesano do que para os de direito pontifício, pois quanto
mais próxima estiver a autoridade supervisora, tanto mais freqüente
será a sua intervenção. De fato, ao Bispo da sede principal de um
instituto de direito diocesano compete não só aprovar as
consti tuições (que não devem ser ela boradas pelo próprio
Bispo), mas tam bém confirmar as mudanças nelas legitimamente
introduzidas. A razão está em que as constituições são o
instrumento jurídico que serve de elo de união entre um instituto
de vida consagrada e a estrutura hierárquica da Igreja, que, no caso
dos institutos de direito dioce sano é precisa mente o Bispo
diocesano. Como, porém, para a ereção do instituto de direito
diocesano foi ne cessária a consulta à Santa Sé, o Bispo em
questão deverá respeitar os pon tos das constituições em que ela,
como se diz tradicionalmente, co locou
a mão. Por isso, es ses pontos
só podem ser modificados com o consentimento da própria Santa Sé.
VI. A Isenção
Como vimos, ao examinar a história da vida
consagrada, a isenção é uma instituição jurídica surgida na
Idade Média, para pro teger os mosteiros contra intromissões
indevidas de Bispos e senho res feudais. Posteriormente, no caso dos
mendicantes e dos clérigos regulares, teve a finalidade de
facilitar-lhes o aposto lado especí fico do instituto, como a
pregação ou a administração dos sacramen tos. Sem dúvida, a
isenção provocou também conflitos e dificuldades no relacionamento
en tre religiosos e Bispos. Por isto, o Concílio Vaticano II deu-lhe
uma nova interpretação: "A isenção, pela qual os religiosos
se relacionam diretamente com o Sumo Pontífice ou outra autoridade
eclesiástica e são subtraídos à jurisdição dos Bispos, se
refere sobretudo à disci plina interna dos institutos. Sua
finalidade está em ordenar e harmo nizar tudo, e em cuidar do
progresso e da perfeição da vida religiosa. E ainda, para que deles
possa dispor o Sumo Pontífice em benefício das Igrejas da própria
jurisdição. Esta isenção, porém, não im pede que os religiosos,
em cada diocese, este jam, à norma do di reito, sob a juris dição
dos Bispos, conforme o exigem o desempe nho do ofício pastoral e a
devida organização da cura de al mas"(18).
A partir desse texto conciliar, o novo
Código de Direito Canô nico, diferentemente do de 1917, contenta-se
com uma decla ração gené rica sobre a isenção, sem
regulamentar-lhe o conteúdo: Para
pro ver me lhor ao bem do instituto e às necessidades do
apos tolado, o Sumo Pon tífice, em virtude do seu primado na Igreja
universal, tendo em vista o bem comum, pode eximir os institutos de
vida consagrada do regime dos Ordinários locais e submetê-los
somente a ele próprio ou a outra autoridade eclesiástica
(cân. 591). Essa outra autoridade eclesiástica é, por exemplo, a
dos Patriarcas Orientais. Dada a atual falta de re gulamentação,
pelo direito comum, da isenção, é ne cessário recorrer sempre ao
di reito próprio de cada instituto. Não se esqueça, aliás, que,
con forme o cân. 4, os privilégios concedidos pela Sé Apostólica,
an teriores à promulgação do atual Código, per manecem em vigor,
a não ser que sejam expressamente revogados.
Por outro lado, dadas as declarações
conciliares sobre o pa pel dos Bispos diocesanos, na direção do
apostolado da Igreja particular e dada a autonomia de vida e de
regime reconhecida a todos
os insti tutos de vida consagrada, conforme já explicamos, a isenção
perdeu uma boa parte de seu conteúdo e valor.
III. Tipologia dos
Institutos Religiosos
O Código de 1983, após longas discussões
havidas no seio da co missão de reforma, renunciou a fazer uma
tipologia completa dos insti tutos religiosos. Emprega, contudo,
algumas denominações, sem defini-las, e omite outras tradicionais.
Já vimos anterior mente três classificações comuns a todos os
institutos de vida consagrada -de direito diocesano e de direito
pontifí cio; isentos e não-isentos; clericais e laicais-. Vejamos
ainda outras, especí ficas dos institu tos religiosos:
-- ordens - congregações.-
No quadro histórico da vida consa grada, já aparece esta distinção.
Ordens são os institutos em que, pelo menos alguns membros, emitem
votos solenes; congre gações, aque les em que somente se emitem
votos simples. Por causa da pouca conside ração que recebe, no novo
direito, a distinção entre esses dois tipos de votos, o Código
atual não faz nenhuma alusão a essa classi ficação dos
institutos. Isso não impede que as deno minações ordem,
con gregação continuem a ser usadas. Advirta-se, porém, que, desde
os fins do século XVII, a Santa Sé não aprova novas ordens;
-- institutos monásticos
são institutos onde prevalece a vida contemplativa e a ligação
permanente do religioso a uma comuni dade local determinada, chamada
mosteiro. A maior parte dos mos teiros são autônomos, sem que essa
qualidade seja necessária para a qualifi cação de um instituto
como monástico. O Código faz tam bém repetidas alusões às monjas
e aos seus mosteiros, mas não de fine o que seja monja. Como, porém,
de acordo com o cân. 6 § 2, os cânones, na me dida em que
reproduzem o direito anterior, devem ser apreciados le vando-se
também em conta a tradição canônica, podemos reter o con ceito
que aparecia no cân. 498, 70 do Código de 1917: "as religiosas
de votos solenes ou, se não constar o contrário pela natureza das
coi sas ou pelo contexto do discurso, as religiosas cujos votos, em
razão do seu instituto são solenes, mas por disposição da Sé
Apostó lica, em alguns lugares são sim ples". O Código atual
distingue dois tipos de mosteiros de mon jas: os que se destinam
inteiramente à con templação e os outros. Mais adiante estudaremos
as leis que os re gem, especial mente no que toca à clausura;
-- institutos canonicais
são institutos com forte tradição de ce lebração solene dos
ofícios divinos e com um apostolado de mar cada inserção
diocesana, especialmente nas paróquias;
-- institutos
conventuais são aqueles em que
se conservam as ob servâncias monásticas do culto divino, embora
normalmente com menos solenidade do que nos mosteiros, junto com uma
vida apostó lica e com uma especial austeridade. Dentre os
insti tutos conven tuais, destacam os mendicantes, assim chamados
por que, diferente mente das ordens an teriores, não devem viver de
rendas, mas da esmola recebida, in cluindo as espórtulas por ocasião
do exercí cio do ministério sa grado;
-- institutos
de caráter integralmente apostólico,
onde as obser vâncias conventuais ficam plenamente subordinadas ao
exercí cio do apostolado, de acordo com a inspiração fundacional.
Como exemplos deste tipo de institutos, citam-se os clérigos
regulares e as congre gações religiosas, tanto as clericais quanto
as lai cais, de homens ou de mulheres.
A dificuldade de caracterizar cada um dos
tipos de instituto ci tados se deve, em parte, à interpenetração
de elementos de um modo de vida no outro. As formas são fluidas. O
que faz, em defi nitiva, que se aplique uma ou outra denominação é
a tradição do instituto e o reco nhecimento da autoridade
competente da Igreja.
O
GOVERNO DOS INSTITUTOS
RELI GIOSOS
OS
SUPERIORES E OS SEUS CON SELHOS
I.
Sentido da autoridade na vida religiosa
A
Constituição dogmática Lumen Gentium, do Concílio Vaticano II, no
seu n0 8, expõe a dupla natureza da Igreja, simultanea mente visível
e espiritual, e compara o mistério da Igreja ao mistério de Cristo.
Por isso, não podemos considerar a autoridade e os aspectos
organiza cionais (as estruturas, como se costuma di zer) como uma
sim ples con cessão à debilidade humana. Eles são uma conseqüência
do sentido en carnatório do ser eclesial. A encar nação de Cristo
signi ficou um assu mir plenamente a natureza hu mana, com todas as
conse qüências que daí se derivam. Ora, como essa natureza é
também so cial, a Igreja possui uma dimensão so cial intrínseca ao
seu próprio ser. Do mesmo modo que, em Cristo, as duas naturezas -
divina e hu mana - se encontram indissolu velmente unidas, sem
mistura e sem con fusão, sem divisão e sem sepa ração, também o
aspecto visível, so cial, externo da Igreja se encontra
indissoluvelmente unido a sua vida íntima, a sua atuação como
conti nuadora do Cristo, sinal e ins trumento da graça divina. Nesse
sentido, a autoridade da Igreja tam bém participa do seu ser
sacramen tal.
A
vida religiosa, enquanto estado reconhecido e organizado em
institutos canonicamente erigidos, encontra-se inserida dentro desse
contexto da dupla natureza da Igreja, e dela participa. Por isso, o
novo Código, quando trata do governo dos institutos reli giosos,
co meça por uma afirmação que, de acordo com a Consti tuição
Sacrae Dis ciplinae Leges, que o promulgou, pertence ao cerne da
Eclesiologia do Vaticano II: Os Superiores exerçam em espírito de
serviço o seu poder, recebido de Deus pelo ministério da Igreja
(cân. 618). A au toridade é, pois, um serviço aos irmãos. Esse
serviço, porém, con siste precisamente em or denar o que deve ser
feito, para o bem de todos; ou, como expressou Paulo VI, na Exortação
Apostólica Evange lica Testificatio (n. 25), em "despertar nos
coirmãos as certezas da fé". O Superior religioso não é um
Senhor. Por isso, como já fala mos, afortunadamente, o novo Código
não qualifica mais o seu poder de dominativo. Por ou tro lado, ele
não re cebe a sua autoridade da comu nidade; conse qüentemente, não
pode ficar simples mente à mercê dela. O seu ser viço específico
consiste precisamente em exercer a autori dade, mesmo que, às vezes,
isso se torne custoso. Tão reprová vel é o superior autoritário,
que esquece o espírito de serviço com que deve atuar, quanto o
superior que abdica de sua auto ridade e se torna in capaz de tomar
uma decisão. O Código fala insis tentemente(1) de ver dadeiro
poder. Por isso, creio que carece de sen tido o uso da pala vra
coordenador(a) -bastante difundida nos institutos femininos
brasileiros-, para designar os supe riores re ligiosos. A função
deles não é simplesmente a de coorde nar, mas a de de cidir e
prescrever o que deve ser feito (cân. 618).
II.
Modo de exercer a autoridade na vida religiosa
Da
concepção da autoridade como serviço, derivam-se algumas
con seqüências importantes para o seu exercício. Neste ponto, o
Có digo se gue fielmente o n0 14 do Decreto Perfectae Caritatis,
dando, no cân. 618, as seguintes recomendações:
sejam dóceis à vontade de Deus. O exercício da autoridade é
sempre um exercício de discernimento, de procura da vontade de Deus.
Esse discernimento só será possível se o superior tiver uma
intensa vida de oração e estiver atento aos sinais dos tempos;
governem seus súditos como a filhos de Deus. A autoridade é função
de serviço, não uma base para o estabelecimento de pri vilégios. A
dignidade de filhos de Deus é igual para todos, supe riores e
súdi tos;
tenham respeito pela pessoa humana. Poderia pensar-se que este
conselho já está incluído no anterior. Na realidade, fazia-se
necessá rio explicitá-lo, porque, no nosso tempo, houve um
cresci mento da sen sibilidade em relação aos direitos da pessoa
humana; ainda mais, uma intervenção decidida da Igreja nesse campo.
É ver dade que, pela pro fissão, o religioso renuncia
volun tariamente a al guns dos seus direitos e isso deve ficar bem
claro para todos os can didatos que se apresentam à vida religiosa.
Mas isso não equivale a uma renúncia à própria per sonalidade.
Certas atitudes de superio res e mestres, para provar os seus
co-irmãos são completamente descabi das;
promovam a obediência voluntária dos súditos. Autoridade e
obe diência são duas faces da mesma medalha. Por isso, se no cân.
601 se falava de submissão da vontade, aqui se exorta o superior a
faci litar essa obrigação, que, em princípio, não é nada fácil.
Para con seguir essa finalidade, o superior deve procurar fazer
compreensí veis suas ordens e, sobretudo, mostrar que as dá em
ra zão do bem não só do instituto, mas também de cada um dos seus
membros;
ouçam de bom grado os seus súditos. É um outro modo de con seguir
a obediência voluntária. Ainda mais, como o superior deve procurar
discernir a vontade de Deus, em cada caso concreto, um dos dados com
que sempre terá que contar é precisamente a si tuação pes soal e
a in clinação de seus súditos. Não pode tratar-se de um sim ples
ouvir mate rialmente, mas de escutar com verdadeiro interesse; por
isso, deve ser um ouvir de bom grado;
promovam a colaboração dos súditos para o bem do Instituto e da
Igreja. Obediência não é o mesmo que indiferença passiva ou
desconhe cimento dos problemas. O religioso deve sentir como pró pria
a vida toda do instituto em que se encontra inserido, e a da Igreja,
a cujo serviço está dedicado de um modo especial(2);
Todas
essas atitudes, porém, não significam que o superior deva abdicar
de sua função específica, de serviço, de que falamos acima. Tanto
para ele quanto para os súditos, deve ficar claro o princípio de
que deve ser mantida a autoridade do superior, de decidir e
prescrever o que deve ser feito(3). Essa autoridade deverá ficar
dentro dos limites das constituições e terá que ser exer cida com
o espírito que acabamos de descrever, mas é verdadeira autoridade.
III.
A finalidade e os meios de exercer a autori dade religiosa
Mas
para que serve a autoridade? O nosso Código não se con tenta com
afirmar a existência e legitimidade da autoridade reli giosa. Quer
também que seja exercida para finalidades concretas. No caso da vida
religiosa, não podia faltar o próprio sentido da vida consa grada
("consagração total a Deus sumamente amado"), nem o modo
de levar adiante o compromisso da profissão religiosa (mediante uma
"vida fra terna em comum"). Dessa forma, pode-se di zer que
o exercí cio da auto ridade serve mais claramente à reali zação
da vocação re ligiosa: cons truir uma comunidade religiosa, na qual
se busque e se ame a Deus an tes de tudo (cân. 619).
Para
a consecução dessa finalidade global, o instituto reli gioso e quem
nele exerce o serviço da autoridade devem usar os meios adequa dos.
O Código enumera alguns:
nutram os membros com o alimento freqüente da Palavra de Deus. É
esta uma necessidade derivada do próprio ser da vida con sagrada,
en quanto seguimento de Cristo(4), de acordo com o que está proposto
no Evangelho(5);
levem-nos à celebração da sagrada liturgia; de modo mais
especí fico, à celebração da Eucaristia, que deve ser
verdadeira mente o cen tro da vida da comunidade religiosa(6);
sirvam-lhes de exemplo no cultivo das virtudes; não só das
natu rais, como a prudência ou a afabilidade, mas também das
so brenaturais, como a fé, a esperança e a caridade. Só edifica
ver dadeiramente quem, mediante o exemplo, demonstra a veracidade de
suas palavras;
sirvam-lhes de exemplo na observância das leis e tradições do
próprio instituto, conservando assim a fisionomia própria dele;
atendam convenientemente a suas necessidades pessoais, tanto de ordem
espiritual - como a disponibilidade de confessores e dire tores
espirituais - quanto de ordem material, dentro, é claro, da
austeri dade própria daqueles que professam a pobreza evangélica;
tratem com solicitude e visitem os doentes. Também dentro da vida
religiosa, é necessário um cuidado especial para aqueles que mais o
precisam. Em relação aos doentes, não se esqueça que, nos
institutos clericais, é função do superior ministrar a Euca ristia
como viático(7) e a unção dos enfermos(8);
corrijam os irrequietos. Como dizíamos, o serviço da auto ridade
consiste precisamente em exercer a sua função, dirigindo, na parte
que a cada superior cabe, o instituto para a consecução dos seus
fins. Daí a necessidade de corrigir aqueles que erram. Não se
esqueça que essa é precisamente uma obra de misericórdia. A
omissão perante o erro pode ser interpretada, às vezes, como
concordância com ele;
consolem os desanimados. O superior deve ser um verdadeiro ani mador
da comunidade, marchando à frente dela, mostrando a sua con fiança
na Divina Providência, quando surgem dificuldades, acei tando com
generosidade e ânimo forte as contrariedades, es tendendo a mão aos
que se sentem fatigados no meio do caminho;
sejam pacientes com todos. A paciência é o modo de acomodar o
próprio passo ao ritmo de que cada um é capaz, incentivando-o a
cami nhar; não é, pelo contrário, ficar parado no meio do caminho.
Quem é verdadeiramente paciente não perde de vista a meta aonde
pre tende che gar, mas sabe esperar o momento oportuno para acele rar
a caminhada.
IV.
Terminologia do Código a respeito dos Superio res
O
Código de Direito Canônico usa dois termos para se referir aos que
exercem a autoridade nos institutos religiosos: moderado res e
su periores. Contra o que poderia parecer, numa visão super ficial,
o termo latino moderator não tem uma conotação de menor
autoridade. O próprio Código o usa para referir-se, por exemplo,
aos superiores dos seminários (câns. 239 § 3 e 261), aos
presi dentes ou diretores de as sociações de fiéis (câns. 309,
317, 318, 319,320, 324, 329), às auto ridades civis (cân. 364, 70),
etc. De fato, etimologicamente "moderador" é aquele que
regula as ener gias, refreia e dirige os ímpe tos. Tem,
conseqüentemente, uma verdadeira função de direção.
Na
parte relativa à vida religiosa, quando fala do Superior Ge ral de
um instituto, o Código usa sempre a expressão moderador su premo.
Também, quando fala de um mosteiro autônomo, usa prefe rencial mas
não exclusivamente o termo moderador. Em relação, po rém, aos
ou tros que exercem a autoridade num instituto religioso, usa o termo
superior. Mas em relação aos institutos seculares e às sociedades
de vida apos tólica, emprega também a expressão mo deradores
maiores.
Dentro
da 3a parte do livro II do Código, o termo abade ("abbas")
é aplicado somente ao presidente de uma congregação mo nástica ou
ao primaz de uma confederação. Para os superiores de mos teiros
autônomos, usa-se, como dizíamos a palavra moderador. Con tudo, no
cân. 370 apa rece a figura do abade territorial, e no livro VII se
fala dos abades locais(9), para indicar superiores que estão à
frente de um único mos teiro de monges.
Superiores
maiores são os que governam todo o instituto, uma sua província,
uma parte a ela equiparada, ou uma casa autônoma, bem como seus
vigários. A estes acrescentam-se o Abade Primaz e o Supe rior de
congregação monástica que, todavia, não têm todo o poder que o
direito confere aos Superiores maiores (cân. 620). Como vimos, a
superiora de uma casa autônoma também não tem todo o poder de um
su perior maior. Em relação às limitações que afetam o Abade
Primaz e o Superior de Con gregação monástica, deve-se atender ao
que determine o direito pró prio.
Superiores
locais - no Código não se usa a expressão "superiores
menores" - são os que se encontram à frente de uma casa
não-autônoma, embora canonicamente erigida.
Cada
superior tem autoridade no âmbito de sua jurisdição. Por isso, o
Moderador supremo tem poder sobre todas as provín cias, casas e
membros do instituto, a ser exercido de acordo com o direito
pró prio; os outros superiores o têm dentro dos limites do próprio
ofí cio (cân. 622).
V.
Constituição dos Superiores Gerais
O
cargo de superior num instituto religioso é um verdadeiro ofí cio
eclesiástico, no sentido do cân. 145. Por isso, é necessá rio que
quem é chamado a exercê-lo receba uma provisão canônica,
con forme dispõe o cân. 146. O direito comum determina o modo dessa
pro visão somente em relação ao moderador supremo de um instituto,
ao qual pa recem também equiparar-se os superiores de mosteiros
autôno mos. Em todos estes ca sos, a provisão deve ser feita
me diante eleição canô nica, de acordo com as constituições(10).
De fato, não existindo uma autoridade supe rior, interna ao
insti tuto, a não ser o capítulo ge ral, não se vê de que outro
modo po deriam ser designados esses supe riores, sem ferir a
autonomia própria dos institutos de vida consa grada. A eleição
canô nica é um procedimento preciso, regu lamentado no Código de
Direito Ca nônico, nos cânones 164-179(11). Mas, por dis posição
expressa do ci tado cân 625, deve haver ainda no vas concreti zações
nas consti tuições de cada instituto. Ainda mais, estas po derão
afastar-se, em alguns pontos, do que determina o di reito co mum,
como se de clara expressa mente nos câns. 119, 164, 165, 174, 176 e
179 § 5. É conveniente que as constituições sejam bas tante
explí citas nesta matéria. A experiên cia ensina que os confli tos
surgem mais freqüentemente quando faltam normas ou quando elas são
muito am bíguas. É claro, porém, que questões de mero
procedi mento, como o formato das cédulas ou da urna, a ordem de
votação dos membros do capítulo e outras semelhantes não precisam
estar determi nadas nas constituições, embora seja conveniente que
constem em ou tros do cumentos, como o diretório geral do instituto
ou o regimento do pró prio capítulo.
A
eleição do superior geral, por disposição expressa do Có digo,
deve ser realizada pelo Capítulo Geral(12). Em institutos
geografica mente muito dispersos, essa norma parece óbvia, pois
faltará normal mente à maioria dos membros do instituto o
conheci mento adequado das pessoas capazes de desempenhar esse
encargo. No capítulo geral, pelo contrário, sempre há o contato
direto dos delegados das diversas re giões, e a possibilidade de
obter as in formações oportunas. Ainda mais, os próprios membros
do capítulo, com as suas intervenções, vão manifestando seu modo
de ser, mos trando a sua personalidade, suas opiniões e
mentalidades. Por isso, normalmente, é eleito um membro do próprio
capítulo.
O
que levamos dito não tira a possibilidade, sobretudo em insti tutos
menos numerosos, de se fazer uma prévia, entre os pro fessos de
votos perpétuos, com a finalidade de detectar as prefe rências,
con tanto que fiquem a salvo a liberdade do capítulo e o ca ráter
meramente indicativo dessa prévia. Mas não creio que, em ne nhuma
hipótese, seja conveniente a realização de eleições "diretas",
para preencher o cargo de superior geral. Esse proce dimento tiraria
a possibilidade de se criar o clima de discerni mento através da
oração, que sempre se deve procurar, nessas oportunidades, nos
capí tulos. Além disso, o recurso à eleição "direta"
poderia prolongar desnecessariamente a eleição, pois sempre terá
que ser exigido um quórum significativo, que rara mente será
atingido nos primeiros es crutínios. Ora, como estes deverão
pro cessar-se mediante o envio dos votos à sede principal, haveria a
ne cessidade de prazos relativa mente dilatados, a fim de não
preterir ninguém. A eleição "direta" é também mais
apta a criar um clima de partidarismo, dentro do insti tuto, com
detri mento do espírito reli gioso(13). Em todo caso, para a
introdução das eleições "diretas", na escolha do
superior geral, é necessá rio um indulto da Santa Sé, pois a
eleição pelo capítulo é, como dizõamos, norma obrigatória no
direito comum.
A
presidência do capítulo geral que elege o moderador su premo
corresponde, nos institutos de direito pontifício, a quem, no
mo mento, estiver exercendo, mesmo que só interinamente, o go verno
ge ral do ins tituto. O Código atual já não faz, a este res peito,
ne nhuma distinção entre institutos masculinos e femininos. No
caso, porém, de institutos de direito diocesano - tanto mascu linos
quanto femininos - e no de mosteiros autônomos de mon jas(14), essa
presidên cia corresponde ao Bispo diocesano da sede principal(15).
Mas essa presidência não con fere ao Bispo nem o di reito de voto,
nem o de confirmar ou deixar de confirmar a pessoa eleita.
Corresponde a ele unicamente o direito de proclamar o re sultado da
eleição, de acordo com o cân. 176. Por isso, deverá abster-se de
qualquer intervenção que possa ser interpretada como uma manobra
para conseguir a eleição ou a exclusão de um indiví duo
determinado. Pela própria natureza de sua função, é claro que o
Bispo diocesano pode delegar a presidência a uma outra pessoa,
inclu sive a um leigo, pois não se trata de um verdadeiro ato de
jurisdição.
VI
- Constituição dos outros superiores
O
Código dá uma norma de caráter genérico, que deverá ser
concre tizada ulteriormente: Os outros superiores sejam constituídos
de acordo com as constituições, mas de tal modo que, se são
eleitos, ne cessitem de confirmação do Superior maior competente;
se são no meados pelo Su perior, haja consulta adequada (cân. 625 §
3). Na prá tica, existem di versos sistemas. Para a designação dos
superiores provin ciais, os mais comuns são os seguintes: a) a
eleição em capí tulo pro vincial, com con firmação prévia ou
poste rior do superior ge ral; b) eleição por votação direta de
todos os membros da província e confir mação pelo superior geral;
c) se leção de três ou mais nomes, por vo tação direta e
aprovação deles pelo superior geral, com eleição defi nitiva pelo
capítulo provin cial; d) consulta prévia aos membros da província
e nomeação li vre pelo superior geral; e) levan tamento prévio do
"perfil" do superior provincial que se deseja, mas sem
indicação de nomes, e nomeação livre da parte do geral. Cada
instituto, baseado na sua experiência e tradições, deveria avaliar
os diversos sistemas e estabelecer, nas constituições o que achar
mais conveniente. Em todo caso, não se esqueça a necessidade de um
certo equilíbrio entre as es truturas democráticas e as
hierárquicas, representado pelos binômios eleição-confirmação e
consulta-nomeação.
Algo
semelhante se poderia dizer a respeito da designação dos
su periores locais, com a ressalva, porém, de que, fora das casas
autôno mas, nas quais os superiores locais se equiparam a superiores
maiores, dificilmente se poderá pensar numa eleição pura e
simples mente direta. Afinal, a comunidade local não perma nece a
mesma du rante o mandato do superior e nem sempre disporá no seu
seio de pes soas aptas para o cargo, pelo que deverá recor rer a
membros de ou tras comunidades, sobre os quais não tem ne nhuma
autoridade. Por isso, o sistema quase univer salmente em vi gor é o
da nomeação pelo superior geral, ou pelo provin cial com
consentimento do geral, pré via consulta, mais ou menos for mal, aos
membros da comunidade.
VII
- Outras normas para a constituição dos supe riores religiosos
Além
do que está estabelecido nos cânones 164-179 e das ou tras
determinações que acabamos de comentar, o Código dá, no cân.
626, al gumas recomendações aplicáveis aos superiores maiores que
nomeiam os inferiores, e aos membros que participam de uma eleição.
As mes mas re comendações se deveriam aplicar, com as devidas
adaptações, aos casos de confirmação e de escolha prévia de
candidatos, pois se trata de questões similares. Não se pode,
porém, dizer que se trate aqui de de terminações cuja violação
comporte a nulidade da nomeação ou eleição, pois em nenhum lugar
aparece uma cláusula irritante. São antes apelos à consciência e
à responsabilidade dos religiosos, num assunto de tanta importân cia
para a vida do instituto.
Como
dizíamos acima, a designação de um superior religioso deve ria
acontecer num clima de discernimento espiritual, permeado pela
oração. Daí a procura de motivações corretas, na busca da
von tade de Deus e do bem da Igreja e do instituto. Todos devem
abster-se de exer cer pressões, abuso de autoridade ou
discrimi nação de pes soas, por mo tivos alheios à própria vida
religiosa. O Código pede que [os superio res] nomeiem os que no
Senhor reconhe cerem ser verda deiramente dignos e idôneos (cân.
626). Advirta-se que não se impõe a obrigação de ele ger o mais
idôneo. De fato, pode haver circunstân cias em que, para evitar a
eleição ou no meação de alguém manifesta mente inepto, seja
ne cessário fixar-se em alguma pessoa que não reúna todas as
qualidades, mas que tenha as suficientes para o de sempenho do cargo.
O que não se ria moral mente aceitável é votar em alguém que o
eleitor julga, em cons ciência, claramente incapaz.
O
Código pede, especialmente, para evitar as manobras eleitorei ras.
Por isso, proíbe angariar votos, direta ou indire tamente, para si
mesmo ou para outros (cân. 626). Infelizmente, esta é uma das
normas mais violadas na prática: ou positivamente, levando a cabo
uma verda deira campanha eleitoral; ou negativa mente, fazendo
propaganda contrá ria a determinada ou determinadas pessoas.
Insista mos: um instituto religioso não é comparável a uma
sociedade polí tica. O que se deve procurar, acima de tudo, na
designação dos supe riores religiosos, através da oração, do
dis cernimento e da re flexão, é a vontade de Deus. Por isso, é
fre qüente que os capítulos eletivos passem um ou mais dias em
re tiro, antes de proceder à eleição do superior geral ou
provin cial. Não se pode, porém, dizer que vá contra estas
prescrições a prática, tão comum em institutos religiosos, de
permitir e até acon selhar as informações fornecidas pelos
diversos capitulares, contanto que não se pretenda, com elas, de
jeito nenhum, impor ou excluir um candidato.
Já
não existe no Código nenhuma norma que declare nulo o voto dado a
si mesmo, mas a própria natureza das coisas desacon selha uma
auto-votação. De fato, não pareceu oportuno, à comissão
redatora, declarar essa nulidade, que estava expressa no Código de
17; nem pa rece conve niente fazê-lo no direito próprio de um
instituto, dada a grande difi culdade e os inconvenientes que se
seguiriam da identifi cação do voto do eleito, caso a maioria
ob tida fosse a mínima estri tamente requerida para a eleição.
IX
- Requisitos para o cargo de superior religioso
O
superior religioso deveria corresponder à figura descrita nos três
primeiros parágrafos deste capítulo. É verdade que o Có digo, nos
cânones correspondentes, traça apenas uma descrição, sem se
pa rar a determinar ou não a obrigatoriedade das qualidades lá
mencio nadas. As constituições, porém, deveriam concretizar um
pouco mais, requerendo também que se trate de religiosos
profun damente amantes das tradições do instituto e plenamente
inseridos no seu espírito.
Por
outro lado, o Código exige que o direito próprio - tra tando-se de
superiores maiores, devem ser especificamente as consti tuições -
determine um tempo conveniente, depois da pro fissão perpé tua ou
defi nitiva, para a nomeação ou eleição de su periores
religio sos(16). Con tra o que constava no Código de 1917, o atual
não quis dar uma norma unificadora de todos os institu tos. É
bastante comum as constituições exigirem um mínimo de dez anos de
profissão perpé tua, para o cargo de superior geral; e de cinco,
para o de superior provincial. Não há, porém, como dizía mos,
nenhuma determinação do direito comum a esse respeito, pelo que os
limites citados poderiam variar, de acordo com a índole e as
tradições do instituto.
Quanto
aos superiores locais, em muitas congregações femini nas no Brasil,
se apresenta atualmente uma certa dificuldade para cum prir o citado
cân. 623. Ao existir, cada vez mais, "pequenas comuni dades",
com três ou quatro membros - se fossem apenas dois, não se poderia
fa lar de casa religiosa -, não é sempre fácil en contrar irmãs
professas de votos perpétuos, capazes de assumir nelas o ser viço
da autoridade. Como o requisito da profissão per pétua, de acordo
com o cân. 623, é para a validade da consti tuição do supe rior,
a única saída possível seria adscrever essas pequenas comuni dades
a uma outra casa maior, de cuja superiora dependeriam efetiva mente.
Trata-se-ia do que chamamos casas fi liais, para cuja figura jurídica
apontamos alguns inconvenien tes no capítulo anterior. Como, de
acordo com o conceito que lá de mos, nas casas filiais há apenas um
delegado do superior da comu nidade da qual dependem, é claro que
esse delegado poderia ser professo de votos temporários. Por outro
lado, no caso dos supe riores locais, o tempo conveniente após a
pro fissão perpétua exi gido pelo Código poderia ser reduzido ao
mínimo no caso dos supe riores locais.
O
Código nem estabelece diretamente, nem exige que o direito pró prio
dos institutos determine uma idade mínima para o cargo de supe rior.
As constituições e os diretórios, porém, poderiam con ter algumas
determinações a este respeito, como também fixar uma idade máxima
- por analogia com o que se estabelece nos câns. 401 e 583 -, para o
desempenho de funções de governo num instituto.
X
- Duração e cessação do mandato dos superiores
Como
norma geral, os superiores religiosos são temporários ou, como diz
o cân. 624 § 1, constituídos por determinado e con veniente
período de tempo, segundo a natureza e a necessidade do instituto.
Deve haver, portanto, uma determinação clara e ex pressa do direito
próprio, acerca desse período: dois, três, qua tro... anos. Ele
deve, porém, ser conveniente, ou seja, tal que permita um verdadeiro
go verno. Estabelecer períodos curtíssimos, como seriam seis meses,
equi valeria a reduzir os superiores a fi guras pouco mais do que
decorati vas. Quanto mais elevado é o ní vel de governo, tanto mais
conveniente parece o prolongamento do mandato, a fim de permitir a
execução de um programa de go verno. Não se esqueça, aliás, que
os mandatos dos su periores, como já dissemos, devem ser
determinados segundo a natureza e as necessidades do instituto.
Exatamente por isso, o Código prevê uma possível exceção à
temporalidade do mandato dos superiores: o Mo derador supremo de um
instituto e o Superior de uma casa autô noma po dem ser vitalícios,
se as constituições assim o determina rem(17). É o que acontece,
por exemplo, com o superior geral dos jesuítas, dos cis tercienses
ou dos cartuxos, e com os abades de um bom número de mos teiros
autônomos beneditinos. Contudo, a praxe atual da Congregação para
os Institutos de Vida Consagrada e as So ciedades de Vida Apostó lica
é a de não aprovar novas cons tituições que contenham uma
cláusula de vitaliciedade do superior geral.
O
direito próprio deve determinar também se é permitida, nos
di versos níveis de governo, a reeleição ou recondução para
manda tos su cessivos. É comum que as constituições de institutos
reli giosos permi tam um segundo e, às vezes, um terceiro mandato,
para gerais e provin ciais; para superiores locais é bastante
freqüente a permissão de até um terceiro mandato, dado que,
geralmente, são designados para dois ou três. anos.
Um
problema prático, que se apresenta com freqüência nos institu tos
religiosos, é o do surgimento de uma certa "casta" de
su periores. Algumas pessoas permanecem em cargos de governo quase
du rante a vida toda, dando a impressão de que apenas "trocam
de ca deira" entre elas. A simples limitação do número de
reeleições pos síveis não soluciona o problema, que pode ter
graves conse qüências, como a estagnação do ins tituto e o culto
à personali dade. Por isso, o Código de 1983 introdu ziu um novo
dispositivo: O direito próprio providencie, mediante nor mas
adequadas, que os Superiores constituí dos por tempo determinado não
permaneçam du rante muito tempo sem in terrupção em ofícios de
go verno. A rigor, trata-se aqui de superio res (cân. 624 § 2), em
sentido estrito, não de diretores de obras - p.ex., o diretor de um
colégio o rei tor de uma universidade - ou de membros dos conselhos,
os quais não são verdadeiramente superiores. A finalidade, porém
desta lei aconse lha também uma certa prudência para evitar a
permanência ilimitada destes últimos no cargo. Como norma geral,
cremos que seria aconselhá vel limitar o desempenho de cargos de
governo a um período de nove a doze anos consecutivos. Após esse
tempo, o re ligioso deveria permane cer alguma tempo, por exemplo de
dois a três anos, reaprendendo a ser súdito e tendo de novo a
experiên cia do obedecer. Talvez conviria fa zer uma exceção para
a eleição do superior geral, pois este cargo exige uma maior
experiência de governo, que se manifesta no desempenho de outros
cargos, em ní vel provincial e local.
O
mandato dos superiores religiosos pode cessar, como em qual quer
ofício eclesiástico, pelo transcurso do tempo prefixado, pelo
cumpri mento da idade porventura determinada pelo direito, pela
re núncia le gitimamente aceita, pela transferência, pela
des tituição e pela pri vação. Já falamos suficientemente das
duas primeiras hipóte ses. Veja mos as outras duas.
Na
parte relativa aos institutos de vida consagrada, o Có digo não dá
nenhuma norma sobre a renúncia, nem sequer aludindo à sua
possibi lidade. Aplica-se, portanto, a legislação geral, con tida
nos câns. 187-189. De acordo com eles, qualquer um, cônscio de si,
pode renun ciar a um ofício eclesiástico por justa causa. Poderiam
as consti tuições proibir a renúncia? Creio que não, por que
seria algo contra a legislação geral da Igreja e até contrá rio
ao próprio di reito natural. Com efeito, pode haver razões graves,
de consciência, que aconselhem a renúncia. Como norma ge ral,
porém, ela deverá ser aceita pela autori dade competente, ou seja,
por aquela a quem cor responde a provisão do ofício em questão.
Para os superiores locais, essa autoridade poderia ser o provincial;
para este, o geral. Mas para o geral a praxe da Con gregação para
os IVC e as SVA tem sido a de considerar a acei tação da renúncia
assunto reservado a ela pró pria, embora o ló gico seria deixá-la
à competência do capítulo geral do instituto. Por outro lado, é
claro que, nos institutos de direito diocesano, basta que a renúncia
seja aprovada pelo bispo diocesano.
A
transferência e a destituição de superiores religiosos se
en contram explicitamente previstas no cân. 624 § 3 que acrescenta
que elas podem acontecer por causas determinadas no direito pró prio.
Além desse direito próprio que, com freqüência, é omisso, devem
ser levados em conta os câns. 190-191 (para a transferên cia) e
192-195 (para a destituição). A decretação delas corres ponde
também à auto ridade com petente para a provisão do ofício em
questão. Advirtamos, porém, que também nesta matéria a
Congre gação vaticana considera a destituição de um superior
geral como assunto reservado a ela pró pria.
A
privação do cargo de superior, como pena imposta pela co missão de
um delito, rege-se pelo cân. 196 e supõe um processo pe nal, para a
apuração da responsabilidade. É claro que o supe rior competente
pode ria, se o achasse conveniente, decretar a suspensão provisória
do acu sado de sua função de governo. Por ou tro lado, tanto neste
caso quanto nos já citados de transferência e desti tuição, é
sempre preferível atuar pela via dos entendimen tos frater nos.
Somente quando estes não sejam possíveis, é que se deve recor rer
aos procedimentos jurídicos.
XI
Âmbito do poder dos superiores
Ao
falar dos institutos de vida consagrada, em geral, fala mos da
natureza do poder de seus superiores. Agora, interessa-nos
deter minar a sua extensão. O cân 622 é bastante claro ao
res peito: o mo derador supremo tem poder sobre todas as províncias,
casas e membros do insti tuto, a ser exercido de acordo com o
di reito próprio, os ou tros o têm dentro dos limites do próprio
ofício. Não se esqueça, porém, que o princípio de
subsidiariedade é aplicável também nos institutos reli giosos. Por
isso, não obs tante a competência própria, as instâncias
superiores não devem intervir quando as instâncias in feriores são
ca pazes de resolver adequadamente um assunto e a inter venção não
se de monstra neces sária para a unidade do instituto.
O
poder dos superiores está limitado, em princípio, ao foro ex terno,
ou seja, àquilo que se refere à ordem social, dentro do insti tuto
religioso. Contudo, não se deve esquecer que a vida consa grada tem
uma finalidade primária, de ordem espiritual, al cançar a perfeição
da caridade no serviço do Reino de Deus (cân. 573). Por isso, o
supe rior não se pode desentender do progresso espiritual de seus
coirmãos, na prática do amor de Deus e do pró ximo. Nesse
sen tido, a manifestação espontânea do religioso feita ao
superior, a respeito da vida de oração, da intimidade com Deus, das
dificuldades e lutas interiores, pode ser um grande ato de caridade
para com o mesmo superior, pois lhe possibilitará o exercício de
sua função de pai espiritual. Por isso, o Código exorta a que os
membros procurem com confiança os Superiores, po dendo abrir-lhes
livre e espontanea mente o próprio ânimo (cân. 630 § 5). Essa
abertura é conhecida tra dicionalmente como conta de consciên cia,
e foi muito inculcada por alguns fundadores, como São Bento e Santo
Inácio. Ela pode brotar do desejo de ajudar o superior, dando-lhe os
dados necessários para um bom governo es piritual; ou do desejo de o
religioso ser ajudado por ele. Mas, de acordo com a legislação
atual, a conta de consciência não pode ser imposta, como um dever.
De fato, os Superiores são explicita mente proibidos de induzir os
súdi tos, de qualquer modo que seja, a manifestar-lhes a própria
consciên cia (ibid.). O inciso "quoquo modo" (de qualquer
modo) foi expressa mente colocado para re jeitar a prática de tornar
obrigatória a mani festação da consciência a um grupo, como seria
a própria comunidade religiosa, ou a alguns psicólogos designados
pelo superior(18).
Para
prevenir qualquer abuso, neste campo, o Código proíbe tam bém que
os superiores e os mestres de noviços ouçam habitual mente as
con fissões de seus súditos (19). Só podem fazê-lo em ca sos
particula res e sob petição espontânea dos interessados. Qual quer
disposição do di reito próprio que contrarie as proibições que
acabamos de ver só pode ria existir em virtude de indulto
pon tifício. De fato, alguns institu tos obtiveram, por exemplo, o
privilégio de que o mestre possa ser confessor ordinário de seus
noviços. Mesmo nesses casos, deve-se evi tar qualquer modo de agir
que tolha a liberdade de cons ciência do no viço ou do
reli gioso(20).
XII
- Os conselhos dos superiores religiosos
Chama
a atenção o fato de o Código tratar dos Conselhos no mesmo artigo
dedicado aos superiores, como que a sublinhar o ca ráter de
or ganismo auxiliar que lhes corresponde. O direito comum é
extraordina riamente parco em relação a eles. Um único cânon, o
627, é quanto se contém no nosso corpo legal, a respeito dos
con selhos, cuja organi zação e funcionamento devem, por isso, ser
re gulamentados no direito próprio de cada instituto. Contudo, desse
cânon se deduz claramente o seguinte princípio fundamental:
Os
conselhos são organismos auxiliares do superior. Nem eles pró prios
nem os seus membros são superiores, no sentido verda deiro da
pa lavra, nem formam com o Superior uma unidade de go verno. Por
isso, a rigor, não é correto falar, como se costuma, do governo
ge ral ou do governo provincial, como que a indicar, com essas
ex pressões, uma es pécie de corpo colegial que dirija o instituto
reli gioso ou uma pro víncia; muito menos ainda, poderia ser
empregada uma expressão seme lhante a nível local. De fato, as
instâncias romanas intervieram já duas ve zes, a fim de evitar
desvios desse tipo: a primeira, em 2 de fevereiro de 1972, a então
Congregação para os re ligiosos e os insti tutos secu lares
declarou que não se pode admitir um regime colegial ordinário e
exclusivo no governo de um instituto religioso(21). O do cumento da
mesma SCRIS, de 31 de maio de 1983, "sobre os elementos
es senciais da doutrina da Igreja acerca da vida religiosa, nos
institu tos dedicados ao apostolado", reafirma o mesmo
princípio, excluindo o regime cole gial ordinário em qualquer nível
de governo, geral, provin cial ou lo cal.
Em
segundo lugar, a Comissão Pontifícia para a interpretação
autêntica do Código de Direito Canônico declarou, a 5 de julho de
1985(22), que "quando o direito estabelece que para realizar
cer tos atos o superior precisa do consentimento de algum colégio ou
grupo de pessoas, conforme a norma do cân. 127 § 3", o mesmo
su perior não tem o direito de emitir seu voto juntamente com os
ou tros, nem se quer para dirimir a paridade de votos. Embora esta
resposta tenha um alcance su perior ao âmbito da vida religiosa,
pois se aplica também a outras pessoas jurídicas na Igreja
(dioceses, associações, etc.), possui uma repercussão especial no
nosso campo de estudo. De acordo com ela, sem pre que o direito,
comum ou próprio, determina que um superior reli gioso precisa do
consentimento do seu conselho, isso significa que o conselho deve ser
convocado e, estando os seus mem bros reunidos, a questão em apreço
deve ser aprovada pela maioria dos presentes(23). Ao supe rior cabe
unicamente submeter a questão à votação e presidir a reunião,
mas sem emitir qualquer voto, nem mesmo para dirimir um even tual
empate.
Isso
não impede, porém, que, em determinadas matérias, as
consti tuições determinem que o superior e o conselho ajam
cole gialmente, como um único corpo deliberativo. O próprio Código
de termina esse modo de agir no caso da demissão de um professo de
vo tos perpétuos(24). In sistamos todavia em que o governo colegial
não pode ser ordinário e exclusivo em nenhum nível.
Não
há nenhuma determinação do direito comum quanto ao nú mero de
conselheiros. Do citado cân. 699 § 1, deduz-se que os conselhei ros
ge rais não podem ser menos de quatro; mas, no nível provincial ou
local, bastariam dois. Levando, por outro lado, em conta a citada
resposta de 5 de agosto de 1985 e a impossibili dade dela derivada de
o superior di rimir um eventual empate, pa rece conveniente que os
conselheiros sejam em número ímpar, a fim de evitar situações de
im passe, coisa que pode ria acontecer no caso em que dois
conselheiros votassem a favor da proposta e dois contra; nessa
hipótese, sem que te nha havido uma verda deira re jeição, o
superior não poderia agir, pois não teria o consen timento do seu
conselho.
Nada
impede que, em comunidades pouco numerosas - digamos, até seis ou
oito membros -, a própria comunidade atue como conse lho. Em
comunidades maiores, isso não seria prático e até poderia conduzir
a paralisar a ação do superior, ao não conseguir, às ve zes,
convocar e reunir a comunidade, com quórum suficiente para
deliberar.
Tampouco
está determinado, pelo direito comum, o modo de desig nação dos
conselheiros: por eleição, nomeação, etc. Tudo fica para as
disposições do direito próprio. O comum, porém, é que os
conse lheiros gerais sejam eleitos pelo capítulo geral; os
provinciais e locais, eleitos ou nomeados.
Quanto
às qualidades requeridas para o cargo de conselheiro, é comum
exigir que os gerais sejam professos de votos perpétuos. Entre os
conselheiros provinciais, poderia ser admitido algum que fosse só de
votos temporários. Para os locais, haverá que contar com a
reali dade de cada comunidade e, por isso, não se pode exi gir
sempre a pro fissão perpétua. Também não há nenhuma
determi nação do direito comum acerca da idade requerida para o
cargo de conselheiro. É comum deter minar, nas constituições, para
os ge rais, algo em torno dos trinta anos. Por outro lado, é
evidente, pela própria natureza das coisas, que os conselheiros
gerais e, analogamente, os provinciais devem ser religiosos que se
distin gam pela sua observância, amor ao instituto e conhecimento do
seu espírito e tradições.
Poderiam
o Secretário e o Ecônomo ("Tesoureiro") gerais ser
con selheiros, no respectivo nível? Nada o impede, do ponto de vista
do direito comum. Inclusive muitas constituições o determi nam
positiva mente. Quanto ao tesoureiro ou ecônomo, não vejo ne nhuma
di ficuldade especial. Diferente, porém, me parece o caso do
Secretá rio. Pela pró pria natureza das coisas, trata-se de uma
pessoa que deve gozar da confiança do superior, pois terá que
co laborar íntima e cotidianamente com ele. Ora, os conselhos
ge rais, e com freqüência também os provin ciais, não são da
livre designação do superior, mas eleitos pelo res pectivo
capítulo. Constituem, portanto, um certo contrapeso ao perso nalismo
do su perior, não tendo necessariamente a mesma linha de pensa mento
que ele. Ainda mais, a permanência dos conselheiros no cargo não
de pende da vontade do superior, pois não o receberam dele e sim do
ca pítulo. Não parece, porém, conveniente im por ao superior um
se cretário determinado, que pode não se afinar com as idéias
dele, para todo o período do seu mandato. Por isso, creio que o
secre tário geral e o provincial não devem ser conselhei ros, nem
deveriam ser elei tos em capítulo. Isso não tira que, se assim for
deter minado pelo direito próprio, possam assistir às sessões do
conselho, inclu sive com direito a voz, mas não a voto e com a
incumbência de la vrar as atas, estando assim à par dos assuntos
tratados.
Seria
bom que o direito próprio determinasse claramente a fre qüência
das reuniões dos conselhos. No nível geral, parece di fícil um bom
governo sem, pelo menos, uma reunião mensal. Algo semelhante se
poderia dizer do nível provincial. No local, as condições são tão
di versas que dificilmente se poderia estabelecer uma norma comum
para todas as ca sas.
Em
relação ao lugar de residência dos conselheiros, o di reito co mum
é omisso. Também é raro encontrar determinações ex pressas no
di reito próprio dos institutos religiosos. Contudo, a grande
maioria das constituições atribuem aos conselheiros gerais outras
funções, como a de vigários ou "assistentes" gerais,
su pervisores dos diver sos setores do instituto (formação, ação
so cial, pastoral paroquial, etc.). Por isso, parece mais do que
conveniente que eles residam na mesma sede ou muito perto do
su perior geral. De modo especial, quando o instituto se encontra
estendido por diversos países, não se vê como eles poderiam
de sempenhar o seu encargo, residindo habitual mente em regiões
diferen tes.
Para
os conselheiros provinciais, valem considerações análo gas,
levando em conta, porém, que, na maior parte dos casos, as
provín cias não são tão extensas, pelo que poderiam residir em
ca sas diver sas e até desempenhar outros encargos, inclusive o de
superior local ou di retor de uma obra apostólica. Mas é claro que
os conselheiros locais, por sua própria natureza, devem pertencer à
comunidade a cujo superior auxiliam e, por isso, conviver com ele na
mesma casa.
A
duração do mandato dos conselheiros costuma ser igual à do
res pectivo superior, embora isso não seja uma norma imposta pelo
di reito comum. Ainda mais, em institutos de caráter centralizado,
nos quais os superiores provinciais e locais são nomeados e não
eleitos, não é raro que haja um certo intervalo - às vezes, meses
- entre a constituição do superior e a renovação do conselho. Por
outro lado, é sumamente conveniente que as Constituições prevejam
a eventual substituição de um conselheiro, nos casos de morte ou
impedimento. O mais comum é que o próprio Superior, com o
consen timento do seu con selho, designe (ou proponha à instância
supe rior, a qual agirá de modo análogo) o novo conselheiro, que
com pletará o mandato daquele que ficou impedido.
Quanto
ao modo de agir dos conselhos, distingamos os casos em que eles gozam
de voto deliberativo ou de voto consultivo; ou, dito de ou tro modo,
entre os casos em que o superior deve contar com o consenti mento do
conselho, ou em que apenas deve ouvi-lo. Essas ex pressões de vem
ser interpretadas de acordo com o cân. 127(25). Por isso, quando é
estatuído pelo direito que, para pra ticar certos atos, o Superior
ne cessita do consentimento de algum colégio ou grupo de pessoas, o
colé gio ou grupo deve ser convo cado de acordo com o cân. 166, a
não ser que haja determinação contrária do direito particular ou
próprio, quando se trata uni camente de pedir o conse lho. Mas, para
que os atos sejam válidos, requer-se que se obtenha o consentimento
da maioria ab soluta dos que estão presentes, ou que se peça o
conselho de todos (cân. 127 § 1).
É,
portanto, muito importante determinar claramente quais são os atos
para cuja validez se requer o consentimento do conse lho e quais
aqueles em que apenas precisa ser ouvido. Pelo di reito comum,
requer-se o consentimento para os seguintes atos:
-
alienação e qualquer negócio em que a condição patrimonial da
pessoa jurídica pode tornar-se "pior" (cân. 638 § 3);
-
ereção, transferência e supressão do noviciado (cân. 647 § 1);
-
licença para que o noviciado seja feito em outra casa do insti tuto
e sob a direção de um religioso experiente, que faça as vezes do
mestre de noviços (cân. 647 § 2);
-
licença de ausência prolongada da casa religiosa (cân. 655 § 1);
-
consentimento à passagem para um outro instituto religioso (can. 684
§ 1);
-
concessão de indulto de exclaustração (cân. 686 § 1);
-
solicitação à Santa Sé ou ao bispo diocesano, de exclaus tração
imposta (cân. 686 § 2);
-
concessão de indulto de saída a professos temporários (cân. 688
2);
-
readmissão de quem tiver saído legitimamente, ao concluir o
no viciado ou após a profissão temporária (cân. 690 §§ 1-2);
-
expulsão, em caso urgente, da casa religiosa (cân. 703);
Também
pelo direito comum, exige-se a atuação colegial do conse lho, junto
com o superior, na decretação da demissão de um pro fesso (cân.
699 § 1). Parece igualmente, que o Código insinua uma ação
cole gial nos seguintes casos:
-
declaração do fato da demissão automática (cân. 694 § 2);
-
constatação da incorrigibilidade, em ordem à demissão (cân. 697,
30).
Pelo
direito comum, é necessário ouvir o conselho unicamente no caso de
ex clusão de um professo temporário da profissão subse qüente
(cân. 689 § 1).
Não
há nenhuma determinação explícita em relação a certos assun tos
importantes, mas a própria natureza das coisas parece exi gir neles,
pelo menos, o voto deliberativo do conselho. Em al guns, até parece
mais conveniente entregar a resolução ao capítulo geral. São os
se guintes:
-
agregação de um instituto religioso a outro (cân. 580);
-
divisão de um instituto em partes, ereção de novas partes, união
das erigidas ou determinação de novos limites para elas (cân.
581);
-
supressão de partes do instituto (cân. 585);
-
aprovação de "outros códigos", que não as
constituições, como seriam os "diretórios" (cân. 587 §
4);
-
ereção de casas religiosas (cân. 609 § 1);
-
supressão de casas religiosas legitimamente erigidas (cân. 616 §
1);
-
nomeação ou confirmação de superiores, bem como sua
transferên cia e destituição (câns. 625 § 3 e 624 § 3);
-
admissão de candidatos ao noviciado (cân. 641);
-
prorrogação do tempo de profissão temporária (cân. 657 § 2);
-
modificação das disposições sobre administração, uso, usu fruto
e testamento dos religiosos professos (cân. 668 § 2);
-
renúncia do religioso de votos perpétuos a seus próprios bens
(cân. 668 § 4);
-
admissão à profissão de um religioso já professo perpétuo num
outro instituto (cân. 684 § 2);
-
transferência de um religioso de um mosteiro autônomo a um ou tro
do mesmo instituto, federação ou confederação (cân. 684 § 3);
-
avaliação das provas relativas aos delitos que implicam de missão
obrigatória, antes de remetê-las ao Superior Geral (cân. 695 §
2).
Além
destes casos, explícita ou implicitamente determinados pelo direito
comum, o direito próprio determine os casos em que, para agir
validamente, se requer o consentimento ou o conselho, que deve ser
so licitado de acordo com o cân. 127 (cân. 627 § 2). Que ca sos
poderiam ser esses, além dos que acabamos de enumerar? Não há um
critério único, mas poderíamos pensar, por exemplo, na convocação
de capítulos extraordinários, na aceitação da renúncia de
conselheiros ou superio res provinciais e locais, na designação de
equipes de for mação ou co ordenadores de setores apostólicos, na
aprovação do plano de formação (se não está reservado ao
Capí tulo Geral), na mudança das finalidades de uma casa religiosa,
etc., etc.
XIII.
A "Visita Canônica" dos superiores religiosos
Os
superiores designados pelo direito próprio para esse ofí cio
visitem, nos tempos determinados, as casas e os membros que lhes
estão confiados, de acordo com as normas do direito próprio (cân.
628 § 1). Essas normas variam muito, de acordo com a natu reza e as
circunstân cias do instituto. O mais comum é prescrever uma visita
anual do supe rior provincial (ou do geral, em institu tos não
dividi dos em provín cias) a todas as casas da província (ou do
instituto). Quando o insti tuto está dividido em provín cias, o
superior geral costuma visitar as casas, pelo menos uma vez durante o
seu mandato. Em alguns casos, como os de institutos muito numerosos
ou muito es palhados geograficamente, nem sequer se impõe
explicitamente essa obrigação ao geral. Ele, po rém, cos tuma
enviar alguns dos seus con selheiros ou assistentes, e até mesmo
outros religiosos nomeados ex pressamente para tanto, como
visi tadores, a fim de realizar uma vi sita canônica formal,
infor mando de pois do resultado.
A
finalidade fundamental da visita é de caráter pastoral. O supe rior
deve mostrar nela a sua solicitude pelo bem não só do ins tituto,
como um todo, mas também de todos e cada um dos mem bros, le vando
em conta a salus animarum, que, na Igreja, tem sem pre o pri meiro
lu gar(26). Por isso, é fundamental que o visitador reserve tempo
sufi ciente para conversar com cada religioso em particular, e que os
ouça com atenção, ponderando diante de Deus tudo o que eles
acharem por bem comunicar-lhe. Contudo, o poder jurídico do
visita dor está limitado ao foro externo, tal como já advertíamos
a res peito do poder dos superio res, em geral. Daí a restrição
contida no parágrafo 3 do cân. 628: Os membros proce dam com
confiança para com o visitador, a quem devem res ponder segundo a
verdade, na caridade, quando os interrogar legitima mente. Ora, como
já vimos, de acordo com o cân. 630 § 5, qualquer in tromissão no
campo da consciência é ilegítima. Por isso, o re ligioso não
está obrigado a responder a perguntas que se refiram a esses
as suntos. Mas, como também vimos anteriormente, é louvá vel a
confiança do religioso para com o visi tador e a manifes tação
espontânea a ele dos assuntos mais íntimos. A utilização, porém,
dessa manifestação de consciência, para o governo fica
condicionada a um licença expressa e totalmente livre do
interes sado.
Como
a visita é fundamental para que o instituto religioso seja governado
numa relação pessoal entre superiores e súditos, a ninguém é
lícito desviar os membros da obrigação de responder, quando são
legi timamente interrogados, na verdade na caridade; nem de impedir
de outro modo a finalidade da visita(27).
Quando
a visita é realizada por alguém com poder delegado pelo superior, é
claro que a sua autoridade está limitada pelos termos da delegação.
Daí que possa haver visitadores para assun tos específi cos, como a
formação, o apostolado social ou as questões econômicas.
XIV
- A visita do Bispo diocesano
Conforme
advertíamos, ao tratar dos institutos de vida consa grada, em geral,
eles gozam de justa autonomia de vida, principal mente de regime
(cân. 587). Essa autonomia é, em princí pio, a mesma para os
institutos cclericais do que para os lai cais. Por isso, o novo
Código limitou fortemente os poderes que, no corpo legal de 1917,
eram atri buídos aos bispos diocesanos em relação às
congre gações laicais, e até no que diz respeito aos institutos
religiosos de direito dioce sano, clericais ou laicais. O princípio
geral apli cável nesta matéria está formulado, conse qüentemente,
de modo res tritivo: O bispo pode vi sitar os membros dos institutos
religiosos de direito pontifício e as suas casas, só nos casos
expressos pelo direito (cân. 397 § 2). Numa leitura superificial,
poderia dar a im pressão de que os bispos têm um po der pleno de
visita em relação aos institutos de direito dioce sano. Na
realidade, não é assim, pois o cân. 628 § 2, 20 fala
ex clusivamente das casas e não dos membros. A mesma coisa vale para
os mosteiros men cionados no n0 10 do citado parágrafo. Não se
es queça, porém, que as limitações que apontamos referem-se ao
re gime interno das comunidades religiosas. Pelo que diz respeito à
irradiação externa, o Bispo dioce sano pode visitar, por si ou por
outro, as Igrejas e oratórios freüen tados habitual metne pelos
fiéis, as escolas e outras obras de religião ou de cari dade
espi ritual ou temporal confiadas aos religiosos, por ocasião da
vi sita pastoral e ainda em caso de necessidade; não, porém, as
es colas abertas exclusivamente aos alunos próprios do instituto
(cân. 683 § 1). Os lugares aqui enumerados são precisamente
aque les que correspondem às áreas de atuação apostólica em que,
con forme o cân. 678 § 1, os religiosos estão sujeitos ao poder
dos bispos, aos quais devem obedecer com devotado respeito e
reverên cia.
XV.
O dever de residência dos superiores religiosos
A
obrigação de residir perto daqueles que lhes estão especial mente
confiados é um dos deveres que o Código frisa em relação a to dos
os que exercem cura de almas ou outros encargos importantes para o
bem da Igreja: Cardeais da Cúria Romana (cân. 356), Bispos
dioce sanos (cân. 395 § 1), Bispos coadjutores e au xiliares (cân.
410), adminis trador diocesano (cân. 429), párocos (câns. 533 § 1
e 543 § 2, 10), vigários paroquiais (cân. 550 § 1). Ainda mais, o
Código pune a irre sidência com "justa pena", que pode
chegar, após adver tência, à pri vação do ofício
eclesiás tico(28). De fato, esses ofícios são consti tuídos para
o bem dos fiéis e não precisamente do titular do cargo. Por isso,
este deve ficar num lugar de fácil acesso para os fiéis que
precisam de sua atuação.
No
caso dos religiosos, pode-se dizer que os superiores exercem uma
função pastoral ou quase-pastoral, pois o primeiro encargo deles é
cuidar do bem espiritual dos membros que lhes estão confiados. Daí
deriva o dever de residência estabelecido no cân. 629: "Os
Superio res residam cada qual em sua casa, e não se afastem dela, a
não ser de acordo com o direito próprio. Como se vê, o cânon tem
uma redação genérica e se aplica, por isso, não só aos
superiores locais, mas também aos maiores. De fato, estes também
devem estar adscritos a uma casa - cúria ou sede provin cial ou
geral -, conhecida por todos os súditos. Contudo, o dever de
residência do superior maior deve ser harmonizado com o de vi sita,
que já estudamos anteriormente. Dada a diversidade de si tuações
(número de membros, extensão terri torial, facilidade de
comunicações, etc.), o Código se abstém de de terminar
ulterior mente esses deveres. Isso corresponde ao direito próprio -
não necessariamente as Constituições! - que deverá indicar as
ausên cias permitidas e os mecanismos de suplência do superior
au sente.
É
lógico que o dever de residência tenha que ser mais urgido no caso
do superior local, e que pessoas com encargos pastorais que as
obriguem a ausências prolongadas da própria casa não são as mais
ap tas para o cargo de superior. Também se deve considerar que, no
caso de vários grupos de religiosos, com pluralidade de moradias,
mas for mando juridicamente uma única casa, o superior local deverá
ter dispo nibilidade suficiente para se tornar pre sente, de modo
re gular, em to das elas.
Em
relação ao superior geral, quanto maior for o instituto reli gioso,
parece mais aconselhável a sua permanência na sede, a fim de que
governe realmente e não entregue praticamente tudo nas mãos de
vi gários ou assistentes. Isso não tira a conveniência e até a
necessi dade de viagens, não muito prolongadas, para conhe cer a
rea lidade dos lugares onde os membros do instituto traba lham e
vivem.
XVI.
Superiores religiosos e liberdade de consciên cia
Como
vimos no esboço histórico da vida consagrada, a figura do superior
religioso surgiu, na vida monástica, mais como um pa dre
espi ritual, cuja experiência poderia ser de ajuda na cami nhada dos
novos monges. Essa mesma concepção é marcante na Regra de São
Bento. A pró pria palavra abade indica a paternidade espi ritual.
Nem é de maravi lhar que o mesmo valesse para os mosteiros
femininos, onde a abadessa também exerceu uma certa maternidade
espiritual. Afinal, no monaquismo primitivo, a direção espiritual
não estava unida ao sa cramento da pe nitência, nem era exercida
inicialmente por sacerdo tes, pois abades e abadessas não
costuma vam ser clérigos. A tradição medieval continuou a acentuar
essa prática. No início da Idade Mo derna, Santo Inácio, nas suas
Cons tituições, pede que o religioso não tenha nada oculto para o
su perior, "nem a consciência própria"; ao mesmo tempo,
estabeleceu a obrigatoriedade da conta de consciên cia sistemática,
uma ou duas vezes por ano.
Contudo,
a crescente união entre direção espiritual e sacra mento da
penitência acabou produzindo sérias dificuldades, com risco da
violação, pelo menos indireta, do sigilo sacramental. Por ou tro
lado, a tendência, cada vez mais forte, a separar o foro interno do
externo acabou produzindo uma legislação forte mente restritiva, já
no Código de 1917, quanto à função dos supe riores em matéria de
di reção espiritual, legislação essa que per dura basicamente no
Código atual. Deixando de lado as prescrições relativas aos
confessores, que estudaremos em conexão com o dever estabelecido no
cân. 664, ve jamos o que o nosso corpo legal or dena ao respeito.
O
princípio básico, neste campo, é o da liberdade de cons ciência:
Os superiores respeitem a justa liberdade dos membros quanto ao
sacra mento da penitência e à direção de consciência, salva
porém a disci plina do instituto (cân. 630 § 1). Todos os outros
pa rágrafos deste cânon devem ser interpretados à luz deste
princípio geral. A consciên cia, enquanto santuário íntimo da
pes soa humana, onde ela se encontra com Deus, deve ser respeitada e
só pode ficar patente por um ato livre e espontâneo do sujeito.
Note-se que o câ non citado usa três ex pressões diversas: direção
de consciência (§ 1), abertura de ânimo (§ 2) e manifestação
de consciência (§ 5). A direção de consciência, na prática
atual, vai unida, com freqüência, ao sacramento da penitência; não
é, porém, necessário que assim seja. Pessoas leigas podem ser
ex celentes diretores de consciência, pois a direção está mais
li gada ao dom de sabedoria, que o Espírito Santo concede livremente
a quem quer. A direção é um meio de cami nhar com segurança nas
vias do Espírito, evitando ilusões e enganos. Daí a sua
quase-obrigatoriedade, sobretudo nos anos da formação in cial.
Por
outro lado, também há necessidade de se evitar que, neste campo, se
introduzam interesses alheios, como poderiam ser as conve niências
do governo do instituto. Os superiores devem respeitar ou, mais
exatamente, reconhecer a justa liberdade, quanto á direção de
consciência, pois ela existe antes e indepen dentemente da
autori dade. Contudo não se trata de uma liberdade ilimitada: ela
deve ser justa. Não seria tal, por exemplo, a di reção que fosse
conduzida por um não-católico, como um monge bu dista, um
psicanalista agnóstico ou atéu, etc. A liberdade citada deve
respeitar também a disciplina do insti tuto. Seria indiscreta uma
atitude que, em nome da liberdade de di reção espiritual,
pre tendesse uma violação da clausura de um mos teiro de
contemplati vas, ou que impedisse o cumprimento habitual dos deveres
próprios de um religioso em estabelecimentos educaionais ou
hospitala res ou mesmo no seio da própria comunidade.
Relacionamentos suspeitos entre um religioso(a) e o seu diretor
espiritual podem e devem ser vi giados e corrigidos, sem violação
da justa liberdade, pois eles cons tituem um abuso dela.
A
abertura do ânimo e a manifestação da consciência, de que fala o
parágrafo 5, relacionam-se muito mais com a própria função de
go verno, pois servem para que o superior conheça mais
profun damente o súdito, fornecendo assim elementos para um governo
mais paternal e prudencial. Não se trata aqui, portanto, de uma
verda deira direção es piritual e sim de uma transparência do
religioso, inclusive no âm bito da consciência, como um ato de
caridade para com o superior, a quem são fornecidos dados que, de
outro modo, desconheceria por com pleto. A abertura de ânimo parece
ter um âm bito menor do que a mani festação de consciência. O
ânimo se pode abrir em relação a um campo restrito, como, por
exemplo, em re lação aos anseios e dificuldades na ação
apos tólica ou na vida de oração; a manifestação da
consciên cia, pelo con trário, é mais abrangente e inclui a
comunicação de pe cados e ten tações. O Có digo, por lado,
exorta à confiança com os su periores, a fim de propiciar a
abertura livre e espontânea do reli gioso para com o seu superior.
Ao mesmo tempo, porém, contém uma proibição formal de induzir de
qualquer modo que seja, quer dizer, direta ou indireta mente, a uma
manifestação da consciência. Se, con tudo, o religioso,
espontaneamente, quiser fazer essa manifestação, deve ser acolhido,
com caridade e agradecimento, pelo superior, o qual deverá evitar
qualquer discriminação contra os que não se sen tem movidos a tal
mani festação.
Pela
própria natureza das coisas, tudo aquilo que o superior chega a
saber através da manifestação da consciência de um seu sú dito
fica limitado ao âmbito do foro interno e não pode ser usado para o
foro externo, a não ser que, em casos particulares, o próprio
súdito dê, para tanto, licença expressa e livre.
(1)
Nos câns. 596, 617, 618 e 622.
(2)
Cf. cân. 590 § 1.
(3)
Cf. cân. 618.
(4)
Cf. cân. 573 § 1.
(5)
Cf. cân. 662.
(6)
Cf. cân. 608.
(7)
Cf. cân. 911.
(8)
Cf. cân. 1003 § 2.
(9)
Cf. câns. 1427 § 1 e 1438 § 3.
(10)
Cf. cân. 625 §§ 1-2.
(11)
Cf. também cân. 119, 10.
(12)
Cf. cân. 631 § 1.
(13)
Cf. Hortal, J., "Eleição direta da Superiora Geral?", em
Direito e Pastoral, no 5, jul. 1987, pp. 54-56.
(15)
Cf. cân. 625 § 2.
(16)
Cf. cân 623).
(17)
Cf. cân. 624 § 1.
(18)
Cf. Communicationes 12 (1980) 166.
(19)
Cf. câns. 630 § 4 e 985.
(20)
Cf. cân. 630 § 1.
(21)
Cf. AAS 64 (1972) 364s.
(22)
Cf. o comentário de Luis Madero López à citada resposta, em
Direito e Pastoral n0. 6, out. 1987, pp. 33-39.
(23)
Cf. cân. 127 § 1.
(24)
Cf. cân. 699 § 1.
(25)
Cf. cân. 627 § 2.
(26)
Cf. cân. 1752.
(27)
Cf. cân. 628 § 3.
(28)
Cf. cân. 1396.
1)(1)
Cf. Jo 4,42.
2)(2)
Cf. At 13,2.
3)(3)
Cf. cân. 207 § 2.
4)(4)
Cân.
573 § 1; Cf. LG
44;
PC
1.
(5)(5)
Cf. LG,
cap. VII:
"Da índole escatológica da Igreja peregri nante".
(6)(6)
LG
44.
(7)(7)
Conclusões
de Puebla,
n0
747.
(8)(8)
Id.,
n0
748.
(9)(9)
Id.,
n0
749.
(10)(10)
Doc. Religiosos
e Promoção Humana,
n0
I,
3.
(11)(11)
Cf. cân. 573 § 2.
(12)(12)
Ibid.
(13)(13)
Cf. cân. 603.
(14)(14)
"A Obra da Igreja reconhecida oficialmente", em
L'Osservatore
Romano, ed.
port., 2 de junho de 1991, p. 9.
(1)(1)
Cf. LG
44c;
cân. 207 § 2; cân. 574 § 1.
(2)(2)
LG
8.
(3)(3)
Cf., p.ex., 1 Co 12 e 14.
(4)(4)
PC
2b.
(5)(5)
Cf. cân. 587.
(6)(6)
Na primeira edição brasileira do Código de 1983, a palavra latina
tueri
foi traduzida por "tutelar", detur pando o sentido do
cânon, pois o que nele se ordena é uma proteção e não uma
tutela, como se os Ins titutos fossem menores de idade
(7)(7)
Cf. Prefácio
ao Código (p. XXIX, 50
da edição brasileira).
(8)(8)
Cf. cân. 589.
(9)(9)
Cf. cân. 595 § 1).
(10)(10)
Creio que, por analogia com o cân. 691 § 2, deveria entender-se
como o Bispo do lugar da casa de ads crição dos interessados.
(11)(11)
Cf. cân. 592 § 1.
(15)(15)
Cf. PC
21.
(16)(16)
Cf. cân. 119, 30.
(18)(18)
CD
35,3.
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